Capítulo I
Evelyn olhava sorridente para o namorado, Victor, que cantava em plenos pulmões enquanto dirigia. A afinação não era o seu forte, levando Evelyn a aumentar o volume da música do carro até o máximo; ainda assim, a voz dele se sobressaía.
- ~I don't wanna to fall asleep 'cause I'd miss you baby~ - continuava ele, desafinado e empolgado.
- Meu deus, Victor, afinação não é crime sabia? - brincou Evelyn, mas ele a ignorou. - Se não pode contra ele, junte-se a ele. - disse ela, rindo, antes de cantar junto. - ~~And I don't wanna miss a thing...
O casal, durante toda a viagem até a nova casa, estava sorrindo e cantando animadamente. Tinham acabado de comprar uma nova casa perto de um lago, um lugar bem calmo; mergulharam numa ansiedade doce em começar uma nova vida juntos, apenas os dois.
Victor estacionou o carro e logo Evelyn começou a tirar as malas do bagageiro. Continuavam com os sorrisos bobos, como crianças que não conseguiam se conter após ganhar um doce, tinham motivos para estarem felizes e não se incomodavam em mostrar isso. Eles só precisavam um do outro para se sentirem as pessoas mais afortunadas do mundo; afinal, estavam dando o próximo passo para cumprir a promessa de eternidade que fizeram quando declararam o amor que sentiam um pelo outro.
Os olhos de Victor brilhavam enquanto encaixava a chave na porta de entrada com um cuidado quase cerimonial, Evelyn se agarrava ao braço dele, vibrando de expectativa.
- É agora! - disse ela, quase pulando no lugar.
- Calma, mulher, você vai quebrar a chave antes mesmo de entrarmos.
Ele girou a chave, e os dois ficaram boquiabertos ao abrir a porta.
- É... é perfeito - murmurou Evelyn, emocionada.
Victor deu uma olhada ao redor e, com um sorriso de lado, declarou:
- Não é uma mansão, mas é o nosso castelo.
Evelyn e Victor se entreolharam, e como se tivessem se comunicado por telepatia, correram para o quarto de casal e se jogaram na cama, entre beijos, risos e carícias.
- Eu te amo - disse Victor, olhando-a nos olhos enquanto acariciava suas madeixas ruivas.
- Eu também... mas- - Evelyn se levantou rapidamente - vamos deixar para curtir depois, não vamos nos distrair agora, ok?
- Ah, mas porquê? - se encostou na cabeceira da cama num gesto dramático - A casa já está toda arrumada, faltam só as roupas. - Apontou para o canto da cama ao seu lado com uns tapinhas. - Vamos nos divertir, por favor? - Victor fez um biquinho.
- Nanão - respondeu estendendo o dedo indicador - vamos olhar os mercados que tem por perto, e explorar mais a região. - Ela chegou até a porta do quarto, virando-se de novo para ele antes de sair - e temos de comprar algo para o jantar.
E assim foi, passearam de carro pelas redondezas e acabaram perdendo a hora, por isso a janta teve de ser pizza. Desencaixotavam as coisas que se esparramavam pela sala enquanto comiam.
- Lyn, olha - disse Victor tirando um embrulho de uma caixa. - É um presente da sua irmã.
Ela se aproximou pegando o embrulho com cuidado.
- Minha mãe deve ter colocado na caixa. - Evelyn sentou-se no sofá, e Victor foi até o lado dela.
- Por que ela não te entregou no jantar? - perguntou, observando-a a abrir o presente.
- Não sei... - suspirou. - Ela não estava bem, apenas cumprimentou todo mundo e saiu.
A irmã gêmea, Vivian, era um ponto sensível para ela. A última vez que a viu foi há três dias, na ceia de Natal, onde Vivian apareceu por um breve momento apenas para dar um sinal de vida.
Evelyn desembrulhava o presente com movimentos lentos, como se temesse o que poderia encontrar ali. Quando finalmente revelou a foto emoldurada, sentiu um nó se formar na garganta.
- É... é de quando éramos crianças. Eu, Vivian e nossos irmãos.
Victor notou o tom melancólico na voz dela e passou um braço por seus ombros.
- Ela sempre foi mais tímida que você, não é?
- Não... era o contrário. Vivian era a alma da festa, até... - Evelyn parou, tentando evitar o choro.
- Ei - disse Victor, acariciando sua mão. - Ela é sua irmã. Ela vai ficar bem.
Evelyn não respondeu, mas olhou para a foto por mais alguns segundos antes de colocar o retrato no colo e encostar a cabeça no ombro de Victor, que ao ver o semblante triste dela, com os olhos marejados, começou a acariciar sua nuca.
- Vocês eram mesmo parecidas - ele sorriu tentando acalmá-la.
- Sim... - Evelyn fungou, deixando as lágrimas fluírem pelo rosto.
Victor desviou o olhar, desconsertado; procurava um jeito de animá-la.
- Posso? - indagou estendendo a mão para o retrato, que foi entregue por ela com um ar questionador. Victor colocou o retrato na estante da sala, bem à vista. - Que tal? Aqui fica sua família, daquele lado vou colocar meus sobrinhos, e ali em cima... - abriu os braços para o alto de forma extravagante - Vai ter uma foto nossa. - Olhou para ela, entusiasmado. - O que acha?
Evelyn riu, adorava a energia cativante de Victor. Logo se acostumaram com o novo lar e começaram a adicionar detalhes pessoais: alguns sapatos e copos esparramados. Estavam felizes e satisfeitos em começar um novo ano com os corações leves.
Iam agora a um restaurante da região localizado perto do lago para assistir os fogos, tinham sido convidados pelo próprio dono, conhecido como chefe John, alguém que ajudou o casal com as mudanças e se tornou um bom amigo.
- Agora falta comprar um carro novo - declarou Evelyn, enquanto saía do carro.
- Não... - Victor trancou as portas. - Esse ainda aguenta.
Evelyn olhou-o, irritada, e lhe deu um soco na barriga.
- Falo sério, querido! Você não tinha juntado dinheiro? Até trabalhou no Natal... - lhe deu um beijo na testa.
- Juntei, mas é pouco...
- Então juntamos mais um pouco; vou voltar a dar aulas. Que carro você quer?
Victor deu uma gargalhada, e então olhou para Evelyn de cima a baixo. Ela estava linda com o um vestido branco com panos leves e esvoaçantes, com rendas nos ombros, e os cabelos ruivos amarrados num coque elegante que ele próprio fez.
- Uma Ferrari serve?
- Victor!
- Brincadeira, calma! Vamos entrar?
Evelyn bufou, mas logo abriu um sorriso.
- Vamos.
Eles foram bem recebidos por John, e apresentados para os outros convidados. Havia uma família com um casal idoso cheio de netos; Evelyn perguntou pelos pais, no que responderam que foram aproveitar um tempo a sós antes de chegarem. Os avós gostavam de passar tempo com os netos, então não se importavam, na verdade, adoravam isso.
- Amor, vou pegar bebidas - disse para Evelyn.
- Sim, uma cerveja, por favor.
- Que cerveja, Lyn! É champagne! É Ano Novo, amor.
- Mas eu quero cerveja - teimou com um semblante sério.
Victor não ousou dizer mais nada e foi buscar a cerveja.
- Está tudo em ordem, chefe John?
- Está perfeito, parceiro, e mais que perfeito - John piscou para ele. - Preparei uma surpresinha.
Victor ficou tenso, mas não se preocupou, sabia que John era um homem confiável.
Uma festa escandalosa se alastrou pelo restaurante, mais pessoas chegaram e tornaram o ambiente ainda mais acolhedor, como uma família gigante. Havia uma varanda ao ar livre onde começaram a fazer um churrasco; risos, conversas, música, o cheiro da carne se misturando com champagne, os gritos das crianças que corriam. Se alguém tinha algum problema, já não o tinha mais; todos compartilhavam sobre as novas metas e expectativas, alguns queriam viajar, outros ter mais filhos, alguém ia entrar para faculdade, uma criança queria se tornar um avião, não um piloto, mas avião. Falavam da vida como se ela fosse eterna. Até John, em dada altura, se juntou a algazarra, quando um dos empregados o informou que faltavam 10 minutos para os fogos começarem.
- Família! - ele bateu a ponta de uma colher na taça. - Em breve daremos adeus a esse ano; se foi bom, tudo certo, se foi ruim, então faça do próximo... o melhor.
Sua declaração foi seguida por aplausos, berros e assobios.
- Vamos nos reunir na varanda para assistir aos fogos. Não se atropelem, por favor.
Como pedido por John, todos se reuniram do lado de fora para assistirem ao espetáculo. Os fogos seriam soltos do outro lado do lago que, felizmente, era pequeno, então conseguiam ver e ouvir da outra margem. Depois que cada um se acomodou num canto, começaram a contagem regressiva.
10...9...
Victor segurava Evelyn pela cintura, tentando disfarçar o nervosismo. Ele sussurrou:
- Está feliz?
- Muito - respondeu ela, apoiando a cabeça no ombro dele.
8...7...
- Tem certeza?
- Claro que tenho, por quê? - Evelyn franziu o cenho.
6...5...
- Só quero ter certeza...
- Victor, o que você aprontou? - Ela o encarou, desconfiada.
4...3...2...
- Nada! - disse ele, sorrindo nervoso.
1...
Antes que Evelyn pudesse questioná-lo mais, Victor ajoelhou-se de repente, tirando os anéis do bolso com mãos trêmulas.
- Quer se casar comigo?
Como combinado, John soltou uns confetes em cima dele, que acabou por não correr muito bem, provocando algumas gargalhadas. É claro que ela disse sim, e disse várias vezes. Junto com o sim ouvia-se os barulhos dos fogos que todos assistiram em silêncio, com o coração aquecido. Assim que terminou, os noivos receberam várias congratulações.
- Pessoal - chamou John - esta noite é por conta da casa, em homenagem aos noivos.
- Não é preciso - disse Victor, nervoso.
- É sim, sejam felizes - declarou com um sorriso largo, ele era mesmo um bom homem.
Pelo resto da noite, as pessoas se divertiram como se não houvesse amanhã. Aqueles com crianças saíram mais cedo, mas nem por isso a festança abrandou. Victor também havia explicado para Evelyn que o dinheiro que guardou era para organizar a festa de casamento, por isso o carro teria de esperar. O casal só voltou para casa quando o sol estava para nascer, e cansados como estavam, apenas se jogaram na sala, Evelyn no sofá e Victor no chão, seguidos de uma série de suspiros exaustos.
- Foi divertido... - disse Evelyn com uma voz rouca e lenta.
- Foi mesmo.
- Eu ainda não acredito que você fez isso.
- Nem eu...
- Eu te amo.
- Eu sei.
- Victor...
Ele riu e se levantou para deitar perto dela.
- Eu também te amo.
Um homem falava pelo telefone enquanto se escorava no banco, dentro da cabine do caminhão.
- O chefe disse o quê? - indagou o homem.
- Não vamos até lá, Harold, há um outro armazém de reserva.
- E onde fica?
- Eu vou na frente e você me segue, pode ser?
- Combinado então.
O homem fechou a porta da cabine e deu partida. Olhou para os dois companheiros nos bancos de passageiros. O que estava no lado da porta era um novato com uma aparência bem jovem, e o do meio era um homem mais grisalho, Patrick, que já trabalhava há muito tempo com Harold.
- O que ele disse? - perguntou o novato.
- Vamos seguir o Jack, ele sabe de um armazém aqui perto.
- E é seguro? - Patrick pronunciou erguendo uma sobrancelha.
- Como assim?
- Isso são fogos - apontou para a carga com um polegar - o armazém deve ser preparado para armazenar explosivos.
Harold estalou a língua, irritado.
- Eu não sei, sinceramente. Mas é só por uma noite, para de ser mãe. Eu não vou cruzar a cidade agora para isso. O que pode dar errado?
- Se quer mesmo saber - respondeu Patrick, olhando com desconfiança para a carga. - Tudo. Isso aqui é uma bomba-relógio ambulante.
O novato olhou de relance para as caixas e engoliu em seco.
- B-bomba?
- Não literalmente, garoto. - Patrick riu, mas logo voltou a franzir a testa. - Eu acho.
Harold estava irritado com o pedido do chefe para levar os fogos restantes do espetáculo de volta para o armazém principal. Dois caminhões médios foram necessários para transportá-lo, Jack seguiu no caminhão da frente com Harold logo atrás.
Com os olhos fixos na estrada, Harold colocou a ligação com Jack no viva-voz.
- Aquele imbecil aparece para dar ordem e sai para ir curtir a vida. Meu cu que vou fazer o que ele disse. A porra do armazém é do outro lado da cidade!
Harold riu enquanto ajustava o retrovisor, divertia-se com a extravagância do amigo.
- Ele deve ter ido comer a amante.
- E daí? Também quero ir comer a minha. Me poupe!
- Enfim. Patrick perguntou aqui se o armazém é seguro.
- Deve ser, não sei como é, não tive contato com aquele armazém. Mas vai ser só por uma noite.
- Amanhã de manhã levamos os fogos para o principal? - perguntou Patrick.
- Pode ser - respondeu Harold - o chefe não deve chegar tão cedo, teremos tempo.
- Tempo temos de sobra, aquele desgraçado vai beber até dar o cu, só vai ficar sóbrio na próxima vida.
- Então vamos curtir a noite também, Jack.
- Se vamos, Harold, tem aquele clube que o Ryan recomendou. Chame o novato também.
- Não, obrigado - recusou rapidamente o novato, recebendo um olhar perfurante de Harold. - Eu não bebo.
Um breve silêncio se instalou, mas logo Jack voltou a reclamar do chefe, como se fosse pago para isso.
Victor levantou-se rapidamente do sofá da sala devido a um som estrondoso, contorceu o rosto pelos estalos da coluna. Esfregou os olhos tentando se adaptar à claridade; após uns segundos necessários para voltar à luz da consciência, foi à procura de Evelyn, a fonte do barulho.
— Que isso, Lyn? Está tudo bem? — disse ainda bocejando e esticando os braços.
— Eu vou para casa da minha mãe, Victor. Ela me ligou...
Devido ao sono, ele demorou a perceber que Evelyn chorava amargamente enquanto encaixava umas roupas numa mala.
— Lyn? Que foi isso? Se acalma — circundou-a para um abraço, deixando que suas lágrimas molhassem seu ombro. — Está tudo bem? É a Vivian?
— Sim... — Evelyn soluçava, sem sequer erguer os olhos para ele. Ao vê-la assim, Victor sentiu o corpo congelar.
— E o que aconteceu? Hum?
— Ela... tentou tirar a própria vida, Victor, ela... porquê? Por que ela fez isso? — sua voz destimbrada era preenchida por dor e desespero, Victor soube que não bastavam palavras para consolar aquela ferida..
— Seja o que for, não é sua culpa, ok? — Evelyn assentiu com a cabeça. — Leva o carro, eu me viro aqui até você voltar, ok? — acariciou sua cabeça, e deu um beijo suave em sua testa.
Victor lembrou da última vez que visitaram Vivian. Ela estava com o olhar distante, mas ainda esboçava um sorriso ao ver Evelyn entrar na sala. "Você é forte, mana", dizia Evelyn, tentando ser um pilar de força para a irmã. Mas ninguém sabia que aquele sorriso seria a última barreira antes do colapso.
— Obrigada. Você vem comigo?
— Vou ficar para terminar de arrumar a casa. Vou orar por ela, vai ficar tudo bem, ok? Não chora.
Victor tentou consolar a futura esposa; sabia quão penoso era para ela e concederia esse tempo a sós com a irmã, se for isso que ela precisasse; ele próprio não conseguia evitar se sentir culpado pela situação de Vivian, ela foi abandonada grávida pelo marido, ainda assim, estava contente por conceber a criança. A situação se agravou após o nascimento da criança, nascera doente, raquítica e não durou muito, em parte, por falta de cuidado de Vivian, que, além de sofrer pela violência do marido, depois que ele a deixou, começou a abusar de álcool e até drogas.
Para completar a desgraça, pouco tempo antes do bebê falecer, recebeu de Evelyn de que ela havia comprado uma casa, e em breve iria se mudar. Isso foi um choque para Vivian, pois nunca estiveram separadas, embora soubessem que esse momento fatídico chegaria, entretanto, tão deprimida como estava, Vivian apenas se afundou ainda mais e tentou tirar a própria vida após perder o filho.
Desde então, Evelyn esteve abatida, carregando uma culpa como se isso fosse acalmar o coração da irmã, e Victor, como a pessoa que propôs a mudança, compartilhava o peso dessa culpa, mas admitia para si mesmo que não podia voltar atrás, já havia dado entrada da casa, isso não é algo que ele pode abrir mão assim, a única coisa ao seu alcance agora era deixar sua futura esposa ir confortar a irmã.
Evelyn chegou até a casa de Vivian, foi informada pela mãe que já havia recebido alta do hospital. A casa estava escura, com bagunça por todo lado; Evelyn não tocou em nada, nem acendeu as luzes, foi diretamente ao quarto da irmã e encontrou-a deitada na cama, superfluamente submersa em cobertas devido ao calor que fazia no quarto.
Evelyn entrou no quarto em silêncio, sentou-se à beira da cama e acariciou os cabelos ruivos de Vivian, sentindo-os húmidos pelo suor, mas tão familiares e frágeis quanto ela mesma se sentia.
— Vivian... — chamou-a sem esperar uma resposta, não precisava de uma para entender que ela estava sofrendo. — Eu estou com você, sempre estarei. E eu quero que você esteja comi- — Egoísta, por um momento, Evelyn se considerou egoísta. Queria que Vivian vivesse com a dor de ter perdida para ela não ter de lidar com a dor de perder a irmã. — Desculpa, mana... — lágrimas silenciosas escorreram, esforçava-se em não emitir som algum, em não mostrar para Vivian fraqueza alguma, não tinha o direito de preocupá-la, afinal, havia abandonado ela.
— Você não entende, Evelyn. A dor é demais. Não tem como continuar assim — sussurrou Vivian, com a voz embargada.
— Eu sei que é difícil, mana. Mas a vida continua, mesmo nos dias ruins. Você não está sozinha, nunca estará. — Vivian a olhou com os olhos vermelhos, mordendo o lábio para conter um novo choro.
— Obrigada...— Vivian respondeu com a voz trêmula, levantando-se para abraçar a irmã. Evelyn sentiu o coração apertar ao ver os pulsos enfaixados, queria perguntar o porquê, se a existência de Evelyn não era o suficiente para ela, mas não se abalou, retribuiu gentilmente o abraço.
— Eu te amo, Vivian... fica comigo, você precisa ficar comigo, ok? — declarou tentando manter a voz firme, mas ainda oscilava um pouco. — Eu preciso de você mais do que nunca agora, Vivian, preciso te contar uma coisa.
Harold e Jack fumavam do lado de fora do armazém, os risos e vozes que ecoavam indicavam que não estavam em perfeitas condições para executar qualquer trabalho, em outras palavras, estavam de ressaca.
— Viu só, Harold? O chefe nem se deu conta que a carga esteve aqui esse tempo todo.
— É, valeu a pena o risco. Mas agora vamos levar isso para onde deveria estar.
— Ainda é cedo, relaxa, eu ainda estou tonto — Jack sorria alegremente, lembrando da noite bem aproveitada, mas logo o sorriso se desfez ao ver Patrick com o novato se aproximo. — Que droga.
— É perigoso fumar aqui! — protestou Patrick irritado. — Isso é um armazém com explosivos! Vocês estão malucos!?
— Cala a merda boca, eu tomo cuidado — ripostou Jack.
— Deixa para lá, Jack — disse Harold, apagando o cigarro na sola do sapato e enfiando a bituca dentro da meia. — Vamos tomar um café e então preparar a carga, pode ser, Patrick?
— Certo, mas tenham mais noção — respondeu antes de se virar, resmungando qualquer coisa para o novato que apenas assistiu nervoso.
— Vamos, Jack.
— Tá, tá, já vou — após dizer isso, jogou o cigarro no chão e se pôs a seguir Harold. Mal ele sabia que uma leve brisa e as patas de um pássaro levariam o cigarro para dentro do armazém, que uma pequena faísca seria o suficiente para instalar o caos e transformar tudo na visão mais infernal que Jack já vira.
Patrick e Jack correram em direção ao armazém ao ver uma fumaça naquela direção, mas as explosões vinham em ondas, forçando-os a recuar. Vidros quebravam, pedaços de madeira voavam como projéteis.
— Já é tarde, Jack — gritou Harold, puxando-o pelo braço. — Vem também, novato.
Jack hesitou, encarando as chamas. Um misto de culpa e desespero tomava conta de seu rosto. Se havia um momento para se arrepender e procurar a redenção, esse momento era agora. Jack olhava com um semblante perdido para o fogo que se alastrava cada vez mais, não se importou em ter seu fim ali, desde que nesse último momento ele se tornasse uma pessoa decente, pois no fundo ele sabia, ele era o culpado.
— Eu comecei isso... — murmurou, soltando-se de Harold. — Vai com Patrick e o novato para o carro, liga para os bombeiros. Eu vou tentar reter o fogo...
— Como? Como você pretende fazer isso, seu imbecil? — gritou Harold, agarrando pelo braço e fugindo das explosões. — Não há nada que você possa fazer além de sair daqui vivo!
As gêmeas seguiam em direção à casa da mãe, e para felicidade de Evelyn, Vivian estava com um semblante mais alegre do que quando a encontrou, tinham conversado bastante, e logo Vivian estava sorrindo. Mas apesar do semblante divertido das irmãs, o da mãe não parecia tão feliz quando a viram.
A mãe delas rapidamente puxou Evelyn até a sala, onde a televisão estava ligada no canal de notícias.
— Mãe, qual o problema? Vivian está bem...
— Não é isso, minha filha. É melhor você voltar agora — ela olha para Vivian entrando com os pulsos enfaixados, e corre até ela num abraço apertado. — Meu bebê, não faça isso comigo.
— Não vou, mãe. Me desculpa — olhou seriamente para a mãe. — O que aconteceu? Por que Evelyn está assim?
A pergunta foi respondida com um silêncio carregado de lágrimas enquanto todas focavam na notícia que passava: "explosões perto de um lago: 298 mortos e 643 feridos."
Evelyn saiu de casa às pressas, sem sequer se despedir da mãe e da irmã. Victor estava vivo, tinha de estar. Ele não iria abandoná-la, ele prometeu isso. Ela pousou o pé no acelerador e se foi, o mais rápido que pôde, quase sofrendo um acidente no caminho. Ao chegar na cidade, foi abordada por um dos policiais que perguntou a identidade, e ao informar que morava na região, permitiram passagem.
O cenário em volta de sua casa estava caótico, policiais, bombeiros, paramédicos, destroços quebrados e queimados.
— Com licença — abordou um dos paramédicos dentro de uma carrinha. — Sabe me dizer onde está Victor Chambers, Victor Lewis Chambers? Ele mora naquela casa — apontou para um escombro que outrora chamou de casa, que outrora havia sido o símbolo de um novo começo, que agora era o símbolo do fim.
— Sim, senhora. Só um minuto — o homem discou um número no celular, e perguntou sobre o nome Victor, após alguns acenos com a cabeça, virou-se novamente para Evelyn com uma expressão angustiante no rosto.
— Não...
— Lamentamos muito, senhora.
— Não, por favor... Não... não pode ser. Por favor, diz que não é verdade...
— Eu sinto muito — o homem pousou gentilmente a mão seu ombro. — Se quiser permanecer aqui dentro, está à vontade, diga se precisar de algo.
O homem saiu, deixando-a a sós, precisava de um tempo sozinha para assimilar a informação. Victor morreu. Era o primeiro dia do ano, e já estava assim. Ele morreu, e ela nem contou-lhe a novidade que a pouco partilhara com a irmã, talvez se tivesse lhe contado, ele teria a acompanhado.
Evelyn permaneceu imóvel dentro da ambulância, as palavras do paramédico ecoando na sua mente. "Lamentamos muito."
Ela olhou para a casa em ruínas, o símbolo de um sonho que agora não passava de cinzas. Tudo parecia um borrão. A visão, os sons ao redor, até mesmo sua própria respiração. A mão foi até a barriga instintivamente. "Victor... eu nem consegui te contar", pensou, enquanto as lágrimas queimavam seu rosto.
Com a mão no ventre, Evelyn prometeu que encontraria forças para continuar. Não por ela, mas por ele.
3875 palavras.
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