Sexto
Nas redondezas de Southward, Escócia - Novembro de 2019
A tarde iniciou-se sem uma única nuvem no céu, mas o sol produzia uma luminosidade muito fraca. Apesar da intenção de Mark ter sido começar a viagem de manhã, não teve sorte. Entre voltar para Edimburgo, fazer o checkout do hotel e alugar um carro, já era hora de almoço.
Mark só conseguira sair da cidade à uma. Naquele momento já eram praticamente três e não chegara a lado algum. As coordenadas que Rosie lhe deixara eram muito estranhas. Tinha que seguir uma estrada especifica, até a um quilómetro específico, virar à direita, conduzir até à casa de pedra quase a cair, virar à esquerda... Com receio de se perder, conduzia devagar.
Quando chegou à última referência, Mark suspirou de alívio. Tudo batia certo por enquanto. Cortou à direita entrando numa estreita estrada de terra, ladeada de pinheiros. Esta tinha tanto mato rasteiro à volta que ele duvidava que se estivesse à sua procura, alguma vez a encontraria. Enquanto avançava ouvia o som de pequenos galhos a baterem no exterior do carro. Mark não se admiraria se o carro alugado ficasse com riscos na tinta depois de passar por ali.
Quanto mais avançava, mais a luz do sol diminuía. Os altos pinheiros criavam uma espécie de telhado pelo que poucos raios de luz chegavam ao chão. Era uma atmosfera um tanto ou quanto fantasmagórica. Quando não tinha conduzido nem um quilometro, Mark reparou numa antiga e suja placa de madeira que parecia ter algo escrito.
Decidiu parar o carro e saiu. Estava um frio terrível naquele local. Caminhou devagar, esmigalhando pequenos galhos de arvore debaixo dos pés. Quando chegou à placa cheia de musgo, começou a limpá-la e logo viu o que estava escrito: "Southward, 236 habitantes, 1955, quinze quilómetros de distância". Um sorriso surgiu nos seus lábios: estava no caminho certo. Voltou rapidamente ao carro para fugir ao frio.
O cenário não mudou durante algum tempo. A estrada continuava a ser de terra batida e os pinheiros continuavam a rodeá-la incessantemente. Chegou até a uma altura onde quase todas as estações de rádio pararam de funcionar. Aquele local deveria ser mesmo isolado do exterior. Ao verificar o seu telemóvel, reparou também que a sua rede também desaparecera completamente.
O carro avançava com dificuldade pelo meio do mato, sendo até provável que um dos pneus estivesse furado. Como alguém poderia viver em Southward? Aquela estrada era de endoidecer, não havia rádio, rede de telemóvel, quase de certeza que não existia Wi-Fi...
De um momento para o outro, a via tornou-se mais leve. Olhou com mais atenção para a frente e reparou que dali em diante existia alcatrão, embora tão antigo que tinha a mesma suavidade de uma estrada empedrada. Conduziu mais uns metros e depois voltou a parar o carro. A estrada bifurcava-se em duas saídas: uma continuava em frente, subindo uma pequena serra, a outra seguia à sua direita, descendo para um vale.
Mark não precisou de muito tempo para decidir por onde seguir. Após espreitar um pouco para além das estradas, percebeu pequenas colunas de fumo que provinham do vale. Com certeza era habitado, então provavelmente seria ali a localização de Southward.
Cortou à direita, descendo durante algum tempo. No caminho, encontrou duas pequenas quintas rodeadas por muros de pedra, em alguns sítios caído, mas na maioria rodeados por silvas. Pensou até que as quintas estivessem desabitadas, mas existiam algumas ovelhas e cabras a pastar a curta erva verde. Parou novamente o carro, ficando a observar os animais. Nunca os tinha visto ao vivo e ficou curioso.
Desligou o motor e saiu para a rua, aproximando-se do precário muro. Ao mesmo tempo que o fez, uma cabra também se aproximou lentamente, curiosa com o recém-chegado. Mark baixou-se e apanhou um pouco de erva que se acumulava debaixo dos seus pés. Mostrou-a à cabra e esta aproximou-se mais, cheirando a mão de Mark, pegando depois a erva sem qualquer medo, mastigando-a vagarosamente. Mark sorriu, com um estranho sentimento de realização no estômago.
Após alguns minutos a alimentar e observar as cabras e ovelhas, decidiu retomar o seu caminho. Além destes animais, não vira mais nenhum ser vivo. Voltou a entrar no carro e decidiu ligar o ar condicionado, pois estava cheio de frio. Mais além na estrada começou a encontrar mais casas, umas de madeira e outras de pedra, de onde viu sair os fios de fumo de descobrira anteriormente.
Encontrou apenas dois estabelecimentos, um ao lado do outro, num pequeno largo. Uma mercearia, assim identificada por causa das frutas e vegetais expostas no exterior em caixas de madeira, e um café com uma pequena placa em madeira onde alguém havia cravado "Fireplace CoffeeHouse". Parou o carro perto de um muro de pedra, onde atrás existiam diversas árvores, cortando um pouco a vista para o lado contrário.
Quando saiu do carro, teve um arrepio. Apesar de estar frio, não fora essa a causa. Um mau pressentimento percorrera-lhe o coração e a sua cabeça tornara-se muito leve, deixando-o com tonturas. Voltou a entrar no carro e sentou-se, respirando fundo e esperando até aquela estranha impressão passar. Mark acreditava que devia ser da fome, afinal, já estava desde o meio dia sem comer. Mais uma razão para ir ao café.
Pelas janelas do carro, observou o ambiente que o rodeava. Existiam algumas montanhas distantes que rodeavam Southward. Na sua maioria eram rochosas e cobertas por vegetação rasteira, excepto aquela por qual descera. Estava coberta de arvores e, graças à sua proximidade, Mark não conseguia perceber quão alta era.
Abriu a porta do carro e voltou a sair. Para sua felicidade, as tonturas não regressaram. Dirigiu-se para o café e abriu a porta, sendo logo recebido pelo som de uma campainha e um tremendo choque térmico. Uma enorme lareira numa parede central estava acesa, espalhando o seu calor por todo o estabelecimento. O café estava maioritariamente vazio, apenas se encontrava um casal sentando numa das mesas e ao balcão um homem encostado, os três com idades bastante avançadas. O casal que havia estado a conversar silenciou-se quando reparou em Mark, olhando-o fixamente. Não deviam estar habituados a ver estranhos na vila.
- Deseja alguma coisa, filho? - perguntou uma voz feminina com um forte sotaque escocês, vinda de trás do balcão de atendimento.
Inicialmente, Mark não viu ninguém, mas depois reparou numa idosa, muito baixinha, quase anã, observando-o com olhos muito vivos. Aproximou-se, atravessando o pequeno café e ouvindo as suas sapatilhas a fazer um som peculiar no chão de madeira, amplificado pelo silêncio que se encontrava no estabelecimento.
- Só um café e hum... uma tosta mista - explicou Mark, encostando-se também ao balcão, a pouca distancia de um idoso que o olhava fixamente.
A mulher afastou-se, mas não sem o olhar uma última vez, analisando-o. Entrou por uma porta que ficou a abanar atrás dela. Continuava um silencio sepulcral no café. Mark olhou para trás, reparando que continuava a ser observado. Sentindo-se incomodado, mudou de posição, mas ninguém parecia apanhar a dica.
- Nunca viram? - acabou por perguntar alto, fazendo com que o casal voltasse a conversar entre si, deixando de o observar.
O homem que se encontrava perto de Mark também voltou a pegar num jornal, mas não sem antes comentar:
- Se essa fosse a questão, não estaríamos a olhar para si.
Mark não o ouviu, ou fingiu que não ouviu, pois a funcionaria do café voltara com um café fumegante e pousara-o na frente dele. Mark sorriu, agradecendo, mas a mulher continuou a observá-lo.
- A tosta mista está a ser feita - informou a senhora.
- Obrigado - voltou a agradecer Mark, soprando o café para o arrefecer.
Mesmo assim, a mulher continuava a olhar fixamente para Mark, que começou a desejar um buraco onde se pudesse enterrar.
- Quer alguma coisa? - acabou por perguntar Mark de forma brusca, vendo que ela não se ia embora.
- Você é que deve querer algo, meu filho, senão não tinha vindo até à nossa pequena vila.
- Como sabe que eu quero alguma coisa? Posso estar só de passagem.
- Ninguém está só de passagem em Southward - insinuou ela, fazendo uma pausa - Veio à procura do Caleb, certo?
Mark, que começara a beber o café calmamente, ao ouvir a mulher a mencionar o nome do pai, engasgou-se, começando a tossir. Agora sim, percebera porque estavam todos a observá-lo insistentemente. Ele era idêntico a Caleb! Claro que todos o iram olhar, se conheciam Caleb com certeza estranhariam a chegada de Mark a Southward.
- Conhece o meu... Caleb? - perguntou entre tossidelas.
- Sim.
- Sabe onde mora?
- Não.
Ora bolas. Essa é que Mark não esperava. Mas de certeza que alguém saberia onde o pai vivia, afinal, num sítio pequeno tudo se sabe.
- Alguém que saiba onde ele mora? - perguntou esperançoso.
- Acredito que não - disse a mulher, após pensar durante alguns segundos.
Mark abriu a boca, mas não disse nada. Então como todos conheciam Caleb, mas não onde ele morava? Os pais dele eram alguns eremitas?
- Mas disseram-me que ele vive em Southward - explicou Mark - Está a dizer-me que ele não vive na vila?
- Não exatamente...
- Como assim? - questionou Mark. Caramba, quando dava um passo, recuava dois.
- Eu penso que Caleb e... - a mulher fez uma pausa, engolindo em seco - todos eles, vivem num pequeno aglomerado a alguma distância daqui. Tecnicamente, faz parte de Southward. Ou melhor, nós fazemos parte deles, pois foi lá que a vila nasceu.
Mark manteve-se em silêncio. Será que o outro caminho pelo qual passara na viagem era a forma de lá chegar?
- Eu vim para aqui pela estrada de terra batida e quando cheguei à bifurcação havia uma subida - referiu Mark - É por aí?
- Sim, mas... a estrada de terra batida? Já ninguém vem por aí para Southward, há uma estrada melhor, alcatroada, a norte daqui. Como encontrou esse caminho?
Mark não respondeu, acabando de beber o café. A mulher também teve de ir buscar a tosta mista e retomou os afazeres, atendendo uns clientes que acabavam de entrar, também eles idosos. Por que é que nada naquela história batia certo? Pareciam pistas eternas que se determinavam a levar Mark a perseguir a própria cauda, mas nunca a chegando a apanhar.
Quando acabou de comer a tosta mista e quis pagar o lanche, a mulher pegou-lhe no braço e sussurrou-lhe de forma a que ninguém a ouvisse:
- Tem cuidado.
- Porquê? - perguntou Mark sussurrando, imitando-a sem querer.
- Existem lendas - explicou ela sombriamente - Aqui no Vale, ninguém sobe até lá cima. Têm medo. Algo que se conta de pais para filhos e avôs para netos. Sons que se ouviam de noite...
- O que é que isso quer dizer?
- Apenas tem cuidado, filho - voltou a pedir a mulher. Depois a sua voz voltou a ficar mais alta e clara - Não encontraste Caleb por pouco. Ele é dos poucos que costuma vir cá abaixo. Ajuda-me com o fornecimento de bolos e comida. É um cozinheiro de mão cheia. Em troca ofereço vegetais da minha horta e suprimentos da mercearia que pertence ao meu marido.
Mark não soube o que responder e apenas agradeceu pela informação. Começava a ver padrões estranhos em toda aquela história. E pela primeira vez em dias, sentiu-se muito sozinho. Todo o secretismo em volta da sua família começava a incomodá-lo.
Decidiu ficar no Vale mais algum tempo, embora começasse a ficar de noite. Estava nervoso com a possibilidade de conhecer os pais naquele dia. Porque seria? No dia anterior não se sentira daquela maneira. Começou a conduzir e parou junto de uma das quintas com ovelhas, ficando a observar um pastor a juntá-las e guardá-las no curral.
Olhou mil e uma vezes para o telemóvel, sempre à espera de ver alguma notificação interessante, mas sem rede ou internet não era possível. Quando percebeu que passavam das seis da tarde, decidiu ganhar coragem e fazer-se a caminho. Ligou o motor e as luzes do carro, percebendo as sombras fantasmagóricas protagonizadas pelas árvores.
Conduziu pela mesma estrada de onde viera, mas dessa vez seguindo pela cortada que subia a serra. Pouco depois, a estrada deixou o alcatrão para se tornar empedrada. Após uma longa subida e curvas apertadas, um novo mundo surgiu na sua frente. Naquele momento, percebeu o que dera origem às tais lendas que a dona do café lhe contara. A aura daquele lugar era mesmo propícia a tal.
Havia uma pequena praça no centro do local, com um formato losangular. A rodeá-la nos quatro lados, separadas pela estrada, existiam quatro casas vitorianas. Ninguém se encontrava na rua. Mark reduziu a velocidade e desligou as luzes, estacionando ao pé da casa mais próxima de si. Esta afinal era comercial, pois tinha uma placa na entrada com palavras NewScot. Não importava quão pequena fosse a localidade, parecia que havia sempre um café.
Dentro do carro, olhou em volta, observando com mais detalhe o local. O café tinha as luzes do piso térreo todas acesas, mas as outras casas pareciam estar imersas na escuridão. Existiam alguns candeeiros de rua com luz branca, que iluminavam pouco, mas na praça as luzes eram mais amareladas. No seu centro parecia haver um pedestal com uma estátua.
Abriu a porta do carro, sendo atingido por um frio glacial. Conseguia ver até a sua própria respiração. Apertou mais o seu casaco e dirigiu-se ao centro da praça, estranhando o silêncio. Estava demasiado habituado ao barulho ensurdecedor da cidade.
Subitamente, ouviu uma porta bater. De uma das casas saiu alguém vestido com um longo sobretudo. Parecia ser um homem nos seus trinta anos, com cabelo escuro despenteado pelo vento. Mark escondeu-se e observou para onde este se dirigia. O homem dirigiu-se para o lado contrário por onde Mark chegara com o carro e começou a subir uma pequena estrada. Esta também estava iluminada por candeeiros com luzes amareladas.
Mark seguiu-o ao de longe e pouco depois começou a distinguir uma enorme mansão vitoriana, com o formato de um T proporcional e com o piso térreo iluminado. Um leve som de música de piano chegou até ele. O homem que estava a seguir bateu à porta de entrada que logo foi aberta por uma mulher com longos cabelos castanhos. Depois de entrar, a porta fechou-se, mas pareceu ter ficado entreaberta.
Mark saiu de trás da árvore onde estava escondido e correu até à entrada, atravessando um enorme largo vazio. Subiu dois ou três degraus para chegar ao alpendre e depois encostou um ouvido à pesada porta de madeira escura. Ouviu vozes ao longe. Empurrou a porta levemente e esta abriu. O que estava a fazer? Nem sequer sabia se aquela era a casa dos pais...
As vozes pareciam vir da parte traseira da mansão. Mark abriu mais a porta e entrou no hall de entrada. Aquela divisão terminava num arco que dava lugar ao sítio de onde vinha a música e vozes de pessoas. Existiam também dois lanços de escadas que se dirigiam ao andar superior. Mark subiu as escadas, sem saber muito bem onde se dirigir e o que fazer.
No primeiro andar encontrou duas portas, devidamente trancadas, uma escadaria estreita que dava para o segundo andar da casa e uma saleta perto de um enorme janelão de onde, de dia, se devia ter uma vista fantástica. Pensou em subir, mas ouviu vozes da parte de cima. Ainda estava a pensar no que fazer, quando ouviu passos a subirem as escadas para o primeiro andar.
As portas estavam trancadas, não podia subir, não podia descer... Olhou em volta e como última hipótese correu para a pequena saleta, escondendo-se entre a janela e uma estante repleta de livros, esperando que ninguém o visse.
Ali, pelo reflexo da janela, conseguiu ver que quem subira as escadas era a mulher de cabelo castanho que anteriormente atendera a porta. Esta ficou em pé, esperando algo. Nesse momento, vinda do andar de cima, desceu uma mulher de cabelo castanho claro, num corte moderno e uma franja despenteada. Passou pela outra e não disse nada continuando a descer. Felizmente não o viu.
Ouviu passos novamente a descer as escadas. O que viu primeiro foi um vestido: brilhante, preto e com laivos de prateado. De seguida uma mão a percorrer suavemente o corrimão das escadas. Quando viu a sua face, o coração de Mark quase parou. Era ela.
Estava diferente, mas era ela. A mulher dos cabelos brancos. A mulher com quem sonhara dias atrás.
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