Vigésimo Sétimo
A noite já tinha caído há várias horas quando Charles reparou em Mark e Richard a entrarem pela porta do NewScot. Franziu o sobrolho. Nunca tinha visto os dois juntos sozinhos. O que estariam a tramar? Acabou de desempacotar algumas garrafas de cerveja de uma caixa, colocando-as numa prateleira. Mesmo de costas para o balcão do bar, ouviu os dois a sentarem-se falando sobre o que iriam pedir.
- O que pretendem de mim, nesta gloriosa noite de dezembro? - perguntou Charles, aproximando-se dos irmãos e apoiando as mãos na bancada do bar.
Enquanto Richard soltava uma gargalhada ao ouvir aquelas palavras, o que não surpreendeu Charles pois este sempre fora de riso fácil, Mark ficou boquiaberto.
- Já é dezembro? - questionou Mark, surpreso - Nem tinha reparado!
- Tens que melhorar as tuas capacidades de te relacionar no espaço-tempo - declarou Charles.
- Estás inspirado hoje, cheio de palavras caras - reparou Richard, sorrindo.
- Sou sempre assim, tu é que não passas tempo suficiente comigo para perceber.
- Um pouco passivo-agressivo, também - comentou Mark.
- Vocês estão aqui para beber, para comer, ou para me fazer uma análise freudiana? - queixou-se Charles, revirando os olhos - Se for digam-me, senão quem paga por esta conversa sou eu e não vocês.
Mark e Richard olharam um para o outro, escondendo um sorriso, pensando no mesmo. Apesar de todas as alfinetadas, existia um brilho nos olhos de Charles que não deixava ninguém levar a sério o que ele dizia, pois sabiam que era apenas a sua maneira de animar as pessoas.
- Para mim é o usual - esclareceu Mark, largando o menu em cima do balcão.
- Uh, sempre quis dizer isso num bar, mas nunca peço a mesma coisa - queixou-se Richard.
- Significa que também não passas o tempo suficiente num bar para que o bartender decore tudo o que tu pedes - explicou Mark.
- E tu sim.
- Definitivamente - concordou Mark enquanto Charles pousava na sua frente uma garrafa de whiskey e despejava um pouco de líquido num copo.
- Podes me trazer outro copo então - pediu Richard, dirigindo-se a Charles - Nunca fui pessoa deste tipo de bebidas, mas esta noite é mesmo para esquecer. De preferência a de ontem também.
- Ah, então estão aqui para afogar mágoas - observou Charles, curioso.
- Ele sim - explicou Mark - Eu só aproveito qualquer pretexto para beber whiskey.
Não contara nenhuma mentira. Apesar de não querer esquecer parte da noite anterior, a outra parte ele preferia deixar se desvanecer no sabor do álcool. Pegou no copo e deu um trago, girando depois o líquido no copo, mirando a sua cor ocre.
Ouviram o som de passos a aproximarem-se e Harry apoiou-se do bar, esperando que Charles notasse a sua presença.
- Olá rapazes - cumprimentou Harry, olhando para Mark e Richard e chamando a atenção do marido - Charles, eu vou andando.
- Fazes bem - concordou Charles, despedindo-se de Harry com um beijo - Vemo-nos mais tarde.
Mark observou o casal durante uns segundos e depois, quando Harry foi embora, deu mais um gole na bebida que tinha à sua frente, matutando numa ideia.
- Se não te importas que eu te pergunte - arriscou Mark, dirigindo-se a Charles - Como conheceste Harry?
- É uma história um tanto ou quanto complicada. De certeza que vocês não a vão querer ouvir agora - Charles olhou para a zona de refeições, verificando se ninguém estava a precisar dele.
Richard endireitou-se no banco, curioso, pois também nunca tinha aquela história, apesar de já o querer ter perguntado aos dois algumas vezes.
- Vá lá, temos tempo! - insistiu Richard.
- Talvez um dia - prometeu Charles, piscando um olho e afastando-se.
Mark e Richard entreolharam-se. Tinham ficado curiosos e com certeza, mais tarde, voltariam a insistir no assunto com Charles e Harry. Resumiram a sua conversa anterior e, pouco a pouco, Mark foi-se sentindo mais há vontade com o irmão embora, num canto da sua mente, continuasse o sentimento de culpa que tinha a impressão que nunca iria desaparecer.
* * * * *
As pessoas que estavam no NewScot foram saindo ao longo da noite, até ao ponto em que este ficou praticamente vazio, tendo apenas Charles, Mark e Richard no seu interior. Charles decidiu começar a limpar e a preparar-se para fechar o estabelecimento, pensando que os outros fossem perceber a dica, mas estavam tão embrenhados na conversa que não notavam. Charles não costumava ouvir as conversas dos outros, exceto em ocasiões oportunas, claro, mas Mark e Richard falavam tão alto que ninguém precisava de fazer um esforço para ouvir o que diziam.
- Eu não consigo acreditar! - exclamava Richard, rindo-se - Acho que ninguém conseguiria, na verdade! Quem diria que com essa cara de anjo tens um passado obscuro...
- Não é assim tão obscuro, há quem tenha pior - contestou Mark.
- Tu foste preso... catorze vezes! - exclamou Richard, desatando a rir novamente.
- Sim, dito dessa forma...
Mark e Richard continuavam a rir-se quando Charles se aproximou.
- Já beberam o suficiente por hoje, não? - perguntou, enquanto afastava os copos da frente deles - Por toda a semana, acho.
- Já estás a afastar a clientela? - queixou-se Richard.
- A minha única clientela atualmente são vocês - explicou Charles.
Mark olhou em volta, reparando que mais ninguém se encontrava no NewScot.
- Façam-me um favor e vão para casa, sim? - pediu Charles, preocupado - Não queremos que tenham um encontro inesperado com o Gargantula.
- Quem é o Gargantula? - quis saber Mark, curioso.
- Não é quem, mas o quê - explicou Richard, com a voz já um pouco arrastada - É um rio que passa mesmo aqui por Southward. E é mesmo muito rápido.
- Sim, já passei por ele - comentou Mark, lembrando-se do passeio que dera na primeira manhã que passara em Southward. Parecia que fora há meses.
- Então vá, saiam daqui - insistiu Charles.
Charles continuou a enxotar Mark e Richard do NewScot, até que estes acabaram mesmo por ir embora. Mas apesar dos conselhos, os dois não foram para casa continuando na rua, conversando sobre temas aleatórios, nem reparando por onde estavam a caminhar.
- Eu estava aborrecido, sabes? - comentou Mark, referindo-se a uma partida que pregara na sua adolescência - E aquele professor estava mesmo a dar cabo do miolos a mim e aos meus amigos. Então decidi alegrar-lhe o dia, por assim dizer. Como de manhã ele trazia sempre um café para a aula, eu surripiei uma garrafa de vodca do meu pai e despejei um pedaço lá dentro.
- O que aconteceu? - perguntou Richard, curioso.
- Nada de bom, como podes imaginar.
Caminharam alguns uns minutos em silêncio, embrenhando-se na floresta, até que Mark se apercebeu de algo. Parou abruptamente, mas Richard continuou a andar como se nada fosse.
- Espera, estamos a ir para onde?
Richard, ao perceber que Mark parara, imitou-o. Ao processar a sua pergunta, olhou em volta, ficando também confuso.
- Acho que nos estamos a aproximar do rio - observou Richard, ao ver de longe as pedras brancas que os separavam de uma queda de quase dez metros - Provavelmente deveríamos voltar.
- Espera - pediu Mark, preocupado - Este não é o mesmo caminho que fiz da outra vez.
- Há muitos caminhos escondidos em Southward - explicou Richard, bocejando - Nem eu próprio conheço todos.
Mark aproximou-se dos pedregulhos brancos, olhando para além destes. A encosta da montanha não começava imediatamente na outra margem, apenas após um patamar de rocha curto com relva rasteira. Richard aproximou-se de Mark, perguntando-se no que ele estaria a pensar.
- O que estás a fazer? - acabou por perguntar.
- O que achas? - Mark começou a tentar trepar para cima das pedras brancas e analisou a margem contrária - Deve ser cerca de um metro que nos separa do outro lado.
- E então? Também são dez metros que te separam do Gargantula - notou Richard, começando a perceber as intenções de Mark.
- Mas é quase impossível falhar - assegurou Mark.
- Claro, eu direi isso aos meus pais quando te forem buscar ao fundo do rio: "era quase impossível ele falhar" - ressaltou Richard, revirando os olhos.
- Vá lá, não me digas que não te dá vontade de saltar - perguntou Mark, ansioso.
- Sim, mas isso não significa que o vá fazer - esbravejou Richard - Ainda por cima podre de bêbado!
- Então eu salto - declarou Mark, esfregando as mãos.
- Não tens coragem.
- Claro que tenho!
Richard cruzou os braços, descrente. Mark olhou para a margem contrária, vendo a sua proximidade. O espaço que o separava dela era quase nulo. Talvez se conseguisse saltar com sucesso, não se sentisse tão inútil como havia se sentido nos últimos tempos.
O vento levou as nuvens negras no céu a afastarem-se da lua quase cheia, deixando que esta iluminasse Southward com a sua leve luz. Mark, movido pela curiosidade, olhou para baixo, para o rio. Este corria mesmo muito rápido e iluminado pela lua parecia ainda mais misterioso do que o normal. Gargantula... Quem dava esse nome a um rio? Um rio que engolia todos os que se aproximassem dele...
Mark abanou a cabeça, afastando aqueles pensamentos e fletiu as pernas, preparando-se para saltar. A outra margem estava tão próxima, quase que lhe conseguia tocar... Umas pequenas pedras resvalaram por baixo de um dos pés de Mark, quase o fazendo perder o equilíbrio e praticamente causando-lhe um mini ataque de coração. Com o susto, o seu cérbero voltou a raciocinar normalmente por uns segundos, fazendo-o perceber-se da estupidez que se estava a preparar para fazer. Endireitou-se e decidiu voltar para trás, saltando para o chão. Olhou para Richard que o observava com um olhar divertido.
- Eu conseguia saltar - afirmou Mark, não querendo dar o braço a torcer - Estou é provavelmente demasiado bêbado.
- Claro...
- Deveríamos voltar para casa - propôs Mark, começando a caminhar na frente de Richard para esconder o embaraçamento.
Voltaram a embrenhar-se na floresta, mas não caminharam durante muito tempo, pois após alguns minutos Richard colocou um braço na frente de Mark, obrigando-o a parar.
- Espera... Lembras-te de dizer que não conhecia todos os caminhos de Southward? - perguntou Richard, enquanto Mark olhava para ele, arregalando os olhos e percebendo o que este estava a insinuar - Sim, não faço ideia de onde estamos. Ou melhor, talvez percebesse, de dia, mas só com a luz do luar e com a minha cabeça a rodar mais do que um carrossel, não faço ideia...
- O que fazemos agora? - perguntou Mark, preocupado e não querendo ter dormir no meio do mato até ao nascer do sol.
- Há muitas casas espalhadas pelos bosques - lembrou Richard, pensativo, retomando a marcha e sendo seguido por Mark - Vamos ver se encontramos uma e conseguimos pedir direções.
O que Richard não mencionou era que grande parte dessas casas estavam desabitadas. Também não valia a pena preocupar Mark com essa questão. Não tinham caminhado muito após saírem da pensão, podia ser que tivessem sorte e encontrassem o caminho de volta. Podia ser que apenas tivessem andando às voltas e estivessem a metros do NewScot. A esperança era sempre a última a morrer, não era assim o ditado?
- Espero que tudo isto, pelo menos, tenha servido para te distrair da questão que te tem estado a preocupar - disse Mark, arriscando conversar sobre o assunto proibido.
- Um pouco, sim - confessou Richard, mordendo o lábio inferior.
- Não me chegaste a dizer o que se passou - tentou Mark, querendo tirar os nabos da púcara.
- Se não te importares, prefiro deixar isso para outro dia - desviou Richard. Ainda não estava preparado para discutir aquele tema.
- Claro... - assentiu Mark, mas continuando curioso. Se Amelia tivesse dito alguma coisa sobre ele já saberia, mas se esse não fora o assunto da discussão que outros problemas teria o casal? - Mas sabes que falar ajuda sempre...
Richard fungou, suprimindo uma gargalhada triste. Desviou-se de um tronco de arvore caído no meio do caminho, enquanto Mark tentou saltar por cima dele, quase caindo.
- Então, se não queres aproveitar esta oportunidade para te queixares dos teus problemas, aproveito eu - sugeriu Mark para impedir o surgimento de um estranho silêncio entre os dois - O meu melhor amigo, Wally, tem me ignorado desde que o deixei em Las Vegas. Não atende os meus telefonemas, não me responde às mensagens... Quer dizer, eu entendo que lhe disse umas coisas não muito simpáticas, mas pensei que a dor de cotovelo já lhe teria passado.
- O que lhe disseste, exatamente? - perguntou Richard. Começava a conhecer o feitio de Mark e já percebia que este era um pouco impulsivo.
- Bom... - começou Mark, um pouco receoso - Disse-lhe que não tinha ninguém, não tinha uma família e por isso mesmo é que ia à procura dela.
- Não foi mesmo muito simpático... - notou Richard.
- Eu sei! - concordou Mark - E foi ele que me ajudou após eu ter perdido praticamente tudo... É claro que o considero como família, disse aquelas coisas da boca para fora!
- Talvez lhe devesses dizer isso - incentivou Richard.
- Como, se ele não me atende? - questionou Mark.
- Considerando que no conteúdo das mensagens que lhe tens enviado não exista nenhum pedido de desculpa, é isso que devias fazer...
Mark ficou a pensar nas palavras de Richard. Realmente nas mensagens que enviara a Wally nunca se desculpara. Apenas falara sobre o que tinha andando a fazer. Fora um egoísta, como sempre. Talvez pudesse ligar-lhe. Pensou se poderia usar o telefone por satélite de Rosie, mas Wally não costumava atender números desconhecidos. O melhor seria mesmo falar-lhe com o seu próprio telemóvel.
- Podes me dar as direções para Castle Cove? - perguntou Mark - Tem rede de telemóvel, não é? Acho que poderia fazer isso amanhã.
- A minha mãe tem um telefone por satélite - lembrou Richard.
- Eu sei, mas também estou a precisar de me ligar à internet por uns momentos - explicou Mark - Sinto mesmo muita falta de ter wi-fi.
Richard ia para responder quando voltou a parar abruptamente. O que era aquilo entre as arvores? Seria um vulto de uma casa? Apurou a vista, parecendo reconhecer-lhe a silhueta. De todos os locais que podiam ter encontrado, porque é que tinham ido ali ter?
- Arcade... - resmungou Richard, num sussurro.
- O que foi? - perguntou Mark, também parando e reparando na casa - Sabes a quem pertence?
- Supostamente não pertence a ninguém - explicou Richard, frustrado por perceber a quem pertencia a habitação - Arcade é o lugar onde se reúnem Erick e os amigos. Corre o rumor de que têm relíquias inimagináveis, mas nunca ninguém se atreve a aproximar-se. Todos em Southward julgam que esta casa é Arcade, mas é só uma teoria criada pelo facto de, quando em quando, se ver alguém do clube a entrar nela.
Mark observou o local com curiosidade. Parecia bastante abandonado... Logo Erick, ia criar a sede do seu clube de amigos naquele pardieiro? Ali havia gato. Começou a desbravar a mata, saltando por cima das silvas e dirigindo-se diretamente para a casa. Richard decidiu segui-lo, embora ainda não tivesse percebido as suas intenções.
- O que estás a fazer?
- O que achas? Vou descobrir se isto é Arcade ou não - declarou Mark.
Richard abrandou o passo, questionando a sanidade de Mark. Será que ele era sempre assim ou só após alguns copos de whiskey? Preferia acreditar que na segunda opção, mas tinha a impressão de que a imprudência de Mark era permanente.
- Mas e se estiver alguém lá dentro? - perguntou Richard, olhando com cuidado para o chão, com medo de cair ao tropeçar em alguma pedra escondida.
- Logo o descobriremos, não é mesmo?
Mark e Richard finalmente conseguiram-se aproximar da casa, verificando que esta se encontrava um tanto ou quanto decrépita. Esta era de madeira e tinha apenas dois andares, sendo que algumas janelas do andar superior pareciam estar partidas. Quando se aproximaram do alpendre coberto, Richard suspirou de contentamento.
- Isto deve ser fácil - constatou ao observar um canto escuro ao pé da casa.
- O quê?
Querendo parecer útil, e para que Mark não pensasse que ele era medricas, Richard aproximou-se de um arbusto, retirando de perto dele um escadote de madeira. Levantou-o com dificuldade e encostou-o ao telhado do alpendre.
- Então, eu vou subir por esta escada, saltar para cima do telhado do alpendre e depois entrar por uma das janelas partidas - explicou Richard, orgulhoso pela ideia que acabara de ter - Depois venho abrir-te a porta.
Não esperando uma resposta de Mark, começou a subir o precário escadote. Mark cruzou os braços, observando Richard. Um dos degraus partira-se a meio da subida, mas tirando isso, Richard conseguiu chegar ao telhado com sucesso. Levantou os polegares para Mark e depois passou a tentar abrir o ferrolho da janela partida. Este não devia ser aberto há anos, pois estava completamente enferrujado.
Quando conseguiu abrir a janela, entrou dentro de casa, mas mal o fez, um dos seus pés atravessou o chão de madeira, que estava quase completamente podre. Praguejou entre dentes e tentou retirar a perna, mas não conseguiu. O interior daquele quarto estava completamente vazio e imerso na escuridão, excepto pela luz do luar que entrava pela janela. O que Erick faria naquele lugar?
Tentava mais uma vez tirar o pé daquele buraco, quando ouviu passos. Pareciam estar a subir as escadas para o andar superior. "Merda", pensou, "está alguém em casa". Sentou-se no chão e tentou permanecer em silêncio enquanto os passos continuavam pelo corredor. Quando a porta do quarto se abriu lentamente, o seu coração gelou ao ver um vulto na ombreira.
- Estás a divertir-te? - perguntou uma voz conhecida.
- Mark? - questionou Richard enquanto este avançava para dentro do quarto - Como entraste?
- A porta da frente estava aberta - explicou - Da próxima vez, talvez devesses questionar o tipo que fez este tipo de coisas durante mais de dez anos, antes de começares a inventar.
Richard revirou os olhos. Tinha-se esquecido desse pormenor. Afinal, só soubera dessa história há poucas horas atrás. Esticou uma mão para Mark.
- Apenas ajuda-me a sair daqui - pediu relutantemente.
Quando Richard se levantou, decidiram começar a explorar a casa. O andar superior estava num estado precário. Todos os quartos estavam vazios e a madeira do piso tinha alguns buracos, feitos pelas térmitas. Apenas a luz do luar, que começava novamente a desvanecer, iluminava os seus passos, dando àquele ambiente um ar ainda mais fantasmagórico. A qualquer momento esperavam ouvir um lobo a uivar ao longe, ou um mocho, demasiado perto, a piar. Mas não houve nada. Apenas um silêncio, quebrado pelo som do vento que entrava por frestas dentro da casa e assobiava.
O piso térreo estava um pouco mais firme, mas mesmo assim abandonado. Apesar de possuir mobília, esta estava completamente roída e um estranho cheiro, provavelmente algum animal morto, entranhava-se por todos os cantos. Em geral, o interior da habitação estava em igual ou pior estado que o seu exterior.
Mark e Richard exploraram a cozinha decadente, mas não se arriscando a abrir os armários de madeira podre. Acabaram por parar no que julgaram ter sido um dia a sala de estar, olhando em volta confusos e dando graças por não terem entrado sozinhos ali dentro.
- Não entendo. Eu acho que é aqui que eles se encontram. Mas com a casa neste estado... - Richard arriscou a passar a mão por um cortinado, que se desfez em pó ao toque - Como é possível?
- Talvez seja - comentou distraidamente Mark.
Este focara o olhar numa porta fechada, olhando-a curiosamente. Aproximou-se, tentando analisá-la, apesar da escuridão.
- Diz-me, o que vês de diferente aqui? - perguntou Mark.
- Nada, é uma porta - afirmou Richard ao se aproximar.
- A fechadura...
Richard percebeu onde Mark queria chegar. Observou com atenção a fechadura da porta. Esta era nova, completamente brilhante, enquanto todas as outras estavam ferrugentas. Mirou também as dobradiças da porta, que pareciam perfeitamente oleadas e sem um pingo de ferrugem. Pegou na maçaneta e tentou rodá-la, mas a porta permaneceu eficientemente fechada.
- Consegues abrir a porta? - perguntou Richard, largando a maçaneta.
- Provavelmente, se tivesse as minhas ferramentas, mas não tenho - explicou Mark, desiludido - E também não vejo nada aqui que possa usar sem me arriscar a apanhar tétano.
- O que fazemos? - perguntou Richard. Queria muito saber o que se encontrava do outro lado daquela porta.
- Usamos a versão nuclear.
- Que é?
Mark respirou fundo e afastou-se da porta, arregaçando as mangas.
- Hum, Mark, provavelmente não é uma boa ideia - avisou Richard, adivinhando a sua ideia.
- Não te preocupes, eu consigo - afirmou Mark
Mark afastou-se mais um pouco, lembrando-se de tudo o que vira nos filmes. Normalmente, neles, aquilo funcionava. Decidido, correu contra a porta, atirando-se contra esta com o braço direito, numa tentativa de a arrombar. Todavia, a porta permaneceu fechada. Mark encostou-se a ela, esfregando o braço direito e decidindo desistir à primeira, pois sentira-se de repente muito cansado.
- Não consigo - declarou, ofegante.
- Sim, felizmente - comentou Richard, e verificando se as invenções de Mark não tinham pelo menos enfraquecido a fechadura ou dobradiças - Imagina se alguém chegasse aqui e visse a porta deitada abaixo? Nada discreto.
- O buraco que deixaste no chão lá em cima também não foi discreto - observou Mark.
- Está bem, então provavelmente não estamos em estado para fazer isto hoje... - concordou Richard - Marcamos para outro dia?
Os dois riram-se. Richard ajudou Mark a levantar-se, reparando nesse momento que não pensava em Amelia há já algum tempo.
- Obrigado - disse Richard, sorrindo tristemente - Só isto para me distrair dos meus problemas.
- Já sabes quem chamar para organizar a tua despedida de solteiro - gracejou Mark, ainda agarrado ao braço.
- Nem sei mais se haverá casamento...
O coração de Mark deu um pulo, dando até a sensação de que este iria sair pela sua boca. Tentou manter uma expressão neutra, mas deu graças por ser de noite.
- A sério? - perguntou, tentando manter uma postura descontraída - Porquê?
Richard suspirou, sem saber o que lhe dizer.
- São questões... esotéricas.
- Quem?
- É complicado - acabou por concluir, não querendo mexer naquele assunto - Vamos para casa, preciso de dormir e daqui já conheço o caminho.
Mark concordou, relutante. Por muito que quisesse se sentir triste pelo irmão, tinha dificuldade em fazê-lo. Se o casamento de Richard e Amelia estava a ruir, talvez fosse a sua única oportunidade. Mas por outro lado, ainda quereria ele essa oportunidade, depois do que descobrira? Talvez não valesse a pena, amar alguém que não o amava de volta.
O melhor seria não agir. Esperar que Amelia viesse ter com ele, que se explicasse. Se ela não dissesse nada, se o casamento voltasse a ser uma hipótese, Mark faria de tudo para esquecer Amelia. Não importa quanto custasse.
* * * * *
Nota da Autora:
Aqui estou novamente! Espero que se tenham divertido a ler este capítulo tanto como eu me diverti a escrevê-lo ;)
Não se esqueçam de me dar a vossa opinião sobre a história aqui nos comentários ou no grupo de WhatsApp. Bisous!!!
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