Symbolum Quod Vitam Gubernat
RESGUARDADA NO PAPEL QUE DESEMPENHAVA com afinco, Diva sincronizou os passos com as da Madre que se dirigiam a área designada ao público geral para aclarar o avanço da infiltração coordenada. O olhar errante se dispersou pelos corredores sinuosos compostos de pilastras toscanas pertencentes a estrutura original restaurada, com esculturas de entidades celestiais que, segundo as crenças, abarcavam o sofrimento dos homens e os guiava através das sombras da morte e da perniciosidade. As pinturas datadas de séculos longínquos também representavam o que, de acordo com o imaginário do artista, seria o paraíso assim como os desenhos impressos nos vitrais multicoloridos.
Sua mente, a razão sensata, lhe exigia um comportamento cordial e centrado na missão para executá-la com maior precisão. Em oposição, não retesou a curiosidade acerca do novo ambiente e dos pormenores presentes, admirando a construção baseada na arquitetura gótica e o fluxo de irmãs que vagavam de um lado a outro as saudando educadamente. Mal recordava-se da última vez que estivera na presença de tantas pessoas sem o peso de ocultar a própria existência para sobreviver — se misturar entre as pessoas se tornará sua melhor tática para evasões rápidas e discretas. Poder andar livremente, sem uma sombra em seu encalço se esgueirando em cada beco esperando uma distração para arrebatá-la, lhe rendia mais tempo para aproveitar o que outrora parecia supérfluo.
Inadvertidamente, seus pensamentos ociosos se precipitaram por um oceano nebuloso de memórias com sua jornada solitária e como aprendeu, mediante muita provação, a nunca se destacar entre a multidão monótona, a agir feito mais um mundano preso a uma rotina em um ciclo ininterrupto. Para o trabalho, devido ao protocolo, somente ela seria habilitada a andar livremente pelo convento e interagir com as demais freiras sem problemas: camuflagem requeria um certo grau de familiaridade para melhor se adaptar ao desconhecido.
Os ecos dos passos reverberaram pela antessala erma, gradualmente estabelecendo um ritmo de movimentos afobados de sua parte e os serenos da Madre. O coro de vozes exalando alegria que eclodiam de pontos distintos rompeu sua bolha de concentração, tragando-a para a realidade no qual, por uma vaga impressão, as cores primárias do lugar consistiam em um monótono monocromático e o colorido vinham unicamente da projeção da luz solar contra o vidro das janelas.
Chacoalhou a cabeça.
Ajustou o véu e verificou, pela décima vez desde que trocou suas roupas comuns para um hábito, se estava alinhada ao código de vestimenta e se não havia nada que a diferia das outras além do que lhe competia como uma noviça. Alisou o tecido querendo que não aparecesse nenhum amassado e, por curiosidade, observou uma das freiras trazer um cesto com pão fresco — um cheiro que atiçou sua fome. Alcançou uma das massas, sem que notassem sua furtiva ação, e comeu um generoso pedaço.
— Se estava com fome, poderia ter pedido. — a Madre lhe espantou com sua afirmação astuta sem sequer tê-la visto. — Aqui todas podem comer sem nenhum temor, irmã Diva.
Diva assentiu lentamente.
— Desculpe. — murmurou envergonhada, comendo o que restou do pão macio.
A Madre indicou, com um breve meneio, a porta da capela e Diva assentiu, se adiantando para entrar. Nesse intervalo de segundos, a sensação de monocromia fora substituída por um vermelho intenso que matizou o local e transformou o vazio em uma explosão calorosa de diferentes tonalidades com a presença de Dante que as aguardava, de costas.
— Então, rapaz, encontrou alguma coisa?
Dante se virou e, nesse mesmo instante, mirou Diva com certa estranheza: vê-la com trajes conventuais seria algo surreal para alguém que não se misturava com questões religiosas. Não havia nem um fiozinho de cabelo fora da restrição do véu e não evitou a surpresa, embora estivesse plenamente consciente da encenação para rastrear o demônio. Entre testemunhar com os próprios olhos e falar disso existia um abismo de diferença.
— Não. — arqueou uma das sobrancelhas com a visão. — Está bem pra você fazer isso?
— Não se preocupe. É o único jeito, não é? — sorriu.
— Ainda tem serviços a serem feitos. — a Madre anuiu com certa apreensão.
— Teremos que descobrir quem é o impostor e se não tiver atividades, vamos ficar apenas de guarda. — Dante comentou, marchando para a saída. — Continue investigando de dentro, Diva. Por enquanto, essa é nossa melhor aposta.
— Pode deixar.
O caçador a fitou novamente de cima a baixo antes de proferir:
— É, nunca vou me acostumar com isso.
— Vai ser por um curto período. — garantiu.
— Cuidado pra não ser a próxima vítima. — alertou, tocando seu ombro com cumplicidade. — Não quero perder minha melhor agente. — brincou.
Diva estremeceu, o coração disparou com o contato, obrigando-a a recuar timidamente.
— Você está livre, menina. Se recolha junto com as outras e continue a vigília. — a Madre pediu com urgência.
Diva retornou, dando uma última olhada no Devil Hunter que retribuiu o gesto por um fugaz momento, se encaminhando para a ala seguinte. Esquadrinhou o lugar e, se certificando de não ter ninguém no perímetro para interrompê-la, fechou os olhos e tentou captar, em um curto raio, uma anomalia dentre tantas auras singulares — todas semelhantes em termos de essência luminosa pertinente a natureza humana de ser direcionados a luz. Uma energia poderosa estremeceu sua determinação e cortou sua manobra — uma força invisível reprimiu sua capacidade e a bloqueou.
Tocou a testa, desnorteada. Mesmo não sendo tão experiente na arte de mapeamento sensorial quanto Alexander, ainda possuía um bom manejo na técnica e ter alguém capaz de contê-la dentro das dependências do convento a instigou muito mais do que deveria. Diva se encostou na parede buscando equilíbrio com as forças se esvaindo decorrente do esforço anterior. Repetiu o processo de rastreamento psíquico, ignorando a onda de choque que recebeu, ampliando além do limite para cobrir o máximo de terreno possível antes de se esgotar.
— Está tudo bem? — uma freira mais velha perguntou angustiada. — Parece que vai desmaiar.
— Foi uma queda de pressão. — Diva se adiantou na desculpa. — Só preciso de uma pausa.
— Venha. — a freira entrelaçou o braço com o de Diva que se sentiu comprida a ir junto. — Você deve ser a irmã Diva, certo?
— Como sabe?
— Aqui as novidades correm rápido, principalmente com a chega de uma nova noviça. A propósito, sou a irmã Célia. — cantarolou alegremente. — Não recebemos muitas visitas ou novas entradas há três anos, a nossa última freira de fora foi a Cassie. Talvez devesse conversar, ela pode te ajudar a se adaptar se quiser.
— Ah, claro, é uma boa ideia. — murmurou com um sorriso tímido.
— Eu vou te levar até ela.
— Muito obrigada.
Em uma perspectiva geral, o convento era pequeno, não para os moldes convencionais, onde seria constituídos por número de membros relevante e uma grande Ordem de renome que coordenava as principais funções daqueles que estava sob sua tutela. A atmosfera acolhedora e os princípios que pregavam fizeram Diva questionar as reais intenções de um demônio em se esconder em um meio tão destoante do seu original, dissecando as hipóteses que surgiam para inseri-las em um plano real e checar se, por si só, se sustentavam para serem válidas. A única que lhe ocorreu, por mais simples que fosse na prática, era a óbvia busca por alguma coisa dentro.
E o que seria de tão suma importância pra um demônio estabelecer um padrão?
Mascarando sua desconfiança, adentrou a biblioteca disponível, surpresa pela assombrosa quantidade de prateleira sistematicamente organizadas com diversos livros. E ficou mais espantada ao reconhecer a existência de uma ala para alquimia, que se resumia a duas estantes com uma variada coleção disposta na ordem de publicação, uma delas indo do primeiro exemplar de capa dura e gasta ao dezessete mais conservada apesar de igualmente antigo. Recordou que Alexander possuía um acervo invejável de manuscritos, documentos e obras de alquimistas e compartilhou muito de seus conhecimentos a ela e seu irmãos adotivos, fomentando o senso crítico e a busca pelo saber.
“Os humanos se interessavam pela alquimia por ser o mais próximo do divino que poderiam estar, muitas vezes usavam do acúmulo de estudos dos antigos para irem atrás da imortalidade, a incessante e obstinada procura por uma forma de burlar o processo natural das coisas. O medo da morte impulsionava cada ato da humanidade. A ironia é: o mortal teme a própria mortalidade.” As palavras dele ecoavam em suas memórias, uma constância que, por vezes, lhe orientava pelo caminho correto entre as águas turvas e assustadoras do desconhecido.
Caminhando entre as prateleiras, observou a presença de uma jovem na mesma faixa etária que a dela, recolhida em um canto mais isolado, imersa na leitura. Quase que, imediatamente, a mulher a fitou com uma expressão neutra, um vinco em sua testa e os olhos estreitos, em uma postura não muito aberta ao diálogo. Apesar de não ter uma motivação pessoal para hostilidade, o corpo dela transparecia tensão como se esperasse que tivesse um “algo” por trás do encontro.
Diva engoliu em seco e atuou com o máximo de simpatia que sua educação permitia, curvando seus lábios em um sorriso suave.
— Olá, desculpe atrapalhar, a irmã Célia me disse para vir conversar com você para que pudesse me auxiliar na minha adaptação por aqui. — torceu para que sua atuação fraca e um tanto incompetente convencesse o suficiente para não dar margem ao erro. — Claro que se não a incomodar. — respirou fundo para controlar o ligeiro nervosismo que vibrava em sua voz conforme o olhar da mulher se tornava mais e mais afiado. — Eu me chamo...
— Sei quem você é — interrompeu, o timbre melodioso a impressionou. — A garota do pão.
Diva arquejou. O rubor subindo pelas maçãs do rosto evidenciando sua vergonha com a citação. Fora a Madre, ninguém parecia ter notado, porém, aparentemente, aquela jovem misteriosa sim e, julgando pela reação, não tinha sinal de deboche tampouco a severidade de uma repreensão.
— Oh. — soltou, corada. — Acho que você me pegou.
— Diva, certo?
Assentiu aérea.
— Pode me chamar de Cassie. — disse fechando o livro que lia.
Diva não pôde deixar de notar, na capa, a referência sobre o elixir da vida. O desenho do diagrama circular, as sete pontas com um símbolos dos planetas e a frase em latim:
— Visita Interiora Terrae, Rectificando, Invenies Occultum Lapidem. — murmurou com sabedoria a representação do que estava escrito no círculo.
— Visite o teu interior, purificando-te, e encontrará teu eu oculto. — replicou com serenidade o real significado da frase, um pouco de estranheza a princípio. — Parece que não sou a única a entender de alquimia.
— Meu tutor me ensinou a respeito. — com a ansiedade se diluindo em seu organismo, Diva articulou melhor sua sentença para soar confiante. — Vitriol. É derivado de um composto químico.
Esse estudo e suas correlações se derivavam também de uma medicação que, pelo que Alexander lhe instruiu, se tratava da “Luz Astral” — a luz que governa a vida e preenche o físico com vigor. Mas... O que uma freira vai querer saber sobre algo tão específico?
— Azoth. — o nome escapuliu de seus lábios antes que tivesse consciência de tê-lo feito.
Cass franziu o cenho, talvez tendo a mesma impressão que Diva teve.
— Vamos, tenho que mostrar alguns lugares. — Cass apressou, colocando o livro onde pertencia. — Com as recentes mortes... — houve uma pausa breve, como se a menção dos assassinatos tivesse um peso maior para Cassie. Diva empatizou com o sofrimento dela, tanto pela brutalidade quanto pela ligação que as freiras tinham umas com as outras. Da sua óptica, elas seriam uma grande família com um objetivo em comum. — alguns pontos estarão interditados. Poderemos passar por eles, mas não entrar.
— Você tem alguma ideia do que causou tudo isso? — indagou.
— Não. É difícil saber, na verdade. Os rumores apontam para um demônio, mas não querem que essa teoria infundada se espalhe.
Faz sentido, Diva ponderou. Ter um demônio num recinto sagrado instigaria o medo e a incerteza, para essas pessoas, ali seria um refúgio, um lugar onde o mal não se espreita e ser violado de modo tão bárbaro chocaria mais.
— Eu entendo. O melhor é nunca sairmos sozinhas, não é? — Diva a fitou com um semblante de alarde.
— Há muitas coisas que precisam ser evitadas. — Cass comentou cética.
A conversa se encerrou de um jeito tão antinatural que Diva prendeu a respiração involuntariamente.
Tinha algo tão perturbadoramente estranho na jovem que não pode deixar de incluí-la em sua lista de suspeitos.
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