Veritates occultae, Rationes abiectae
A LUZ DISRUPTIVA SE derramou através da janela empoeirada viabilizando uma noção cirúrgica de quanto tempo se discorreu do intervalo entre a conversa com a Madre e a primeira ronda — as nuvens trafegavam no céu noturno enquanto a lua se espreitava por elas. Não seria uma noite atípica se tratando de Dante, haviam ocasiões que madrugava, por horas ininterruptas desperto, para finalizar trabalhos que não poderiam ser realizados de outras formas.
Familiarizado com a rotina insone, não encontrou objeções aos horários revezando com Diva que atuava por dentro das dependências de dia até o toque de recolher, uma prática que exigia uma demanda maior de paciência, enquanto ele ficava responsável pela vigilância após o sinal. Para não alardear e promover um caos generalizado, assim como ter um controle maior dos danos — com a ameaça de um demônio e um homem estranho ali —, o Devil Hunter não estava autorizado a perambular nas imediações no período diurno, relegado a passar horas dentro de uma sala decrépita e pouco confortável.
Conventos não eram um ambiente que se relacionava em nenhuma instância, sobretudo por ter que se adentrar áreas que não são exatamente de sua incumbência. Apesar de ter vasculhado o local, arriscando até o disfarce, não encontrou rastro de demônios, nem um vestígio insignificante para ter por onde começar. Ser limitado nas buscas também não colaborava com essa percepção, tendo que deixar a cargo de Diva uma parcela maior da missão. Ao menos sabiam que faziam as freiras de alvo por quererem os úteros — talvez para algum ritual desconhecido.
Afinal, por que iriam justamente atrás de mulheres de vocação?
Um grito rascante moldado do medo mais visceral percorreu a distância que separava o caçador da capela, ou o que acreditou ser uma de acordo com a arquitetura. O som estridente se elevou seguido de um gorgolejo úmido e uma sequência de estrépitos de móveis quebrados, por fim, um rugido. Aquela seria sua deixa: avançou pelos corredores abertos e irrompeu porta adentro, deparando-se com uma visão de algo se projetando sobre Diva que o bloqueava com dois punhais, equilibrando o próprio peso e a pressão do inimigo com os pés para não ser empurrada, esmagada pelo peso que o demônio exercia sobre ela.
Dante deslizou pelo piso a toda velocidade, suas pernas se movendo com fluidez de um patinador, e agarrou Diva antes que ela pudesse registrar sua sacada ardilosa, arrancando um grunhido surpreso dela em resposta a ação veloz. Os olhos castanhos se arregalaram em perplexidade antes de se derreterem em alívio e compreensão.
— Essa foi por pouco. — sussurrou agitada e atônita. — Obrigada, Dante.
— É ele?
Diva assentiu.
— Finalmente um pouco de ação. — proferiu. — Deixe o resto comigo.
Diva relutou por um instante, inclinando a cabeça em direção a uma figura feminina cuidando de uma freira, a desventurada vítima do demônio que agonizava com resfôlegos sôfregos e choramingou abafados. Ela franziu o cenho, uma expressão que o meio-demônio não soube definir com acurácia, algo beirando a surpresa contida a tensão.
— Tem algo errado? — Diva negou com a cabeça e se dirigiu as duas.
Pela visão periférica, mergulhando em uma dança mortal com a criatura, vislumbrou a sombra do presunçoso caçador tentava ocupar o máximo da atenção do adversário com suas esquivas fluidas e elegantes, combatendo o demônio. Diva se aproximou e notou, em Cass, que havia filamentos douradas encravados pela face e por onde a roupa não cobria. Era quase uma exótica e cintilante tatuagem que se estendia indefinidamente, uma alusão as veias que circulavam por todo corpo. Seria bela e intrigante se não fosse uma imagem assustadora dada as circunstâncias.
Vasculhando os remotos recantos de seus conhecimentos, de repente, uma lâmpada se acendeu; Diva tinha visto algo semelhante nos livros de mitos do Alexander, chamadas “reasus nullo” ou “conexões” que abrangem quem tem o sangue da grande deusa correndo em seus organismos, contudo, que somente poucos liberariam tal potencial. Justamente por ser impossível que se retratavam em estudos de mitologia de sua família e, diferente do qual foi instruída, uma anomalia, um fenômeno apoteótico, se encontrava a poucos metros de onde estava.
O que significava? Que Cass era como ela? Que tinha relações com suas crenças?
Se ajoelhando, agindo a margem da lucidez e da confusão, Diva começou a raciocinar sobre o ocorrido, na estádia no convento, do excêntrico primeiro contato, da sensação de bloqueio ao tentar rastrear energias estranhas dentro do seu raio de captação, da convivência com a mulher no curto espaço de tempo que lhe reservaram. Ela não aparentava alguém de índole duvidosa, mas para uma alma atormentada pelo horror de nunca ter experimentado a paz real nos meses precedentes, confiar somente em seus olhos seria uma tolice.
Involuntariamente pegou a mão de Cass que reagiu de imediato, quase que esperando uma atitude dessas.
Tinha sido uma noite estranha para Diva desde que escutou o grito que mergulhou as irmãs em um frenesi de pânico. Embora soubesse que Dante estaria nos arredores cuidando da vigilância e fosse forte para lidar com o demônio, ela teve que ir direto ao epicentro do caos para conter os estragos até ele chegar.
Desde que se recordava, passagens errante do passado, Diva gostava de correr. Muitas vezes se desfazia dos vestidos pomposos que Alexander lhe presenteara para escapulir pela floresta na propriedade e se aventurar entre as árvores e os pequenos animais que deambulavam pelo local, saltando por galhos e apostando consigo mesma para superar a própria velocidade. Para a menina inquieta que era, o gesto simbolizava muito mais que uma diversão ingênua, representava seu ideal de liberdade: ser independente para seguir o que gostava. No entanto, as cores, o dulçor da ação e sua noção de júbilo desbotaram e a recompensadora emoção de experimentar o vento trespassar seu corpo se desvaneceu feito uma chamazinha débil que, com um soprar hostil, se extinguiu.
Naquele momento ela correu para sobreviver, se lançando ao perigo para, também, salvar outros. O medo paralisante que se inficionou por todo seu sistema nervoso se dissolveu, substituído por uma pulsação frenética que coordenava seu corpo com rigor e punho de ferro, impedindo-a de saborear a pressão de não conseguir chegar a tempo... De novo.
Seus olhos capturaram a monstruosa criatura que se curvava sobre uma das irmãs-freiras, o corpo esquio, inumano e com garras capazes de dilacerar ossos e os dentes afiados tingidos por vermelho vivo flagrante do sangue que borbulha a do braço esmigalhado da pobre e assustadiça mulher, paralisada demais para esboçar outra reação senão pavor cru. Ela se virou para onde Diva entrou, sua boca se abriu sem emitir som e o demônio, ciente da intrusão, se fixou na nova possível vítima.
Sem mais perder tempo, Diva convocou os punhais para lutar, porém, antes que executasse um movimento de ataque para afastá-lo da aterrorizada freira, ele grunhiu de dor e se agitou rudemente, mexendo os membros superiores para alcançar algo que estava longe de sua visão. Um estalo seco ecoou, como mármore que se rachava sob grande pressão, e pequenas fissuras se abriram pela pele da criatura que rugia furiosamente para se livrar do que Diva enxergou como um bisturi embebido de sangue.
A pessoa que ela ajudou possuía cabelos ruivos, não pintados, realmente naturais. E ao identificá-la, toda a sensação inquietante de suspeita de intensificou. Foi uma reviravolta chocante quando teve que se interpor contra o demônio enquanto Cassie socorria a freira desavisada e a chegada de Dante, que literalmente a salvou de virar mais um obituário.
— Eu sabia que tinha algo errado — comentou sem largar a mão de Cass. — O que você é?
Cass se afastou do contato com um semblante firme.
Ela examinou os ferimentos com a face encovada em tensão e os lábios em uma linha, suas mãos navegavam com cautela pela pele lacerada até se deter onde as garras penetraram durante a investida; ela hesitou por um instante, os olhos baixos e os dedos sobre um corte, movendo meticulosamente para interromper o sangramento. Diva não saiu do campo de ação, observando o procedimento que a ruiva executava com gestos rápidos, embora com poucos recursos além de tecidos empapados de sangue e o bisturi que outrora usou para debilitar o demônio.
— Aguente um pouco mais. — pediu com suavidade para a freira.
— Como...? — Diva balbuciou.
As suspeitas iniciais a guiaram para passagens desconhecidas: sempre viu Cass como um ponto fora da curva entre as freiras, porém sua maior teoria vinha mais dela ser uma infiltrada ou ter buscado refúgio ali e ainda se adaptava a nova realidade — considerando que ela realizou as autopsias das outras vítimas. Não tinha uma opinião formada, somente a achava suspeita dentro do contexto. Na verdade, a incerteza recaia a todos que estavam no convento até que o monstro se revelasse por conta própria, porém nunca imaginou que seria um episódio tão catastrófico. Talvez esperar que evitasse todas as possíveis fatalidades fosse um plano bem ingênuo da sua parte.
— Cass — a freira balbuciou delirante. — Cass...
— Poupe suas forças. — murmurou com a voz aveludada e maternal para alguém tão jovem.
Presenciar uma vida inocente se esvair também não estava nos planos, embora receosa em ter que fazer diante de uma testemunha, na qual julgou por um curto período um alvo de interesse, Diva plantou as duas mãos sobre o abdômen da mulher e concentrou suas forças na regeneração dos ferimentos; sua capacidade de cura lhe garantia uma eficácia de 90% de sucesso no razoável, mas a resistência maior teria que vir da vítima. O sangue parcialmente seco em seus braços desapareceram mediante a sua atuação.
Mesmo que a simples impressão lhe fizesse revisitar lembranças, ela não conteve as próprias observações a respeito dos poderes: Alexander tentou criá-la para ser uma menina normal, apesar de ter noção de que não seria assim. Ao manifestar suas habilidades pela primeira vez, Alistair, um amigo próximo da família, acreditou que o ideal seria uma abordagem diferente, passou a tratá-la como uma espécie de santa na qual concederia milagres por onde estivesse. As pessoas genuinamente a enxergavam como tal sempre que a encontravam para que intercedesse por eles, algo que não era tão frequente, visto que não saía tanto da residência dos Lockhard.
“Como uma santa você pode salvar muitas vidas” lhe disse com serenidade e cautela, afagando sua cabeça ao vê-la curar um filhote de cachorro. “Você não deseja ajudar outras pessoas também?”
Retornou ao presente, com um lampejo fugaz de uma dúvida.
Alistair, pensou em alarde por um segundo. Estará bem?
Com as mãos quentes, Diva se afastou, dando um olhar temeroso a Cassie que não esboçou surpresa ou estranhamento. Pelo menos não como uma pessoa comum. Bem, aparentemente comum não seria uma das definições da jovem.
— Não sou a única a esconder segredos. — Cassie disse, não em tom julgador e incriminatório, havia um pouco de melancolia na escolha de palavras. — Mas... Agradeço a ajuda. — Checou os batimentos cardíacos da irmã e a oxigenação por via das dúvidas.
Diva não respondeu. Não sabia o que dizer, o conhecimento técnico dela competia com um especialista, sem os primeiros auxílios que ela prestou com o sangramento a freira teria morrido por choque hipovolêmico e sua cura se delimitava a aquilo que ainda está vivo, mesmo que às portas da morte. Se virou para ver o desfecho da batalha de Dante com finalização do demônio sem grandes dificuldades, embora tivesse enxergado um ligeiro brilho de suspeição nos olhos azuis do Devil Hunter. O filho de Sparda superava a fama que possuía como um guerreiro excepcional, forte e sem medo de enfrentar seres com o triplo de seu tamanho — tudo que restou do demônio foi as cinzas esfarelando no ar.
— Nosso trabalho aqui está feito. — Dante anunciou ao encurtar a distância e lhe dar uma mão para se erguer. — Esse lugar está livre do demônio como pediram, tudo certo.
— Não totalmente. — Diva murmurou reflexiva. — Ainda há algo...
— Algo pendente? — o meio-demônio indagou compreensivo. Ele não queria passar o resto dos dias ali para uma social, mas estava se esforçando para atender os pedidos dela e Diva agradeceu pela nobreza e o senso de moral do Devil Hunter. — Faremos do seu jeito, madame. Resolvemos esse assunto e voltamos, de acordo?
Diva assentiu.
Antes que a oportunidade se desse, a Madre chegou para investigar o pânico coletivo de algumas freiras, procurando a causa mor para iniciar o “plano de contingencia” para casos como aquele. No entanto, ao ver que, além da destruição, todos saíram incólumes do pesadelo, ela respirou fundo com o alívio que se apoderou de cada célula de si. Diva arquejou abismada com os primeiros raios de luzes solar despontar timidamente entre as frestas e as janelas quebradas, o céu adquirindo cores mais claras e o dia substituindo as trevas da noite, determinando uma linha parcial do tempo dentre o início do ataque ao desfecho: praticamente viraram a madrugada inteira para concluir a missão.
— Acho que a senhora tem muito o que explicar. — Diva anuiu com severidade, quase acusatório.
Dante arqueou uma das sobrancelhas com a reação da parceira que já não emitia vibrações plácidas, contrariando a passividade subjetiva do seu papel.
— Esse não é...
— A missão foi concluída. Fizemos nossa parte. — Diva replicou com rispidez. — Mas algumas coisas não ficaram claras.
Cassie se alinhou com a Madre, fitando-a com simpatia. A senhora respirou fundo, massageando a ponte do nariz e com um vinco se formando na testa.
— Faremos...
Dante reconheceu de imediato o rugido que sulcou a barreira do som, virando na direção do disparo alto violou o silêncio, fendendo o ar em seu curso, e as duas, uma frente a outra, desmoronaram em sincronia no chão em uma poça de sangue quente que se aderiu as roupas claras em um quadro branco maculado.
A Madre gritou com a cena, porém tudo que o Devil Hunter, com os pensamentos fervilhando em fúria selvagem, quis era, vendo o corpo da sua protegida jogado inerte, caçar o responsável e fazê-lo pagar.
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