Primeiro
Las Vegas, EUA - Novembro de 2019
A escuridão invadiu os seus olhos. Tanta que não conseguia perceber se os tinha abertos ou fechados. Decidiu tentar levantar-se, mas sentia-se extremamente pesado. Os seus movimentos eram muito lentos como se a gravidade da Terra tivesse aumentado exponencialmente. Lentamente, virou-se de lado, colocando-se de joelhos e finalmente conseguindo colocar-se de pé.
Estaria cego? Não conseguia ver nada. Levantou os braços com extrema dificuldade e rodou-os. Não conseguia sentir nenhuma parede ou espaço lateral que estivesse a protegê-lo. Moveu os pés, tentando caminhar, mas o máximo que conseguia fazer era arrastá-los pelo chão. Conseguia sentir terra por debaixo dos pés e também pequenas pedras. Apercebeu-se que estava descalço. Tocou no resto do corpo. Sentiu roupa: umas calças e uma camisa. Mas porque estaria ele descalço? Continuou a caminhar, a algum lado teria que ir ter, ou pelo menos encontrar alguém que o ajudasse.
Não conseguiu sentir o passar do tempo na escuridão. Podia ter caminhado um minuto, uma hora, um dia, que não faria diferença. Os outros sentidos também não ajudavam: não cheirava nada e o único som que ouvia era o dos seus pés arrastando-se na gravilha.
Quanto mais andava, mais parecia que a lentidão dos seus movimentos aumentava. Mas para onde mais podia ir? Devia continuar em frente. Ou estaria a andar para trás? O escuro era uma tortura, não conseguia perceber nada.
Estava prestes a desistir e a deixar-se cair no chão quando, de repente, bateu com os pés numa pedra. Ou seria... aquilo eram escadas? Se tivesse forças para isso, começaria a rir-se loucamente de felicidade. Finalmente sentia alguma coisa, qualquer coisa, sem ser ele próprio! Começou a subir as escadas lentamente. Tentou esticar os braços, mas não conseguiu: existiam paredes ao seu lado, acompanhando-o.
Durante a subida passou por várias fases: a fase onde conseguia subir as escadas de pé, a fase em que o fazia de joelhos e a fase onde já se arrastava pelos degraus acima. Arrastou-se o máximo que pôde, sem nunca olhar para lado nenhum a não ser para baixo. Até porque não conseguia entender se simplesmente estava escuro, ou se estava cego.
Estava já à espera de tudo, menos de bater com a cabeça em algo duro. Desesperado, levantou-se e apalpou a superfície na sua frente: era madeira. Devia ser uma porta! Facilmente encontrou a maçaneta e para sua felicidade a fechadura estava destrancada. Quando desencostou a porta apenas um pouco, jorrou pela abertura algo que o deixou ainda mais feliz: luz! Afinal conseguia ver, apenas estivera preso na escuridão todo aquele tempo.
Esta luz, apesar de ser sinal de que a sua visão não estava comprometida, revelou um novo problema. Parecia encontrar-se numa gruta sem saída. Todavia, a luz no seu fundo, fazia-o duvidar. Aquela forte luminosidade fazia-o lembrar de uma lanterna. Curioso, começou a caminhar naquela direção. Agora parecia que toda a lentidão que o assomara quando estava no escuro desaparecera.
Após alguns metros, a luz começou a tomar forma. A sua origem era uma pessoa, mas não conseguia perceber se era ela que estava a segurar numa lanterna. A forma daquela luz era estranha.
Ao se aproximar mais, percebeu finalmente do que se tratava. Estava uma mulher de costas para si olhando para a parede que marcava o fundo da gruta, vestindo um longo vestido vermelho. O seu cabelo chegava até á cintura. Era um cabelo de cor branco pérola, muito ondulado, e para espanto de Mark era dele que emanava a luz. Tocou no ombro da mulher, tentando falar com ela.
- Olá? O meu nome é Mark - apresentou-se a medo - Estás bem?
Ela virou-se lentamente para ele, colocando a sua mão por cima da mão de Mark, que permanecia no ombro da mulher.
Mark pôde jurar que a sua respiração parou durante alguns segundos. Ela era linda, a mulher mais bonita que vira na sua vida. Apesar do cabelo branco, ela era da sua idade, ou talvez ainda mais jovem.
- És o único que me pode salvar! - sussurrou ela - Por favor ajuda-me.
Mark saiu do transe ao ouvir as suas palavras. Ele tentou responder, perguntando o que poderia fazer, mas ela colocou um dedo nos seus lábios, silenciando-o.
- Chiu... Ele pode nos ouvir - avisou ela, continuando a sussurrar.
Mark sentia um desejo enorme de a proteger, de a salvar de quem quer que fosse que a pudesse magoar. Aproximou-se mais da mulher, colocando uma mão no seu rosto. Estavam tão próximos que conseguia sentir a respiração dela na sua pele. Uma respiração gélida. Olhou nos olhos da mulher. Estes eram completamente brancos, parecendo que ela era cega. Apesar disso, ela olhava para ele como se conseguisse ver dentro da sua alma.
- Não vou deixar que ninguém te magoe - prometeu Mark, imitando sem querer os sussurros da mulher.
Num impulso, Mark tentou aproximar-se para a beijar, mas ela afastou-o lentamente.
- És o único que me pode salvar... - disse ela levantando a voz pela primeira vez e criando um eco estrondoso naquela gruta, que magoou os ouvidos de Mark depois de ter ficado tanto tempo no silêncio - Mas também és o único que me pode destruir!
Antes que Mark pudesse reagir, ela grita, mas um grito tão forte e tão alto que ele só podia descrever como sobrenatural. Ao mesmo tempo, a luz que emanava do cabelo da misteriosa mulher aumentou, ferindo os olhos de Mark e deixando-o sem visão novamente.
A combinação de som e luz tão inesperada faz Mark cair e gritar de dor. Sentia o seu cérbero a se desfazer. Pelas suas orelhas e nariz escorria um líquido que ele acreditava ser sangue. E então... tudo parou.
* * * * *
Mark Henderson acordou de repente do seu pesadelo, levantando-se de rompante na cama. Ainda sentia o pânico do sonho e a sua cabeça latejava, fazendo-o pensar se tudo teria sido mesmo uma invenção da sua cabeça. Por outro lado, ele encontrava-se no seu quarto, sentindo o cheiro da pizza que encomendara na noite anterior e o mais importante: conseguia ver.
Lentamente, rolou para fora dos lençóis, caindo de joelhos no chão. Todo o seu corpo estremeceu e as tonturas aumentaram. Levantou-se e sentou-se na beira da cama com a cabeça entre as pernas, esperando aquela estranha sensação passar. Respirou fundo umas quantas vezes e sentiu-se melhor. Dirigiu-se à janela do quarto e desviou os cortinados. Abriu ligeiramente a janela, deixando entrar o vento fresco da manhã. Os ares da cidade, particularmente o cheiro a grelhados do restaurante em frente do seu prédio, ajudaram-no a voltar à realidade.
Decidiu ir tomar um banho para clarear as ideias. Se conseguisse, até o tomava com água fria para o ajudar duplamente a voltar à realidade. Mas a mulher de cabelo branco nunca saiu dos seus pensamentos. Quem seria ela?
Estudos dizem que o cérebro não consegue inventar novos rostos, então apenas é possível sonhar com pessoas conhecidas, mesmo tendo sido apenas um encontro fugaz. Só que Mark tinha a certeza de nunca ter encontrado alguém assim. Ela tinha qualquer coisa de especial, uma beleza sem igual. E aquele cabelo branco não lhe saía do pensamento.
O banho frio não estava a resultar. Felizmente foi interrompido pelo som do seu telemóvel. Saiu do duche rapidamente, embrulhando-se desajeitadamente numa toalha e apressou-se a atendê-lo. Qualquer coisa que o distraísse de pensar naquela mulher.
- Que é que queres? - perguntou Mark ao atender o aparelho.
- Gostava de saber qual seria a reação se fosse a tua mãe a ligar e atendesses dessa maneira - respondeu uma voz masculina do outro lado da linha - Eras logo deserdado.
- Mas eu já estou deserdado Wally, não te lembras? - arrematou Mark, rindo-se, colocando a chamada em alta voz, para se ir vestindo enquanto falava.
- Touché! - exclamou Wally. Este fez uma pausa e depois falou num tom de voz mais sério, o que Mark dizia ser digno de o funcionário de uma funerária - Precisamos de falar.
- O que se passa? - perguntou Mark, abrindo o armário e tirando umas calças e uma camisa. Depois, pensando melhor, escolheu um suéter. Não queria tentar o universo.
- É melhor falarmos em pessoa - pediu Wally.
- O que foi, vais acabar comigo ou quê? - perguntou Mark, rindo-se nervosamente.
- Antes fosse... - suspirou Wally - Encontramo-nos no Baxter's daqui a uma hora?
- Sim, pode ser - concordou Mark, acabando de se vestir.
- Até estou surpreendido por estares acordado a esta hora - comentou Wally, mudando intencionalmente o tema da conversa.
- Porquê, que horas são? - perguntou Mark, aproximando-se do telemóvel e olhando para o ecrã - Pelo amor do whiskey, são nove da manhã! É cedíssimo!
- Só que for para ti, eu estou a trabalhar desde as sete - revelou Wally.
- Que horror... - suspirou Mark, desgostoso com aquele horário de trabalho. Não estava psicologicamente preparado para trabalhar por conta de outrem, obedecendo aqueles horários malucos. Ainda bem que trabalhava de casa.
- Vemo-nos lá, Mark - riu-se Wally, desligando a chamada.
Mark pousou o telemóvel e retirou umas sapatilhas de debaixo da cama. Perguntava-se sobre o que Wally quereria falar com ele. Mais importante ainda: ira ele contar ao amigo sobre o sonho estranho que tivera? Vontade não lhe faltava. Para dizer a verdade ainda estava um pouco abalado com aquilo. Talvez falar o ajudasse.
* * * * *
Passou pouco mais de uma hora quando Mark finalmente se apresentou no Baxter's. Surpreendentemente, ou talvez nem tanto, já existiam várias pessoas a cair para ao lado de bêbedas, àquela hora da manhã. Wally encontrava-se ao balcão, com um copo de água pousado na sua frente. Mark aproximou-se e sentou-se ao seu lado.
- A beber água num bar - gracejou Mark - Isso devia ser pecado.
- Pecado devia ser estar tão bêbado que não se sabe se fumou a chave ou o cigarro - retrucou Wally, virando-se para trás e falando em alta voz - Fica a dica!
Dois dos presentes, que já estavam um pouco tocados, levantaram a caneca de cerveja, como que concordando e outro levantou a cabeça da mesa perguntando "foi golo?". Alguns que ainda não estavam tão bêbedos riram-se ou simplesmente ignoraram a "dica" de Wally. Mark riu-se enquanto o amigo voltou-se a virar para beber um golo da sua água. O bartender aproximou-se deles.
- Queres te calar Wally? - pediu ele um pouco hostil, mas fazendo um esforço para não rir - Espantas-me a clientela.
- Como estás Salim? - perguntou Mark, ainda a rir-se - Passa-me uma cerveja.
- Normalmente eu não concordaria Mark - comentou Wally, suspirando, depois de esperar que Salim fosse embora - Mas com aquilo que tenho para te contar é melhor mesmo beberes um bocado.
- Estás a começar a assustar-me - confessou Mark, levantando uma sobrancelha.
- Eu não sei como te contar isto...
- Usando palavras, seria o ideal - disse Mark. Salim aproximou-se com a cerveja e pousou-a no balcão.
- Lembras-te que ontem ao final da tarde foste fazer a doação de sangue no camião de colheita? - perguntou Wally, um pouco nervoso.
- Óbvio que sim, ainda não virei a Dory - ironizou Mark.
- Isto é sério - alertou Wally, preocupado - Como esta foi a tua primeira doação tivemos de testar o sangue, só para prevenir, e...
- Não me digas que é o que eu estou a pensar - interrompeu Mark, assustado - Estou doente? Tipo, a morrer?
- Não, longe disso - confortou-o Wally - Bom, não sei dizer se o que tenho para te contar é pior ou melhor, mas terás que decidir.
- Desembucha homem - bufou Mark, já farto de rodeios.
Wally suspirou, pegando na cerveja de Mark e bebendo uns goles. Com a cabeça um pouco mais leve, decidiu ir direto ao assunto.
- Ouve, ao analisar o sangue nós descobrimos que és do tipo AB.
- E então? - perguntou Mark sem entender o problema.
- Os teus pais costumam doar regularmente sangue e eles os dois são do tipo O - explicou Wally, dando outro gole na cerveja - E a junção desse tipo de sangue, O+O nunca pode dar origem o tipo AB nos filhos. Apenas o tipo O. É muito raro ocorrer erros no tipo do sangue - preparou-se para dar o remate final, respirando fundo - Ouve, não tenho a certeza, mas é muito provável que algum dos teus pais, ou os dois, não sejam os teus pais verdadeiros...
Mark recebeu esta informação muito calmamente. Primeiro, não percebeu muito bem o que o Wally lhe dissera. Ficou em silêncio durante vários segundos tentando assimilar a informação. Steve e Helen não eram os seus pais verdadeiros?
- Mas para ter a completa certeza, tens de fazer o teste de ADN - insistiu Wally, finalmente devolvendo a cerveja a Mark. Mas este não teve qualquer reação - Mark? Estás bem? Diz alguma coisa...
Mark pensou na pergunta. Estaria bem? Ele nunca se dera bem com Steve, então essa notícia até lhe agradava. Mas o que isso significava? Que era adotado ou que Helen traíra Steve? Saberia ele disso? Seria essa a razão porque nunca prestara muita atenção ao filho? Mark acreditava que a Helen devia ser a sua mãe verdadeira, senão porque estaria ela sempre a defendê-lo e a ajudá-lo sempre que fazia asneiras? Se fosse adotado ela já o teria completamente rejeitado, mais do que já fazia atualmente.
O que o fazia duvidar da teoria da traição era a relação dos seus pais. Desde que se lembrava, esta sempre fora boa. Eles eram ricos e faziam tudo pelas aparências, mas ao contrário das famílias de alta sociedade que se veem na televisão, eles realmente se amavam. Andavam sempre juntos, faziam surpresas um ao outro sem qualquer tipo de finalidade a não ser fazer o outro feliz... Parecia-lhe muito estranha aquela situação. Precisava de tirar aquilo a limpo.
- Eu tenho de ir embora - informou Mark, deixando umas moedas em cima do balcão e levantando-se. Pegou na cerveja e bebeu tudo de penalti.
- Mark, onde é que vais? - perguntou Wally levantando-se e seguindo Mark para fora do bar. Estava já a prever que ele não ia fazer coisa boa.
- Tenho de falar com a Helen - esclareceu Mark, olhando em volta, à procura de qualquer coisa.
- Ouve, não faças nada de que te vás arrepender - pediu Wally, preocupado.
- Wally, de tudo o que fiz na vida, nunca me arrependi de nada - sorriu Mark, fazendo sinal para um táxi que passava - Só me arrependo daquilo que não fiz.
- Então sugiro que te arrependas agora e que não vás falar com a tua mãe nesse estado.
- Qual estado? Estou calmíssimo Wally.
- Exatamente Mark. Desde que te conheci aprendi várias coisas, dentre elas uma em especial: quanto mais calmo pareces, pior te sentes.
- Não te preocupes - disse Mark, abrindo a porta do táxi, mas sem olhar para Wally - Depois conto-te os detalhes.
Mark fechou a porta do táxi e recitou a morada de "C'est l'Art", a galeria de arte de Helen, para o condutos, deixando Wally á beira do passeio, sem saber o que fazer a não ser esperar pela volta do seu melhor amigo.
* * * * *
Os quadros estavam pousados no chão, embrulhados em plástico. Helen abanou a cabeça, exasperada. Onde haveria de os colocar? O som de uma porta a ser aberta, fê-la olhar para trás bruscamente.
- Catherine, o que é isto? - questionou Helen autoritariamente, ao ver a sua secretária entrar na pequena sala - Tenho uma exposição em progresso e as pinturas da seguinte já começaram a chegar. Nós não temos um grande armazém para as guardar todas. Não quero que fiquem amontoadas numa sala sem segurança.
- Podemos contratar mais seguranças até a próxima exposição começar, Srª. Henderson - propôs Catherine sem se acanhar, pegando no telemóvel para começar a fazer chamadas. Estava familiarizada com a personalidade da sua patroa.
- Vai ter que ser, não é verdade? - Helen suspirou e passou as mãos pelo vestido, endireitando-o - Só espero que os donos dos quadros não descubram que os temos todos amontoados. Pode ir, Catherine.
- Na verdade senhora, tem uma visita - avisou a secretária.
- Ah, sim, o meu marido deve ter chegado mais cedo para o almoço - supôs Helen, sorrindo, satisfeita - Diga-lhe que já vou ter com ele.
- Não senhora - esclareceu Catherine, um pouco receosa - É Mark que está lá fora. O seu filho.
Helen congelou assim que ouviu o nome de Mark. Que quereria ele daquela vez? Mais dinheiro? Que colocasse uma cunha junto de um juiz para o livrar da cadeia? Helen estava farta, já não aguentava mais os disparates do filho. Há quatro anos atrás dissera-lhe que nunca mais o ajudaria, que dali em diante ficaria por sua conta. Que quereria Mark?
- Diga-lhe que já vou ter com ele. Leve-o para o meu escritório - ordenou Helen.
A sua secretaria saiu da sala, fechando a porta atrás de si, com o suave som do clique da fechadura. Helen teria de se preparar psicologicamente para falar com o filho. Não que ele tivesse sido uma criança complicada, até tinha sido um ótimo aluno na escola, sempre com nota máxima em todas as disciplinas, mesmo quando praticamente não estudava. Mas de vez em quando ele tinha uns momentos um tanto ou quanto estranhos.
Foram várias as vezes que se metera em lutas na escola e várias as vezes que pregara partidas aos professores. Poderia até ser algo comum a qualquer criança, mas não Mark. Ele era demasiado inteligente para fazer uma partida qualquer. Uma vez despejara no café do seu professor metade de uma garrafa de vodca, embebedando o homem e quase o fazendo ser despedido. O dinheiro que Helen gastara para subornar o diretor, impedindo a expulsão do filho e qualquer falatório...
Quando chegou a adolescente, Mark deixou de comparecer regularmente à escola. Praticamente só se apresentava nas aulas para os exames e, surpreendentemente, as suas notas continuavam boas. Isto sem qualquer suborno dos professores, ao contrário do que faziam os pais de maior parte dos seus colegas.
Helen não conseguia entender o filho. Sempre tentara dar-lhe uma boa educação, mas parecia que não importava o que ela ou o seu marido fizessem, Mark era completamente desequilibrado. Quanto a isso, eles lavavam as mãos porque, com certeza, não fora a sua criação que o tornara daquele jeito. Helen estava farta de toda a situação.
Fechou os olhos e respirou lentamente. Quando os voltou a abrir, o seu olhar caiu nos quadros. Por enquanto tinha de os deixar naquele lugar. Saiu da sala e encaminhou-se para o escritório. Mark já estava sentado numa das cadeiras em frente da secretária. Helen não sabia como se lhe dirigir, mas ele sentiu-a entrar e olhou para trás. Antes que este dissesse qualquer coisa, Helen tomou a dianteira.
- Olá, Mark - cumprimentou-o ela, dirigindo-se para o seu cadeirão atrás da secretária - O que vem pedir desta vez, deixe-me ver: um apartamento maior, mais dinheiro para cobrir os seus disparates ou pedir-me que o seu pai fale com o Juiz Stinson novamente para limpar o cadastro?
Mark riu-se porque, por incrível que parecesse, estava calmo. Tão calmo como não estava há muito tempo. Helen, a sua mãe, uma mulher sempre tão correta e respeitada pela alta sociedade, havia traído o marido e nada faria Mark mais feliz do que desmascará-la. O que não conseguia perceber, era que o seu amigo Wally tinha razão. Apesar de se sentir calmo, a raiva estava a cegá-lo. Só queria destruir tudo e todos porque finalmente sabia como se vingar do seu pai pela forma como o tratara todos aqueles anos.
- Que engraçado referir esse assunto em particular - gracejou Mark, olhando distraidamente para a suas unhas - O meu pai...
- Mark, o que é que quer, porque é que veio ao meu local de trabalho? - perguntou Helen, franzindo o sobrolho. Estava a ficar farta dos risos sarcásticos do filho.
- Eu vim falar do meu pai - explicou ele sorrindo - E não do Dr. Steve Henderson.
- O quê? Do que está a falar? - perguntou Helen, confusa.
- É o seguinte, mãe, aconteceu uma coisa engraçada - continuou Mark com um sorriso no rosto - Ao que parece, o Dr. Steve Henderson, o homem que durante vinte e sete anos se disse meu pai... afinal não o é.
Helen levantou-se apressadamente e pegou num braço de Mark, puxando-o para fora do escritório. Apanhado de surpresa e não esperando de todo aquela atitude pela parte da mãe, Mark deixou-se levar e não ripostou.
O intuito de Helen era levá-lo para fora de "C'est l'Art", pela porta dos fundos, para evitar que o filho criasse mais confusões. Vira perfeitamente que não estava nos seus melhores dias e, se pressionado, iria fazer um escândalo monumental. Helen precisava de tudo menos daquilo no meio de uma exibição tão importante.
Infelizmente, quando estava quase a arrastá-lo para fora do edifício, ouviu uma voz a chamar o seu nome.
- Helen? - chamou Steve, perguntando-se o que a sua esposa estaria a fazer, arrastando um rapaz atrás de si. Quando se viraram para trás, Steve mal podia acreditar quando viu Mark.
- Mark, o que está aqui a fazer? - perguntou Steve, com a raiva a crescer-lhe no peito. Na última década e meia, mal conseguira suportar a vista do seu filho. Tentava ignorá-lo o mais possível. A última vez que o vira fora... há quatro anos?
- Olhem, a família reunida! - exclamou Mark, libertando-se das mãos da mãe e aproximando-se de Steve. Helen seguiu-o, preocupada - Ah não, esperem...
Quando Mark se aproximou o suficiente de Steve, este sentiu levemente o cheiro a cerveja. Decidiu pegar nessa desculpa para iniciar outra linha de conversa.
- Mark, está bêbado? - quis saber Steve.
- O quê? - perguntou Mark, um pouco desorientado pela pergunta de Steve - Eu só bebi uma cerveja...
- Às onze da manhã? Não mudou nada, pois não? - repreendeu Steve, satisfeito por ter desconcertado Mark - Porque não se vai embora? Está a estragar um dia que começou muito bem.
- Sim, por favor Mark - pediu Helen - Está a estragar o nosso aniversário de casamento.
Mark sorriu. Ele, que já tinha perdido o impulso depois da tentativa de Steve de mudar o assunto, voltou a encontrar uma nova razão depois de relembrar que, realmente, aquele era o dia do aniversário de Helen e Steve.
- Ah, muitos parabéns! - desejou-lhes Mark, sarcasticamente. Aproximou-se de Steve e colocou-lhe uma mão no ombro - Vou lhe dar o melhor presente de sempre: você não é meu pai!
Helen, ao ver a cara do seu marido começar a ficar vermelha de raiva, interrompeu-o antes de Steve poder dizer mais alguma coisa.
- Seria melhor conversarmos sobre isto noutro local - propôs Helen, com a voz um pouco alterada. Parecia prestes a chorar - Porque não entramos no meu escritório?
- Porquê? - perguntou Mark, começando a falar mais alto, esperando que outras pessoas o ouvissem - Para ninguém saber que a querida Helen, uma senhora de alta sociedade, traiu o marido? Para ninguém saber que ela se andou a oferecer por aí e que o vosso casamento não é aquele perfeito de revista como toda a gente acredita?
Um som alto ouviu-se por todo o corredor e Mark caiu desamparado no chão com a mão na cara. Steve havia-lhe dado um soco. Helen levou as mãos à boca, chocada.
- Como se atreve a falar assim sobre a sua mãe? - gritou Steve com uma voz trovejante - Pare de se comportar como uma criança de dez anos! Aliás, como se comportou durante toda a vida! Eu tenho vergonha de si. Dá-me nojo! Fique sabendo que a sua mãe nunca me traiu nos nossos trinta e quatro anos de casamento! Nem eu a ela! Fique sabendo que sim, é verdade, eu não sou o seu pai, mas a Helen também não é a sua mãe. Você é adotado. E pode ter a certeza de que nos arrependemos de o ter feito, de ter salvo um miúdo completamente descompensado daquela espelunca. A partir deste dia espero do fundo do meu coração que morra num buraco qualquer, porque nunca, mas nunca mais o vamos ajudar de qualquer forma. Não nos apareça mais à frente!
Steve deixou Mark e a sua mulher, saindo rapidamente pela porta dos fundos. Helen ficou em pé, em estado de choque com lágrimas nos olhos. Aproximou-se de Mark, que continuava no chão e ofereceu-lhe uma mão para o ajudar a levantar. Ele rejeitou-a e levantou-se sozinho, encostando-se à parede do corredor. Engoliu em seco.
- Pode ao menos me dizer quem é a minha família verdadeira? - pediu Mark, quase sem voz e não olhando diretamente para Helen. Retirou a mão da face e verificando se estava ou não a perder sangue - Quem são os meus pais?
- Não sei - confessou Helen com a voz a tremer - Só temos uns papeis em casa com as informações da sua adoção e da agência, mas neles não diz quase nada sobre isso.
Mark passou as mãos pelo cabelo, não se importando que uma delas estivesse com sangue. Tentava não fazer com que Helen percebesse o quão perturbado ele ficara com toda aquela situação.
- Está numa bonita figura - repreendeu Helen, já com uma voz mais firme. Começava a voltar a sentir-se como si mesma - Porque provocou o seu pai daquela forma? Quase que pedia para lhe bater!
Mark fungou, mascarando uma gargalhada incrédula.
- Peço desculpa? Eu pedi para me bater? Eu posso tê-lo provocado um pouco, admito, mas ele não é nenhum animal selvagem que não consiga resistir ao impulso de bater em alguém!
- Mas você não resistiu ao impulso de começar uma discussão com o seu pai - interrompeu-o Helen, falando com uma segurança na voz que até a si a admirou - Não tinha o direito de fazer isto. Steve exagerou em muitas das coisas que disse, mas numa ele tem razão. Você comporta-se como uma criança. Parece que nunca cresceu, Mark.
- Agora não venha você também - resmungou Mark, revirando os olhos.
- Não, não vou dizer nada. Não vou arruinar este dia mais do que está - Helen suspirou, desiludida - Esta foi a gota de água, Mark. Vá-se embora. Não apareça mais aqui, nem em minha casa.
Mark fez a menção de querer passar pela mãe para sair pela porta dos fundos, mas ela impediu-o, colocando-lhe uma mão no peito.
- Não saia por aqui. O seu pai pode estar lá fora - disse ela.
- Então por onde é que saio? - quis saber Mark.
- Pela entrada principal - esclareceu Helen - Não queria um escândalo? Então passe pelo salão. De certeza que todas as pessoas no seu interior ouviram a discussão. Vá, colha os despojos da sua guerra.
Mark não se deixou abalar e virou-se devagar, caminhando para a área da exposição. Quando abriu a porta, toda a gente que lá estava o olhou. De certeza que tinham ouvido a revelação que Steve fizera. Mas era isso mesmo que Mark queria. Ou não? Olhando nos olhos das pessoas que o encaravam, saiu daquele sítio o mais depressa e dignamente possível. Na rua algumas pessoas ainda o olhavam, provavelmente devido ao seu nariz que jorrava sangue mais que uma fonte.
Quando já estava suficientemente longe de "C'est l'Art", saiu das ruas e entrou num pequeno beco que possuía apenas uns caixotes do lixo. Olhou em volta e, não vendo ninguém, deixou sair do fundo da sua garganta o mais alto e furioso grito que havia dado na sua vida. Deu um pontapé a um caixote que caiu ao chão espalhando todo o seu conteúdo, estilhaçando ainda um conjunto de candeeiros que se encontravam junto a uma parede.
Quando acabou de libertar toda a sua raiva, caiu de joelhos no chão, não se importando que estivesse cheio de lixo e de cacos de vidro. Respirou fundo e olhou para cima. Toda a sua vida, a família fora a principal razão porque tinha aqueles ataques de fúria, particularmente Steve. Embora até gostasse de Helen, não conseguia entender porque ela era tão cega quanto ao marido. Ela nunca reparara nas nódoas negras nos seus braços, que Steve lhe provocara em criança, quando Mark o contrariava à mínima coisa? Não ouvira ela os gritos aterrorizantes que Steve dava ao filho quando chegava a casa após um mau dia de trabalho? Não era que Helen não protegesse o seu filho, apenas ignorava tudo o que o Steve lhe fazia. Talvez não quisesse se impor ao marido apenas por um miúdo adotado...
Mark levantou-se e colocou a mão no bolso das calças, retirando o telemóvel. Tinha de ligar a Wally para contar as novidades. Além disso, precisava de descobrir quem eram os seus pais biológicos. E, na sua cabeça, só havia uma maneira de o fazer...
* * * * *
Nota da Autora:
Olá meus seres! Primeiro capítulo oficial de Barbastella lançado para vocês!! O que acharam de Mark, o nosso primeiro protagonista a ser revelado? Alguém já tem uma crush ou ainda é muito cedo para formar opiniões?
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