Treze
“Pegue minha mão, tome minha vida inteira também. Porque eu não consigo evitar me apaixonar por você.”
Elvis Presley | Can't Help Falling In Love
28 de novembro de 1997,
sexta-feira.
Apertar uma campainha nunca fora tão difícil quanto agora. Já desci e subi os degraus de concreto mais vezes do que sou capaz de contar. Confiro se meu vestido preto de lã não possui alguma dobra ou amasso, mas ele está perfeitamente bem alinhado em minhas curvas. Meus fios ruivos caem como cascatas até a metade de minhas costas e minhas botas de cano longo me deixam um pouco mais alta. Levo o indicador até o botão minúsculo da campainha pela milésima vez nos últimos dez minutos – e assim como das outras vezes, recolho minha mão.
— Ninguém merece!
Scott resmunga, se levantando da calçada em um ímpeto de impaciência. Suas passadas em minha direção são duras e decididas. O loiro voltou a ser o cara fechado e de poucas palavras que conheci em outubro. Ele retornou a se sentar sozinho nas arquibancadas na hora do almoço. Dispensa minha companhia e a de Sarah com a desculpa de que precisa estudar. Sei que ele está mentindo. Contudo, também sei que o motivo para agir de tal forma não tem nada haver com algo que eu fizera. Scott voltou a se isolar desde o dia do meu aniversário – e do reencontro de sua mãe.
— O que está fazendo?! — Minha voz soa estridente quando Scott estica o braço por cima do meu ombro, pressionando a campainha acobreada. Tento impedir ao bloquear sua passagem com meu corpo, mas é um esforço inútil; o som já ecoou pela casa.
— Você não pode evitar isso pelo resto da sua vida. É só um almoço.
Pressiono meus lábios em linha reta, controlando a vontade de lhe dar um soco no estômago para relembrar o tempo em que eu o odiava. Respiro fundo, acalmando as batidas frenéticas do meu coração. Nesse momento, percebo que adoraria cancelar esse almoço e ir correndo para a minha casa comer com mamãe, os pais de Sarah e Christopher e minha melhor amiga – aliás, Chris preferiu não ir e vai passar o dia de hoje com Anne.
— Já falei que odeio você?
— Mais do que meus dedos são capazes de contar, ruivinha — o canto direito de sua boca se repuxa em um sorriso mínimo, mas verdadeiro.
— Como eu estou? — Indago, abrindo os braços e dando uma voltinha sobre os calcanhares.
— Você quer a sinceridade ou uma mentira bonita?
— Tanto faz, só estou nervosa — confiro o esmalte branco em minhas unhas outra vez, controlando a vontade de roer a pontinha do meu polegar.
— Você parece prestes a encarar um exército de zumbis — ri, mas seu sorriso desaparece ao notar minha feição desgostosa. — Você sabe que tá incrível, Tásia.
Uno as sobrancelhas, estranhando a forma como me chamou. Porém, antes que eu possa lhe questionar sobre isso, ouço passos do outro lado da porta. Endireito a postura, inspirando uma quantidade generosa de ar e o armazenando em meus pulmões. A maçaneta acobreada gira em câmera lenta na minha mente – embora tudo aconteça muito rápido fora dela. Em poucos segundos, um garoto do tamanho de Scott é revelado. Ele possui cabelos castanhos que chegam na altura de seus ombros, olhos esverdeados como esmeraldas e uma pele tão limpa quanto bumbum de bebê. Aos poucos, o rapaz – que acredito ser o Clay – sorri em nossa direção e nos dá espaço para entrar. Ele traja um suéter listrado nas cores preto e vermelho, calça caqui e pantufas com meia. Prendo um sorriso. Esse é o tipo de calçado que eu adoraria estar usando agora.
— Deve ser a Anastásia — questiona, seus lábios se repuxando ainda mais ao revelar seus dentes brancos e alinhados. — Sou o Clay, seu quase meio-irmão.
— Prazer, Clay — sorrio, estendendo minha mão em sua direção. Ele devolve o cumprimento, analisando Scott ao meu lado. — Ah, este é Scott. Meu amigo.
— Prazer, cara — ambos dão leves batidinhas nas costas, como se já fossem amigos de longa data.
— Onde está meu pai? — Pergunto, analisando o cômodo onde estamos.
É estranho voltar aqui – na minha antiga casa –, onde passei maior parte da minha vida e saber que agora, outras pessoas além do meu pai a ocupam. Sinto como se nunca houvesse sido minha, como se eu nunca tivesse caído da escada aos dez anos e quebrado meu pé. Me vejo como uma visita prestes a almoçar com algum parente distante. Não é como se antigamente, todos os dias mamãe, papai e eu nos sentassemos na sala de estar para comer pipoca e assistir algum desenho animado na televisão. Os móveis foram trocados de lugar ou substituídos, as paredes estão mais claras e vivas, indicando que foram pintadas recentemente com tinta branca. Há alguns porta-retratos na estante principal da sala, onde fotos minhas e de papai ocupam a maioria. Noto que Clay também divide espaço comigo com fotos ao lado de sua mãe.
Apesar de sentir um pouco de ciúmes, sei que será apenas uma questão de tempo até que eu faça questão de ter minha própria foto com Clay sobre aquela estante.
— No quintal. Ele e minha mãe estão travando uma batalha pra ver quem corta mais batatas em cinco minutos — comenta casualmente e acabo rindo.
— Essa eu quero ver — Scott também sorri e seguimos Clay até os fundos da casa.
A última vez que estive aqui – uns onze meses atrás –, o corredor que nos levava até o jardim era vazio. Agora, um misto de cores enfeitam as paredes brancas em formatos de quadros. Uma pequena mesa rústica de madeira está ao meu lado direito, portando uma bandeja espelhada com variadas garrafas de whisk. Meu pai nunca fora muito de consumir bebidas alcoólicas, mas gostava de beber alguns goles do líquido âmbar após um dia cansativo de trabalho ou quando brigava com a minha mãe. Segundo ele, lhe acalmava ao ponto de não ligar para absolutamente nada ao seu redor. Não sei se ainda faz tal coisa, ou se seu relacionamento com Adele é tão bom ao ponto dessas garrafas terem se tornado apenas parte da decoração.
Cruzamos as portas duplas de vidro, sendo recebidos pelos flashs dos raios de sol que atravessam as folhas alaranjadas das árvores. O dia está bonito hoje, apesar da brisa fresca típica do outono; nenhuma nuvem acinzentada no céu, apenas um vasto manto azul-oceano. Meus olhos recaem diretamente na árvore com longos e grossos troncos de madeira. A casinha que meus pais construíram quando eu tinha seis anos ainda enfeita os galhos firmes; intacta, cor-de-rosa com a porta e as janelas pintadas de branco. Está totalmente fechada, um claro lembrete de que minha infância acabou já tem alguns anos e nunca mais dará as caras outra vez.
Risadas ecoam no galpão, chamando a minha atenção. Robert e Adele estão sorrindo, ambos descascando batatas e as colocando em uma tigela. Eles trajam um avental branco com estampa de tomates. Adele usa uma touca preta que protege seus cabelos de caírem na comida, mas o que me chama a atenção, no entanto, é o total de zero fios de cabelo na cabeça do meu pai. Arregalo os olhos, apressando meus passos pela grama rala do quintal até estar na entrada de madeira do galpão.
— Pai? — Encaro o topo de sua cabeça, chamando a atenção dos dois. — O que aconteceu com o seu cabelo? — Aponto, perplexa.
— Filha! — Exclama, largando as batatas na tigela e dando a volta na extensa mesa de madeira. — Gostou do meu novo visual?
— Você tem um cabeção agora — gargalho, ficando na ponta dos pés para dar um leve tapinha em sua careca. — Tá bonitão, huh?
— Você tá cada dia mais linda, querida — sou acolhida por seu abraço de urso, saindo alguns centímetros do chão. — Então você veio mesmo — meu pai me solta, olhando para um ponto fixo atrás de mim. Scott se aproxima também e ambos apertam as mãos. — Achei que estivesse blefando.
— Você me convidou, eu vim — sorri, voltando a guardar as mãos nos bolsos. Ele está nervoso. — Aliás, o cheiro tá excelente.
— Não é por nada, mas meu peru é excelente — Adele se gaba, limpando as mãos no pano de prato e cumprimentando meu amigo com um abraço. — Espero que gostem de peru recheado.
— Eu adoro — sorrio e sou sincera, recebendo um abraço apertado. Ela cheira a orégano e sabonete de lavanda. — Posso ajudar em alguma coisa?
— Estou fazendo uma torta de maçã... — Clay se pronuncia, apontando a casa com o polegar por cima do ombro. — Se quiserem.
— Eu vou ajudar seu pai e a Adele aqui fora — Scott comunica, recebendo um avental preto com espátulas de bolo estampadas no tecido. Sorrio, me amaldiçoando por não ter uma câmera para registrar esse momento cômico.
— Certo — pisco em sua direção, seguindo Clay para dentro de casa. Os ingredientes para a torta estão todos espalhados sobre a bancada de mármore, virando uma verdadeira zona de comida. — Você precisa de ajuda com o quê?
— Gosta de cortar maçãs? — Ele balança as sobrancelhas, sugestivas. Sorrio e confirmo com a cabeça, recebendo uma sacola abarrotada de frutas. — Então... Você estuda na High Five Snakes?
— Sim. Foi um sacrifício entrar — reviro os olhos e sinto minhas pálpebras pesarem apenas com a lembrança das tardes cansativas estudando. — Você estuda aonde?
— Na Saint Price College.
Meu queixo vai ao chão.
— Uou... isso é tipo... a escola oficial dos gênios — arregalo os olhos, abrindo a gaveta dos talheres. Por sorte, ainda estão no mesmo lugar. — Você constrói robôs ou sabe a cura para alguma doença?
Clay tomba a cabeça para trás, gargalhando. Ele se abaixa em frente aos armários pretos, abrindo a porta de um e pegando uma tigela transparente. Caminho até a pia, ligando a torneira para lavar minhas mãos. Seus olhos esverdeados estão brilhantes ao me encarar outra vez.
— A maioria dos alunos não sabem nem amarrar o próprio cardaço. A Saint Price College é superestimada. Poucas pessoas fazem alguma diferença importante lá dentro — conta, indiferente. — Entrei porque gastei dois anos da minha vida estudando para as provas, não porque construí um robô revolucionário ou descobri a cura para o câncer — ele sorri, abrindo um pacote de bolachas maizena.
— Eu passei o verão todo estudando com os meus melhores amigos para entrar na HFS — comento, descascando as maçãs. — Foi cansativo e pensei em desistir várias vezes, mas aqui estou eu; no meu último ano e mantendo as notas acima da média sem surtar ou querer arrancar minha cabeça!
— Dá pra acreditar? Daqui poucos meses estaremos indo para a faculdade e nossa... nem sei se tenho roupa para esse momento — caímos na gargalhada, minha barriga doendo por conta dos movimentos. — Quer um suco? Água? Refrigerante…?
— Um suco — continuo picando as maçãs, enquanto Clay abre a geladeira e pega dois copos no armário. Assim que ele coloca o vidro em minha frente e serve a bebida amarelada, meu nariz pinica com o cheiro adocicado. Recuo um passo para trás. — Ah, eu tenho alergia a pêssego!
— Sério? — Clay arregala os olhos, retirando o copo da bancada e despejando o líquido na pia. — Desculpe, eu não fazia ideia. Você tá bem? Seu rosto está vermelho.
— Tá tudo bem sim — sorrio, dispensando suas desculpas com a mão. — Temos uma tarde inteira para descobrir os gostos e as alergias um do outro.
Clay Malik tem uma coleção gigantesca de medalhas que ganhou em todas as competições de natação vencidas. Ele gosta de estudar e passa boa parte do dia com a cara soterrada em livros didáticos – sim, meu meio-irmão é a prova viva de que pessoas amam estudar por simplesmente amarem do fundo do coração queimar o cérebro resolvendo diversas questões de várias matérias. Clay também pretende entrar na Blizzard e cursar medicina. Ele gosta de refrigerante de laranja, sua comida preferida é macarrão com queijo e seu gênero musical favorito é o pop. Seus sonhos e gostos são bem parecidos com os meus, tirando a parte em que ele diz que é fascinado por livros e filmes de romance.
Bem, até entendo seu fascínio, já que meu meio-irmão vive uma história de amor.
Clay e Derek são namorados há três anos. Se conheceram em uma boate gay, quando Derek derrubou acidentalmente cerveja em sua camiseta azul. Eles trocaram flertes naquela noite e, na hora de ir embora, ambos pegaram os números de telefone do outro. No dia seguinte, já marcaram um encontro e estão juntos até hoje. A história é linda, mas todo conto de fadas tem seu vilão. No caso de Clay, o vilão de sua história era o seu próprio pai. Se é que um ser desprezível desses pode ser chamado assim. Meu meio-irmão contou que foi expulso de casa, logo após Carl lhe dar um soco no olho e dizer que não aceitaria um filho gay convivendo debaixo do mesmo teto que ele.
Carl morreu duas semanas depois, devido a um acidente de carro. Ele saiu para beber em uma noite chuvosa e acabou apagando no volante. Bateu o automóvel na traseira de um caminhão e chegou sem vida ao hospital. Clay não fica triste e nem feliz ao falar de seu pai; parece indiferente. Apenas torce que, de onde quer que ele esteja, tenha aprendido com o erro e agora torça pela sua felicidade.
— Então eu parei de ler livros e assistir filmes de romance. Tudo me parecia irreal demais, superficial demais — enfatizo, engolindo a bola áspera de saliva que ficou entalada em minha garganta. — Ou tudo aquilo era uma grande mentira para massagear o lado carente das pessoas, ou o destino foi muito babaca comigo mesmo.
Abraço ainda mais a almofada escarlate de Clay contra meu corpo, sem encarar os três garotos em minha frente. Estamos jogando verdade ou desafio – somente com verdades que mais me parecem perguntas do que qualquer outra coisa –, depois de uma sessão constrangedora de fotos com meu pai e Adele no andar de baixo. Após Scott Summer fazer todos os comentários sarcásticos possíveis sobre minhas fotos de quando eu ainda era uma criança banguela e raquítica, fechei os álbuns e disse que estava entediada. E aqui estamos nós.
— Você não sente vontade de tentar de novo? De sentir borboletas no estômago e aquela sensação quentinha no peito? — Clay questiona, curioso e ao mesmo tempo um pouco incrédulo.
Quando a garrafa de refrigerante parou com o gargalo em mim e depois em Derek, o garoto de cabelos azuis me perguntou o motivo pelo qual eu franzi o cenho ao escutar que seu namorado amava tudo relacionado ao romance. Contei a eles que meu relacionamento foi ruim e apenas isso. Omiti que estava em uma relação abusiva e tóxica – não queria que me olhassem com pena ou algo do tipo, como se eu fosse uma vítima merecedora de tal sentimento. Queria, pelo menos uma vez na vida, esconder essa parte da minha história do resto do mundo.
Quando você conta para as pessoas que já esteve em um relacionamento abusivo, elas te julgam com o olhar – embora mantenham as bocas fechadas. Tenho a leve impressão de que, se fôssemos capazes de ler mentes, conseguiríamos encontrar uma lista extensa de perguntas rondando os pensamentos delas.
Por que você não saiu antes?
Se sabia o tipo de pessoa que ele era, por que insistiu?
Você não viu os sinais? Isso é tudo culpa sua por ter fechado os olhos!
A verdade, é que muitas vezes, quem está em um relacionamento abusivo não sabe que está de fato em um. Não saí antes, pois estava cega. Era como se eu me fechasse para o resto do mundo; como se o meu universo inteiro estivesse em uma pessoa só. Quando estampam o rosto de um assassino ou assaltante nos jornais e na televisão, você só sabe que aquele indivíduo é um criminoso porque lhe mostraram que ele é. Você pode ter cruzado com aquela pessoa na rua, no ônibus ou no supermercado e nem ter se dado conta de que estava a poucos metros de distância de alguém perigoso; e é exatamente isso que acontece quando nos relacionamos com pessoas tóxicas. Não sabemos quem são, não é como se viesse um aviso grudado na testa ou os efeitos colaterais descritos em uma bula. Assim como nos jornais, só percebemos – muito relutantes ainda, aliás – quando alguém nos aponta os sinais. Esse tipo de relacionamento, esse tipo de pessoa, manipula a nossa mente tão bem, que nos faz acreditar que está tudo certo. Quando nos damos conta do buraco em que estamos, a realidade é como uma facada no peito.
Impiedosa.
Cruel.
E dolorosa.
— Não — respondo, um pouco ríspida demais. Balanço meu corpo sobre o tapete felpudo do quarto de Clay, puxando alguns fiapos da pelagem cinza com os dedos para me distrair. — Também não acredito que alguém seja capaz de despertar isso em mim outra vez e me passar a segurança de que é real.
Finalmente deixo de fitar o tapete, encarando os três pares de olhos que me observam atônitos. Esboço um pequeno sorriso sem desgrudar os lábios, dando o assunto como encerrado e girando a garrafa de refrigerante. O gargalo para em Scott e depois em Clay.
— Você quase não falou — Clay se ajeita sobre o tapete, empolgado. Scott realmente jogou xadrez com ele mais cedo, enquanto eu ajudava Derek e Adele com as louças sujas na cozinha. — Tenho muitas perguntas.
— Só pode uma. São as regras — Scott parece entediado ao revirar os olhos, mas endireita a postura para ouvir as perguntas do garoto em sua frente.
— Eu faço as regras — solto uma risadinha e o loiro bufa, bagunçando os cabelos. Até Derek se aproximou mais para descobrir informações do garoto misterioso diante de nós. — Conta o significado de pelo menos uma de suas tatuagens.
— Faço elas quando estou entediado. Nenhuma tem um significado especial.
— Idade?
— Dezenove.
— Signo?
— Não sei — Scott enruga o nariz, tentando se lembrar. — Acho que Áries.
— Hum… então você gosta das coisas do seu jeito — Derek retorce os lábios para baixo.
— E é um pouco explosivo — Clay completa.
— Sério isso? — Scott solta uma risada descrente. — Quem acredita nessas coisas?
— Nós acreditamos — meu meio-irmão aponta para si e em seguida para o namorado. — Seu signo diz muito sobre a sua personalidade. Por exemplo, você é ariano. Pessoas desse signo odeiam injustiças e guardam muito rancor dentro do peito. Às vezes, seu orgulho te sufoca e tudo que quer fazer no momento é extravasar sua dor ou indignação para o mundo.
— Você também é péssimo em demonstrar seus sentimentos. Prefere guardar eles para si próprio, o que acaba lhe deixando um pouco aflito e sem saber o que fazer — Derek dá continuidade. — E quando você finalmente consegue colocar tudo para fora, é como uma bomba; altamente destrutivel.
— Vocês fumaram? — Scott cai na gargalhada, negando com a cabeça. — Isso não tem nada haver comigo — o loiro desvia o olhar para o tapete acinzentado, puxando alguns fiapos assim como eu fizera anteriormente.
Ele está mentindo.
— Pense o que quiser — Clay dá de ombros, girando a garrafa mais uma vez. — No fundo, você sabe que tudo isso é sobre você.
Saímos da casa do meu pai por volta das quatro e meia da tarde. Adele me fez prometer que voltaria lá o mais breve possível; ela quer me ensinar alguns truques de fotografia e eu quero muito aprender. No final, tudo ocorreu melhor do que eu imaginava. Se meu pai buscava algum tipo de aprovação da minha parte, tem toda ela. Fico feliz com meu coração – por não ter guardado nenhuma mágoa ou rancor dos três. Eles estão felizes, lapidando uma família nova a base de alegria e cumplicidade; e depois das coisas que Clay me contou sobre o seu pai hoje, desejo tudo de melhor para o meu meio-irmão e minha madrasta. Confio no meu pai para essa missão, sei que ele fará o possível e o impossível para sustentar o carinho e o amor que os envolve.
— Você se saiu bem hoje — a voz de Scott preenche o carro, chamando minha atenção. Nem percebi que já estávamos parados em frente a minha casa. — Eles são legais.
— Não é? — Sorrio orgulhosa, cutucando seu braço com o meu cotovelo. — Não estou com ciúmes ou triste pela felicidade do meu pai. Estou me sentindo em paz.
Scott Summer sorri, a cabeça amparada no encosto do banco. Ele está com os olhos fechados, a respiração lenta e tranquila. Uma mecha rebelde de sua franja cai em sua testa quando uma brisa fresca entra pela janela do motorista. Acabo levando minha mão até ela, retirando-a de seu rosto. Ele abre os olhos, pigarreando e se ajeitando sobre o banco confortável. Recolho minha mão.
— Nos vemos segunda-feira?
Sua voz soa indiferente, como se não desse a mínima caso eu dissesse agora mesmo que nós não nos veríamos na segunda. Ignoro a pontada de decepção que se aloja no meu peito e também pigarreio, pegando minha bolsa no banco de trás e soltando o cinto de segurança.
— Claro — forço um sorriso, mas tenho certeza de que saiu mais como uma careta. — Até segunda.
— Até.
Saio do carro, batendo a porta com um pouco de força. Enquanto caminho pela grama verde do meu jardim rumo à varanda, me pergunto como seria a minha amizade com Scott se ele tivesse facilidade em demonstrar o que sente. Me questiono em que ponto eu falhei – ou em que parte deixei de dar uma devida atenção – para que sua confiança em mim ainda seja tão pequena; praticamente inexistente. Solto uma lufada de ar, subindo os degraus de madeira da varanda até estar no patamar. Pesco minhas chaves dentro da bolsa, sentindo o olhar de Scott queimar as minhas costas; ele não vai embora até ter a certeza de que coloquei os dois pés para dentro de casa. Paro com a chave na fechadura, sem gira-lá.
E se Scott está esperando que eu lhe dê um voto de confiança? Quer dizer, as pessoas devolvem aquilo que recebem, não é? Meus segredos em troca dos mistérios dele; não vejo nada mais justo. Giro sobre os calcanhares, descendo os três degraus de madeira em um salto. Observo quando Scott une as sobrancelhas, abaixando o vidro do passageiro quando me aproximo. Me debruço sobre a porta, encarando sua expressão confusa.
— Você vai fazer alguma coisa agora?
— Vou estudar para a prova de biologia na segunda — responde. — Por quê?
— Você ainda não conhece todos os pontos turísticos de Snowdalle, né?
— Só o parque. Por quê?
— Então eu vou te levar em um lugar muito especial — sorrio, afastando meus cabelos do rosto. — E não aceito desculpas como resposta.
— Onde é esse lugar?
— Me espera aqui, eu já volto!
Dou as costas para o loiro, ignorando quando ele me chama pelo nome. Termino de girar as chaves na fechadura, entrando dentro de casa e fechando a porta. Largo a bolsa no encosto do sofá, rumando até o corredor às cegas – está tudo um breu aqui embaixo. Escuto risadas vindas da cozinha e caminho naquela direção; há algumas velas iluminando o ambiente e me pergunto se faltou luz no nosso bairro, mas assim que tateio o interruptor e acendo as luzes, noto que se trata de um jantar a luz de velas. Uno as sobrancelhas, encarando mamãe e Francis que estão com os olhos arregalados em minha direção.
Por sorte, os encontrei com roupas.
— Hãn… oi? — Cumprimento, meia envergonhada por ter atrapalhado o momento romântico de ambos. — Eu só vim pegar alguns lanches, já dou privacidade para vocês.
Eles gargalham enquanto eu pego uma sacola reciclável dentro do armário e começo a enchê-la com refrigerantes, biscoitos e salgadinhos.
— Posso saber onde a senhorita vai? — Minha mãe questiona, limpando o canto dos lábios com o guardanapo.
— Sair com o Scott — noto quando o olhar de Francis se torna curioso; quase posso ver as milhares de perguntas que rondam sua cabeça nesse instante. Lanço um sorriso mínimo em sua direção e espero que entenda o recado como uma garantia de que irei lhe atualizar de tudo assim que minha próxima aula de direção chegar. — Volto antes das nove, tudo bem pra você?
— Claro. Se cuidem, huh?
— Esse Scott… — Francis sorri, mas assume uma expressão séria como a de um pai ranzinza logo em seguida. — Quais são as intenções dele com você?
Solto uma risada gutural, fechando a sacola e dando a volta na mesa para depositar um beijo estalado na bochecha de minha mãe. Faço o mesmo com Francis, lhe respondendo antes de subir as escadas em direção ao meu quarto:
— Somos apenas amigos — enfatizo, já no andar de cima. — E acredito que são as melhores possíveis.
Não espero por uma resposta e cruzo o corredor rapidamente, entrando no meu quarto e pegando uma mochila velha debaixo da cama. Abro o zíper, colocando duas mantas roxas alí dentro e vestindo um sobretudo preto. Desço para o primeiro andar com a mochila nas costas e a sacola de comida em mãos. Antes de sair de casa, apago as luzes da cozinha que havia acendido e me despeço de Marina e Francis.
— Me dê as chaves — abro a porta de trás da Shelby, largando a mochila e a sacola sobre o banco.
— Como é? — Scott ri, como se eu tivesse contado a melhor piada do século. — Sem chances, anjo.
Mais uma vez no dia de hoje, uno as sobrancelhas pelo modo que se refere a mim, mas decido questionar sobre isso depois.
— Eu sei dirigir bem! Prometo que vou cuidar da Shelby como se fosse meu bichinho de estimação — junto as mãos em frente ao corpo, praticamente implorando.
— Seu gato não morreu?
Pisco.
Uma.
Duas.
Três vezes.
— Por favor?
— Porra — revira os olhos, abrindo a porta e apontando o banco para mim. — O que eu não faço por você, huh?
— Vai valer a pena, eu prometo.
Misty Mountain é o principal ponto turístico de Snowdalle. A maioria dos turistas vem para cá em busca de paz e tranquilidade, e é exatamente isso que esse pequeno pedacinho do paraíso reserva para todo mundo que resolve dar uma chance a essa cidade pacata. Para chegar ao ponto mais alto da montanha, é preciso subir uma quantidade absurda de degraus; já tentei contar, mas me perdi ao chegar em trezentos e vinte.
De acordo com a história, em 1880 uma jovem chamada Misty Dallaney fugiu de casa aos dezesseis anos. A mãe dela havia se suicidado e seu pai a trancava no porão de casa para que a garota nunca mais visse a luz do dia ou o brilho da noite. Em uma madrugada fria, Misty conseguiu escapar e procurou esconderijo nessa montanha. Ela escalou por horas até chegar no ponto mais alto, onde um pouco de terra plana lhe permitiria construir uma cama de palha. A garota não se preocupou com a possibilidade de se molhar com chuvas ou algo do tipo, ela só queria dormir e acordar olhando para o céu todos os dias de sua vida. Depois de longos meses, Misty construiu sua "casa" no alto da montanha. Haviam bancos de bambu, cama de madeira e palha e até uma lareira improvisada. Ela conseguia comida quando ia a cidade na parte da noite e roubava alguns alimentos para seu sustento. Porém, em uma dessas vezes, Misty foi descuidada o suficiente para que seu pai a encontrasse e a seguisse até o topo da montanha. O homem agrediu a filha e a jogou de lá de cima. Em seguida, ele se suicidou fazendo o mesmo.
Com o passar dos anos, os moradores – comovidos com a história trágica da família Dallaney –, preservaram tudo o que a garota havia feito. Construíram uma escadaria com retalhos de azulejos de variadas cores e tamanhos, assim como o patamar no topo da montanha. Afim de evitar que pessoas pudessem cair acidentalmente – ou não – da montanha, também fizeram um parapeito de concreto. Para finalizar a homenagem à garota de apenas dezesseis anos, uma estátua com o rosto de Misty foi construída para que as pessoas lembrassem de quem aquela montanha pertencia de verdade.
— Cacete — Scott sussurra, passando os dedos sobre a estátua velha e com limo de Misty. — Olha essa vista!
Respiro fundo, sentindo o ar puro da natureza invadir meus pulmões. É um misto de terra molhada, madeira e folhagem. Largo a mochila e a sacola sobre o banco de bambu, me aproximando de Scott para contemplar a vista; o sol já está se encaminhando para a linha do horizonte, o céu se tingindo em tons claros de amarelo, laranja, rosa e lilás. Sorrio para a paisagem, sentindo uma paz inexplicável me atingir.
— Valeu a pena? — Encaro Scott, colidindo nossos corpos.
— Eu quase morri no caminho, mas valeu sim — rio, puxando-o até os bancos de bambu. — O que exatamente viemos fazer aqui?
Abro o zíper da minha mochila, tirando as duas mantas peludas dali de dentro. Entrego uma a Scott, enrolando a outra no meu corpo e me sentando em posição de índio sobre o banco. O loiro hesita inicialmente, mas acaba fazendo o mesmo, apenas deixando as pernas esticadas.
— Quero me conectar com você — respondo sua pergunta, puxando a sacola de besteiras até meu colo. Retiro um pacote de Doritos e duas latinhas de refrigerante de uva. — Sinto que estamos distantes ultimamente. Não quero voltar à estaca zero outra vez.
Levo uma tortilha alaranjada até minha boca, me concentrando no barulho crocante e no sabor levemente apimentado. Scott Summer abre as latas, dando um longo gole no líquido borbulhante antes de murmurar:
— Me desculpe. Os dias têm sido… difíceis pra mim. Não é nada com você — viro meu rosto em sua direção, analisando seus traços tensos.
— Isso que me preocupa, Scott. Se fosse algo comigo, eu saberia como concertar e o que fazer — suspiro, desviando o olhar momentaneamente. — Mas eu me sinto no escuro em relação a você. Eu nunca sei até que ponto posso ir, se estou tocando em uma ferida não cicatrizada ou algo do tipo. Preciso que você me guie, Scott. Quero traçar cada linha do seu mapa, mas preciso que você me dê um pouco de luz.
Sinto um alívio tomar conta da minha alma, meus músculos, aos poucos, relaxando após colocar isso pra fora. Scott contorna a latinha suada com o indicador, absorvendo as palavras que eu dissera. Inspiro o ar puro com força, tomando coragem para mexer na minha ferida que há muito tempo eu não tocava.
É agora ou nunca.
— Peguei minha ex-namorada transando com o meu melhor amigo na minha cama — sua revelação vem antes que eu consiga contar a minha, tão rápida e impiedosa, que sinto um baque atingir meu corpo. — Acho que é isso que você quer saber, né? — Ele ri, mas não há um pingo de humor em sua risada. — Como eu me tornei… assim. Não vou colocar as culpas nela, porque em nenhum momento Aria me induziu a fazer as coisas que eu fiz. Mas… ela teve sua parcela de culpa.
Aria. Eu nem sequer conheço essa garota, mas sinto uma repulsa instantânea por ela se alojar em mim. Só então percebo; estou na defensiva pelo meu amigo. No final, me importo mais com Scott do que sou capaz de admitir.
— A gente se conheceu na minha antiga escola, lá em Londres. Eu era o responsável por mostrar o local para os alunos novos e Aria era uma novata. Nós trocamos o número de telefone e começamos a sair um tempo depois — Scott inspira o ar, fechando os olhos por um instante. Sei que está fazendo um esforço e tanto para se abrir comigo, então deslizo minha mão até sua palma aberta e virada para cima sobre a coxa. Entrelaço nossos dedos, apertando gentilmente sua mão. O loiro sorri, retribuindo o gesto. — Aria era engraçada, transformava meus dias entediantes em verdadeiras aventuras. Eu comecei a gostar dela e a gente acabou ficando em uma festa. Nunca fui fã de relacionamentos, mas pedi ela em namoro. Era tudo muito bom; o amor, o carinho, o sexo. Mas Aria tinha uma mania que me incomodava demais. Ela sempre, de todas as formas possíveis, via a necessidade de me causar ciúmes. Era como se alimentasse o ego dela me ver chorando pelos cantos com medo de perdê-la.
Comprimo os lábios em linha reta, sem conseguir acreditar que alguém fez isso com ele. Na minha cabeça, quem causava esses sentimentos na vida de outra pessoa era Scott.
— No meu aniversário, tive que ficar até mais tarde em uma livraria que eu trabalhava no centro da cidade. Meu melhor amigo, Matthew, me ligou dizendo que tava na porta da minha casa com algumas caixas de pizza pra comemorar. Como eu não sabia que horas iria sair daquela droga de livraria, disse pra ele onde a chave reserva estava. O que eu não sabia, no entanto, é que a Aria também pretendia me visitar naquela hora da noite. Então, quando cheguei em casa ouvi os gemidos dela. Queria acreditar que era um delírio da minha cabeça, mas aí eu subi as escadas e abri a porta do meu quarto — Scott aponta para a cama de madeira e palha, como se sua mente estivesse projetando a lembrança diante de seus olhos. — Os dois. Sem roupa. Suados. Na porra do meu colchão.
— E o que você fez? — Minha voz é quase como um sopro no vento.
— Nada — admite, umedecendo os lábios. — Eu virei as costas e saí sem olhar para trás. Caminhei até um bar barra pesada que tinha perto da livraria e bebi pelo resto da noite. Alguns caras viram o meu estado deplorável e me ofereceram um cigarro. Foi a primeira vez que coloquei a nicotina na minha boca e nunca mais consegui tirar. Depois desse dia, eu buscava refúgio no álcool e no cigarro. Fazia qualquer coisa pra não sentir aquela dor insuportável de ter o coração partido pela primeira vez e em dose dupla ainda. Aria eu podia esquecer e seguir em frente, talvez até perdoar pro meu coração ficar tranquilo, mas Matthew era o meu amigo desde a infância. Eu o via como um irmão que eu nunca tive e, no final, os dois me deram um coração quebrado de presente de aniversário.
— Eles tentaram se desculpar?
— Só o Matthew, mas eu dei um soco no nariz dele antes que terminasse o discurso clichê — ri, dessa vez com humor ao contar essa parte da história. Acabo lhe acompanhando, embora sua confissão ainda esteja circulando em minha cabeça.
— Agora tudo faz sentido — concluo, mais para mim mesma do que para ele. — Seu vício no cigarro. O motivo por não querer repetir as transas… você não quer se envolver emocionalmente com alguém e correr o risco de se afundar outra vez.
— Touché — sorri, me empurrando levemente para o lado. — Nem sempre usei jaquetas de couro ou coturnos pretos. Isso faz parte do Scott de agora. Gosto mais de mim assim.
— Gosto de você desse jeito — aponto, bebendo um gole do meu refrigerante. — Mas aposto que o antigo Scott também era legal.
— O antigo eu era ingênuo e trouxa. Não sinto a mínima falta dele, pode acreditar — o loiro se levanta, tirando um walkman e fones de ouvido do bolso da calça jeans. Estende um lado para mim, voltando a se sentar. — Agora que você já matou sua curiosidade, podemos escutar uma música vendo as estrelas e fingir que essa conversa nunca aconteceu?
Uno as sobrancelhas, encarando o céu escuro e totalmente estrelado. Nem percebi que a noite já havia caído. Pequenas luzes iluminam a escadaria da Misty Mountain, assim como algumas adornam o parapeito e a estátua de Misty. Volto meu olhar para Scott, seus cabelos balançam conforme a brisa gélida acaricia seu rosto. Ele ajeita um fone em seu ouvido e faço o mesmo. Penso em lhe questionar sobre sua mãe, mas somente essa revelação já foi um passo e tanto para ele. Decido deixar meu passado para uma outra hora – assim como o questionamento sobre Samira –, não estou afim de fazer uma competição de qual história é a mais fodida aqui – talvez a de Misty Dallaney ganhe.
Me aninho nele, deitando a cabeça em seu ombro. Inspiro seu cheiro e fecho os olhos no mesmo instante em que a melodia de Can't Help Falling In Love do Elvis Presley preenche meu ouvido. Sorrio, sentindo a bochecha de Scott repousar sobre o topo da minha cabeça. Após alguns segundos, sussurro:
— Nós somos pessoas boas. Tenho certeza que um dia vamos encontrar alguém que ame cada pedacinho da gente e faça dos nossos dias restantes aqui na terra um verdadeiro paraíso — umedeço os lábios, sentindo meu coração pulsar dentro do peito. — Não é justo que o amor verdadeiro não bata na nossa porta.
Scott Summer se movimenta sob mim, levando o indicador até meu queixo e o levantando para que eu lhe encare nos olhos. Sinto uma intensidade quase palpável emanar de suas íris azuis e uma faísca penetrar minha bochecha quando ele acaricia levemente a região. O sangue em minhas veias circula mais rápido que o normal, me causando arrepios na pele que não são por conta do clima. Sua voz é gutural e serena ao cantarolar baixinho:
— Darling, so it goes. Some things are meant to be.
Querida, é assim. Algumas coisas estão destinadas a acontecer.
Essa última cena dos dois é a minha favorita do livro todo, sério (divide espaço com a cena do primeiro beijo deles, na verdade). Para o Scott essa cena também é importante demais, mas só vamos saber no 2° livro... 👀
Selecionei o nome de três shipps, qual é o melhor (sim, sou indecisa)?
Stásia
Scotásia
Anacott
Beijinhos e não se
esqueçam da estrelinha!
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