CAPÍTULO QUATRO: E NUNCA DIREMOS ADEUS (TJ)
CAPÍTULO QUATRO
E NUNCA DIREMOS ADEUS (TJ)
Ali, no chão frio do banheiro, sentindo a água cair de encontro a mim, eu senti que poderia me afogar em mim mesmo. Em minhas dores e memórias. Memórias das quais eu jamais conseguiria escapar, não importava o tempo que passasse, a lembrança de seu sorriso estava cravada em mim e, no momento, era como ter vidro rasgando minha pele. Agonizante e doloroso.
Segundo George Eliot, nossos mortos nunca estão realmente mortos para nós até que tenhamos nos esquecidos deles. Então Mia nunca estaria morta para mim, pois me sentia incapaz de esquecê-la.
E como disse, eu poderia me afogar em mim mesmo ou na água que caía e teria o feito, não fosse a voz do Gong do outro lado da porta me puxando de volta à realidade.
— TJ? Cara, tá aí? Tá tudo bem?
— Tô. — me limitei a responder. Minha voz soou estranha, rouca e embriagada. Vai ver a dor fazia isso com as pessoas: as embriagava.
— Ótimo! Vai demorar?
— Quer usar o banheiro? — perguntei — pode usar o lá de baixo...
— Não é que... Cara, eu odeio dar más notícias — o ouvi suspirar. O que mais agora? me perguntei, nada seria pior que a última má notícia que recebi porque nada superaria Mia estar morta, mas eu também não me sentia em condições de receber mais notícias ruins. Então permaneci em silêncio, tentando me preparar para o que quer que fosse, ouvindo Gong resmungar sobre o cosmos estar tirando uma com a nossa cara, vortex temporais e ele socando a cara do assassino.
— Jade sumiu. — ele disse por fim, mas suas palavras não me abalaram. Nem sequer pareceram fazer sentido.
— O que?
— Jade. Jade Western, a amiga da Mia, a ruiva, filha do...
— Tá, tá, eu sei quem é.
— Então, ela — ele fez uma pausa dramática que me fez querer rir não fosse a tragédia da situação — sumiu.
— Jade sumiu?— perguntei, mas para mim mesmo do que para ele.
— É, sumiu, desapareceu. Puft, evaporou. Sumiu, cara!
— Sumiu — murmurei. Meu cérebro ainda estava processando a informação. Fez-se um silêncio quase palpável quando Gong se calou, desliguei o chuveiro sem nem me dar conta. Era como se eu fosse um carro no piloto automático, só seguindo uma rota já programada.
— TJ?
— Sim?
— Você... Não sei... O pai da Jade veio aqui perguntar se sabíamos dela...
— Como a gente saberia dela? — abri a porta e o encarei, seu olhar foi o que me lembrou de que eu estava com as roupas totalmente encharcadas.
— Você tomou banho de... Assim? Com roupa e tudo?! — Gong me olhava se cima a baixo, preocupado. — Cara, você tá pior, mil vezes pior do que eu pensava!
— Obrigada pelo diagnóstico — passei por ele e fui em direção ao meu armário, tirando a camisa no caminho. — Mas vamos voltar ao que interessa.
— Tudo bem. Eu não faço idéia do porquê o pai dela pensou que poderíamos saber dela, vai ver ele não sabe que na cadeia alimentar do ensino médio nós estamos tão em baixo que constantemente a abelha rainha, mais conhecida como a filha dele, nem nota nossa existência.
— Vamos atrás dela! — exclamei, me enfiando dentro de uma calça jeans seca.
— O que?
— Vamos atrás dela — repeti — Vamos procurar a Jade.
— Pirou?! E se quem fez aquilo com a Mia estiver com ela? Vamos morrer. E eu não quero morrer, eu sou asiático...
— O que isso tem a ver?
— É como nos filmes, o asiático sempre se ferra. E eu, definitivamente, não quero me ferrar.
— Ok — puxei meu casaco, pendurado na cama atrás dele — Então você fica e eu vou.— dei um tapinha em seu ombro e me dirigi a porta.
— Não, não, não. Isso é loucura. Eu não vou deixar você fazer isso sozinho, melhores amigos, lembra? Você não pode se ferrar sem mim e eu tenho que impedir que você nos ferre.
— Vem ou não? — Me virei para ele.
— Não. Eu não vou porque você não vai a lugar nenhum.
Comecei a andar novamente, passando meus braços pelas mangas do casaco.
— TJ, você tá me ouvindo? Volta aqui. Isso é estupidez, cara!
Cheguei às escadas.
Ele viria, eu sabia.
— Nós não vamos atrás da Jade.
Diminui o passo.
— Tá — ele resmungou — nós vamos atrás da Jade. — o ouvi suspirar a alguns passos de mim.
— Mas se a gente morrer...
— Não vamos morrer.
— Mas se morrermos...
— Gong — parei e me voltei para ele — Relaxa, tá bom? Você não vai virar Sushi hoje.
— Sushi? Sério? — seu falso tom ofendido vinha seguido de um início de sorriso — Você pelo menos sabe que a minha família é coreana? Porque se depois de todos esses anos você ainda acha que japonês e coreano é uma coisa só, não podemos mais ser amigos.
— Eu não acho que japonês e coreano é uma coisa só.
— Sinto-me aliviado por saber que nossa amizade está...
— Eu acho que a Asiá inteira é uma coisa só. Todos feitos na mesma forma, tudo igual.
— Ah, isso já é demais! Você não pode ferir assim a cultura de alguém e achar que vai sair impune, cara...
E assim saímos de casa. Rindo de coisas idiotas e agindo feito idiotas. Era o que fazíamos. Até parecia que tudo estava normal, não fosse o peso no meu peito e a dor perfurante que senti quando avistei a casa e notei a mancha escura na calçada. Sangue.
♦♦♦
Eu não tinha entendido porque o pai da Jade havia ido procurar por ela na minha casa até passar em frente a casa deles e ver duas viaturas estacionadas e vários policiais, claro que o pai dela ser o xerife ajudou na parte de reunir um grupo de busca, ainda mais considerando que faziam apenas algumas horas que ela havia sumido. O fato é que eu entendi por que ele foi perguntar até mesmo ao Gong e a mim sobre ela: ele estava desesperado.
Jade havia ficado transtornada ao saber da morte de Mia, ninguém fazia idéia de para onde ela poderia ter ido. Se é que tinha ido por vontade própria. Nem preciso dizer que já tinha gente pintando o quadro de um novo assassinato. Acho que é isso o que acontece com a mente das pessoas quando acontece uma tragédia em uma cidade como a nossa, é como se o cosmos tivesse saído dos eixos e agora a qualquer momento pudesse acontecer uma nova tragédia.
— Quer saber o que eu acho? — Gong perguntou em determinado momento. Estávamos procurando por Jade em lugares onde o pessoal do colégio costumava se reunir, começamos pelo ginásio da escola e agora estávamos indo para o lago.
— O que? — incentivei, mesmo que minha cabeça estivesse cheia de mais, longe de mais para que eu conseguisse ter algum interesse genuíno no que ele estava prestes a dizer.
— Que tá todo mundo exagerando. A melhor amiga dela morreu, ela sair correndo e ficar sem dar notícias por algumas horas é relativamente razoável.
— É, faz sentido — dei de ombros — Mas se o pai dela, vulgo o xerife, acha que tem alguma coisa errada acontecendo com a filha dele, quem somos nós para questionar?
— Só não acho que ela vai aparecer morta por aí.
— É... — assenti.
— Será que ela sabe? Meu Deus! — Gong estava pálido, os olhos arregalados. — Será que a Jade sabe quem matou a Mia?
— Tá zoando? Pirou? — ele só podia estar de brincadeira.
— Qual é? Faz sentido.
— Definitivamente não faz sentido. E você tem que parar de ver esses programas polícias.
— Ok, eu não mexo com a sua garota ruiva desaparecida e você não mexe com meus detetives, beleza? — ele ergueu as mãos no ar, as sobrancelhas erguidas, uma pose no melhor estilo “Não vem não, cara” e eu não pude não rir. E logo em seguida me sentir mal. Parecia tão errado que algo me fizesse rir enquanto cada fibra do meu corpo doía pela morte dela e ela nunca mais riria de coisa alguma.
Não encontramos Jade no lago, mas, sim, perto dali. Em um lugar onde quem a via todos os dias andando pela escola como se estivesse em um desfile de moda, passos tão suaves que parecia que ela estava flutuando, uma rainha em seus domínios, jamais imaginaria vê-la algum dia. Eu mesmo não pude acreditar quando segui o som baixo de choro e soluço e a encontrei, sentada em uma pedra sob a ponte, com o cabelo desarrumado e a maquiagem escorrendo pelo rosto, lágrimas negras de delineador.
Seus olhos verdes estavam inchados e avermelhados, bem como seu nariz e as bochechas. Parecia tão frágil. Tão quebrada. Tão diferente da Jade que a víamos ser constantemente: uma estátua de mármore, perfeita e indestrutível.
Fiquei parado por alguns segundos, observando-a, decidindo se devia ou não interromper aquele momento tão dolorosamente pessoal. Gong logo atrás de mim, sua mão em meu ombro enquanto ele, provavelmente, se fazia a mesma pergunta.
Mas não precisamos decidir. Jade decidiu por nós no momento em que ergueu o rosto e nos viu ali. Respirou fundo, passou a mão no rosto tentando secar as lágrimas mas só espalhando ainda mais o rimel borrado.
— O que vocês querem?
— Estávamos procurando você.— falei, dando alguns passos a frente.
— seu pai está preocupado.
— Ah. — foi tudo o que saiu de sua boca. Uma pequena palavra sem a menor emoção e um longo suspiro, cansado. Todos estávamos cansado, não era só ela.
Por um longo tempo ficamos em silêncio. As árvores balançando com o vento, a água do rio arrastando cascalhos e nós três imóveis como as pedras. Respirando porque precisávamos fazer isso, mas sentindo que não havia razão para tal, não quando um ato tão simples parecia tão doloroso.
Gong e eu olhávamos para Jade que, por sua vez, encarava a fraca correnteza do rio quase seco.
— Mia e eu costumávamos vir aqui nessa época do ano — disse ela. Não soube definir se estava falando conosco ou consigo mesma. — Quando o rio estava tão baixo que podíamos sentar aqui, nas pedras, e conversar. Sentir a vida, como ela dizia. — Jade inspirou, com os olhos fechados, como se tentasse absorver o vento que emanava das árvores lhe trazendo lembranças e mais lágrimas aos olhos. — Antes, a gente só sentava aqui e conversava, comendo salgadinhos, tomando limonada e sonhando com o baile da primavera quando estivéssemos no ensino médio. — continuou ela, ainda com os olhos fechados como se pudesse ver tudo acontecendo novamente em sua mente — Mas, depois, quando crescemos um pouco, nós vínhamos e bebíamos — Jade riu, sem humor — bebíamos licor de pêssego ou de menta que Mia roubava da casa da avó dela. Ou vodka que eu pegava do meu pai. Quando Mia começou a namorar o Clark, depois que a avó dela morreu, ela o fazia comprar licor para nós duas. Mas nunca o deixávamos vir. Era um momento só nosso. Era quase ritualistico. Uma tradição antes das aulas recomeçaram e do rio encher para secar novamente. Foi uma das poucas coisas que continuaram sendo só nossas depois que o Clark entrou na vida dela e estávamos crescidas demais para ficarmos deitadas na grama ouvindo música e sonhando com...
— Joshua Hayfield. — falei
— Joshua Hayfield. — Jade assentiu. — Como você sabe? — pela primeira vez desde que a encontramos, ela realmente olhou para nós. Para mim. O olhar que denunciava o quanto parecia errado, quase criminoso eu saber daquilo, de um segredo que deveria ser só das duas.
— Já fomos amigos, lembra?— dei de ombros. Dar de ombros era meu jeito de dizer "não estou nem aí" quando, definitivamente, estava, sim, me importando e muito mas não queria que o mundo soubesse disso. Era como se dar de ombros disfarçasse tudo. Eu sabia que não era tão simples assim, quem dera fosse.
— As vezes eu esqueço — seus lábios curvaram-se para o lado e seus olhos voltaram para a água arrastando os cascalhos. — Desculpa, Jackson. — ela murmurou, tão baixo que mal pude ouvir. Quis abraçá-la, não só porque não me importava mais de ela ter esquecido que um dia já fomos amigos, há muito tempo eu havia me acostumado com isso; mas também porque ela parecia precisar de um abraço, porque eu também precisava e pela Mia. Mas continuei onde estava.
— Tudo bem. — falei. Jade me deu um sorriso de canto, tão pequeno e breve que nem pareceu ter estado mesmo lá, naquele rosto manchado e desfigurado pela dor da perda.
— Eu ainda acho que tudo isso é um trote de aniversário. — ela suspirou, abraçando os joelhos junto ao peito. E foi só aí que me dei conta de que dia era hoje: o aniversário de dezessete anos da Jade. Caramba! Que merda!
— Um trote de aniversário muito bem elaborado — ela riu, sem perceber o meu olhar para ela. O mesmo olhar que damos a uma criança quando ela descobre que o Papai Noel não existe e o mundo todo parece não fazer mais sentido algum para ela; o olhar que damos a uma garota que perde a melhor amiga no dia do seu aniversário.
— Ainda acho que a qualquer momento ela vai aparecer e rir da minha cara. E eu vou dizer o quanto ela foi estúpida e... E depois abraçá-la porque... — As lágrimas interromperam sua frase. Mas eu pude imaginar como iria terminar: porque é só o que eu quero, poder abraçá-la outra vez.
E foi aí que meus pés se moveram, me levando até ela e eu a abracei. Levou alguns segundos até Jade colocar seus braços em volta do meu pescoço e me abraçar de volta.
Mia havia ido embora para sempre e levado um pedaço de nós dois com ela. Ela se foi de repente, como uma nuvem de chuva rápida no meio da tarde, molhando os desprevenidos, e nem tivemos a chance de dizer adeus.
Ficamos ali, sentado nas pedras às margens do rio, relembrando momentos que vivemos com ela e desejando, em silêncio, que não fosse verdade, que fosse só um pesadelo, até o sol se pôr quando tivemos mesmo que voltar para a casa. Para dolorosa realidade onde Mia não existia mais.
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