Circus of Horrors
“Sabe, eu sempre tive uma tendência a grandeza”
Recitou elevando a voz para um agudo magistral com o cenário que se desfazia e refazia a sua bel vontade com as notas que escoavam de seus lábios; a cela parcamente iluminada com a esfera se estruturou em um extenso armazém com um azul mediano revestindo as paredes e um verde florescente cobrindo o chão — havias estrelas e bolas desenhadas remetendo a uma caixa de brinquedo.
No ângulo que estava fora capaz de vislumbrar diversas figuras brotando do vácuo, o andar endurecido com os membros articulados feito uma boneca e a textura branca e plástica do que deveria ser a pele frisando sua condição artificial. Os manequins pararam de se mover assim que a fonte de luz as banhou, revelando que cada uma possuía uma aparência distinta da outra, dando individualidade pra elas.
“Por que não mostrar ao mundo o meu espetáculo?”
Diva estava habituada a perseguições e a resistir a horas de corrida de sobrevivência sem cessar, não seria um desafio hercúleo para escapar. Sua resiliência aprimorada somada ao vigor lhe permitiam ser eficiente em lutas, apenas precisava elaborar uma estratégia que detivesse o maluco e liberasse os reféns. Congelou com o aperto repentino em sua mão enluvada, a conscientizando da presença da menina mais velha, restando somente as duas para jogar.
“Pensei que fosse gostar de uma companhia, dizem que não há diversão maior que estar com outras pessoas. Veremos o quanto disso é verídico”
A mudança de planos a obrigou a reformular tudo o que tinha orquestrado em um curto e apertado espaço de tempo, precisava garantir a incolumidade da menina e a salvação de ambas antes de comprar uma luta com o cabaretier. No campo de batalha havia muito mais envolvido que só o combate — corpo-a-corpo ou armado — e a cautela seria sua ferramenta naquele inoportuno momento.
— Fique comigo e não me solte até eu disser, ok?
A menina assentiu.
Diva a posicionou para trás protetoramente, contando quantos manequins teria de enfrentar para sair dali. Embora tivesse treinado a arte da guerra desde tenra idade para nunca depender totalmente de outras pessoas, seu maior trunfo consistia mais na parte de montar táticas que lhe providenciassem vantagens seja para um escape furtivo quanto para uma vitória sem perdas e isso evitou que morresse durante muitas desafortunadas ocasiões no passado. Ela poderia arriscar uma batalha com todos eles e fugir, mas não podia desperdiçar energia e esforços sem nem saber nada sobre o lugar tampouco sobre as criaturas.
— Qual é o seu nome? — perguntou pra garotinha.
— Melissa.
— Escuta, Melissa, nós precisamos passar pelos manequins e isso pode ser perigoso, então peço que confie em mim. — se agachou sem baixar a guarda. — Suba, não temos muito tempo.
Obedientemente Melissa seguiu as instruções de Diva e agarrou nela, fechando os olhos.
Respirou fundo antes de esquivar do bote de um dos manequins — o que desencadeou uma reação em cadência com todos vindo contra as duas. Saltou para trás para desviar de três, rolou para o lado para evitar dois e, em um intervalo de segundos, se apoiou na parede para tomar um impulso derradeiro e evadir por entre eles, usando a perna esquerda para calibrar o peso e aviar para fora do armazém. Ter que carregar a garotinha não influenciou o resultado da fuga, mas isso ainda a preocupava.
Sem se dar ao luxo de refrear, Diva continuou no ritmo ciente que os manequins se amontoaram debilmente no encalço de ambas. A frente delas um sinuoso e opressor corredor se estendia com as mesmas paletas de cores do armazém com um azul menos convidativo e umas tonalidades mais escuras, os desenhos amarelos que antes tinham a estética mais amigável, agora, se mexiam e faziam caretas amedrontadoras. Melissa se encolheu com a visão, tanto pelo pavor quanto pela descarga de adrenalina que a fazia se sentir enferma.
— Ei, fica tranquila, vou proteger você. — Diva assegurou sem parar sua ágil corrida. — Vamos sair disso!
“Você não gostou dos contorcionistas? Achei que meus artistas fossem suficientes pra te entreter. Mas continuem, ainda tenho muitas cartas na manga”
Ela deu uma olhada rápida por cima do ombro vendo os manequins as perseguindo das maneiras mais bizarras possíveis; alguns corriam igual humanos, outros pulavam na multidão e os mais barulhentos se contorciam em poses inumanas e se deslocavam pelas paredes e o teto em alta velocidade. Não era tão veloz quanto eles tampouco tinha competência para combali-los sem se sacrificar desnecessariamente.
Só tinha uma chance e não podia falhar.
Com um movimento fugaz, rodando o corpo sem reduzir a velocidade, imbuiu o punho com aura utilizando o conceito de energia cinética e socou, com toda força, o manequim que liderava a horda e o lançou, feito bola de boliche que derruba os pinos, uns contra os outros com o impacto o que ajudou a se distanciar das criaturas.
— Isso foi incrível. — Melissa murmurou.
Uma risada ecoou pelo corredor, fazendo Diva assumir uma postura mais defensiva.
“Ainda temos muitas atrações, minha cara. Isso é o começo”
Com poucas alternativas para recorrer, Diva prosseguiu pelo corredor com os músculos começando a protestar pelos estímulos ininterruptos, ocasionalmente se certificando de que Melissa estivesse bem. Entrou em outra sala enfeitada pra alguma festa, balões de todas as formas e cores suspensos por todo lado e mesas dispostas com quitutes de aniversário.
“Por que não se sentam e comem um pouco?”
Melissa se atentou aos doces e ganiu horrorizada.
— Não são doces... Não são doces. — balbuciou em pânico.
Diva entendeu o recado.
— O que você quer com isso? — berrou, despertando seres ocultos atrás de esquinas da sala. — E por que você leva crianças? O que você é?
“Quantas perguntas. Não dá pra você simplesmente se calar e aproveitar um pouco?”
— Você é um demônio. — apostou sua única ficha na possibilidade.
“Bingo. Não foi difícil, não é? Mas como bom anfitrião devo entreter meus convidados e lhes dar uma boa recepção, certo? Eu sou um demônio dos sonhos, me alimento de sonhos. Não somente isso, me alimento da felicidade e inocência. Adultos não são uma boa fonte de alimento. Claro, poderia simplesmente devorá-los como os outros, mas gosto de pensar em mim mesmo como superior, um cavalheiro”
— Sequestrar crianças parece algo que um cavalheiro faria?
Ele gargalhou.
“Eu não sequestro ninguém, elas vem de boa vontade. Só lhes dei uma boa experiência longe de pais, um mundo de diversão e liberdade”
— Eu não vi nenhuma liberdade com crianças presas aqui. — acusou ferozmente.
“As vezes precisa ser um pouco mais severo pra se conseguir algo”
— Maltratando crianças? — rosnou.
“Eu não faço nada, apenas dou um alerta pra elas, nada de mais”
— Você... Vai pagar por isso, seu monstro!
O cabaretier riu novamente, satisfeito com a fúria indomável da mulher.
“O que vai fazer? Está presa nisso... Como eles. Você pode aceitar sua condição, afinal aqui tenho todo poder. Nem você e nem ninguém tem algum efeito sobre esse lugar”
O tremor soprou uma camada de poeira sobre as duas alertando-as sobre a nova presença que lentamente se erigia nas sombras.
— Ele está aqui! Está aqui! — Melissa berrou.
“Como eu disse: só eu tenho poder aqui”
Hipno se assomou com um sorriso convencido e vestido de praxe.
“Vocês não são divertidas”
Na cerne do caos, Diva sinalizou para Melissa correr assim que ela a soltasse. O demônio precisava da garotinha para abastecê-lo de energia e não iria causar danos a ela se ficasse para afrontá-lo de frente, não havia mais como sair sem uma ação mais direta. Tudo que fizera até então fora unicamente para poupar forças e arquitetar um plano de fuga viável e assertivo, porém não lhe restou muito a fazer.
Cautelosamente baixou Melissa se interpondo no caminho.
— Corre o quanto puder, vou te alcançar.
— Mas...
— Por favor, vá. — mexeu a mão para que seguisse a rota. — Não olhe pra trás.
“Tenho uma ideia melhor”
Hipno pegou um apoio de microfone e encenou, como um grande apresentador.
“Respeitável público, hoje vou lhes mostrar a nova atração...”
Diva engasgou ao não conseguir mexer os braços e ver pequenos fios, quase transparentes, anexados dolorosamente em seus pulsos e os içando sobre sua cabeça.
Quando foi que ele...?
“Já que não quer se juntar como público, farei você parte dela”
Cantarolou movendo a mão em um gesto displicente que a conduzia conforme seu prazer — induzindo-a como um títere sob seu domínio. Uma constatação que o satisfez, estampando um sorriso perverso em seu rosto pálido. Em dissonância com os demais, Hipno não possuía traços demoníacos tão proeminentes sob uma fachada excêntrica decorada, era muito mais próximo de um humano em termos de vestimentas e comportamento e isso a fez ponderar em como eles se infiltravam e interpretavam esse papel com excelência que se não conhecesse assumiria que, de fato, era um homem normal com um humor deveras devasso.
Ele tinha cabelo preto com tufos de branco nas laterais, usando um longo casaco vermelho com detalhes em amarelo, uma cartola e um colete em um tom mais voltado ao bege.
“Você deve ter algo incomum, farei questão de descobrir... Talvez um pouco de dissecção”
Ela tentou romper os fios através de pressão bruta, puxando os braços o máximo que fora possível, sem funcionar e lacerando os pulsos no processo. Repetindo o ato sob a supervisão desdenhosa do cabaretier que ajeitou as luvas que usava se preparando para o ápice do espetáculo: vivissecção. Diva arrastou as pernas para trás e ficou menos nervosa por ainda ter seus membros inferiores a disposição e não ser totalmente manipulada nesse jogo, apenas teria que bloquear os intentos dele e achar outras maneiras para se libertar.
“Tente relaxar, serei gentil com você”
Ostentando o sorriso maquiavélico, Hipno bateu palmas e as paredes, maciças, se desprenderam feito cortinas revelando as crianças ao redor, sentadas com compleições congeladas em felicidade e empolgação. A visão lhe pareceu tão artificial que sentiu o estômago se embrulhar e contorcer.
— O que fez com eles?
“Nada. Como disse: eles estão aqui pra se divertir e é isso que farei a eles. E você é parte da atração, sinta-se honrada por tal privilégio”
Uma música ecoou com múltiplas vozes cantando em sincronia com uma banda ao fundo.
“Tudo aqui tem um propósito, agora você fará parte dele”
Diva viu algo se materializar num ponto escuro e se aproximar com saltos alegres: um palhaço. O que tirou a foto de antes.
De repente, os olhos se arregalaram e soube; por meses viveu em situações de vida ou morte, se privou de sono e racionou comida para ter um pouco mais por dias e ainda suportando uma carga emocional maior do que qualquer um suportaria, não seria um maluco que tiraria o mérito disso. Ela não morreria ali, não sem ver mais do novo mundo. Não antes de entender o que realmente sente por Dante. Queria provar o que antes, em um passado longínquo, era somente uma expectativa distante. Teria a tenacidade para lutar e salvaria aquelas crianças de um fim terrível dentro de uma tenda de um lugar que deveria ser divertido.
Ignorou as dores e novamente se debateu contra as amarras, porém foi um estalar alto que fez Hipno recuar: os olhos dele se estreitaram antes de se sobressaltarem com o teto rachando em linhas perpendiculares e tremidas. Seja o que tenha causado aquele estrago, não estava muito feliz. Na verdade, pela forma que as ranhuras surgiram parecia que os golpes estavam destinados a um ponto específico.
“O que? Impossível.”
As rachaduras se estenderam pela escuridão acima sob o rombo de uma lâmina. A distração forneceu a Diva uma chance de sair do controle de Hipno enquanto ele testemunhava a deterioração do mundo que fabricou — a derrocada verdadeira do seu reino. Havia horror no que antes não existia, a confiança desapareceu substituída por puro medo. Um sentimento que nunca imaginou ver em um demônio.
“Não pode ser, ninguém teria poder pra isso. Não tem como...”
Os estilhaços explodiram para todos os lados em uma chuva de cacos de vidro e lascas. Diva se protegeu dos pedaços cortantes, rolando para longe do escopo.
— O que temos aqui... Te achei, doçura.
Uma aura poderosa preencheu tudo com tonalidade carmesim, convertendo o picadeiro em tenebroso cenário que irradiava cólera, uma atmosfera quase intragável.
— Eu me considero um cara bem razoável, de verdade. Mas existem duas coisas que não posso tolerar — ele soltou o ar em vapor. — A primeira é mexer com crianças, machucar elas é algo muito além do que posso admitir, é imperdoável. E a segunda é ferir a minha garota. Creio que essa será uma lição difícil que vou ter que te dar.
Na diminuta fonte de luz, uma silhueta corpulenta ascendeu. Ele estava apoiando um dos braços com a enorme espada, parecendo bastante casual. Entretanto, ao virar o rosto, os olhos emitiam um brilho vermelho doentio — possesso — como se tivessem interrompido o descanso de algo inominável que agora estava faminto e furioso. Ele sorriu e tudo que Diva teve certeza foi: Dante é assustador quando alguém provocava sua ira.
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