FITA #2: LADO A (Hecatombe)
Registro Pessoal de J. Jungkook.
Datado em meados de Nov/1995
Reformatório Lorton, FL.
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Passei três semanas internado na clínica médica do Lorton.
Estava desidratado, um pouco desnutrido, havia perdido cerca de seis quilos em duas semanas, e tinha tantas feridas pelo corpo que minha bata hospitalar, com manchas de molho opcionais, herdada de algum outro interno, permanecia aberta boa parte do tempo. Ainda era difícil caminhar sozinho, mover as juntas ou permanecer muito tempo sentado; tinha machucados até no rabo. Todos os dias, a enfermeira Geller limpava os ferimentos com cuidado e trocava os curativos; ganharia uma cicatriz de quase trinta centímetros no quadril de recordação, ela me disse. A gaivota tatuada em minha costela havia sido destruída, um risco dividia o desenho em duas partes: o eu que era antes e o que restou de mim. Havia perdido a noção dos dias enclausurado naquele buraco, mas lembro de ser arrastado para fora de lá por Tallahassee e, então, acordar aqui.
O fosso, era assim que eles chamavam o lugar. Ficava nas antigas instalações abandonadas, uma verdadeira câmara de tortura a 500 metros do prédio principal do Lorton. Poderia gritar até derreter os pulmões, queimar as cordas vocais, e ninguém iria me ouvir.
Lembro de duas ou três visitas dos guardas naquele período, talvez checando se eu ainda estava vivo. Traziam uma gororoba fedida em uma bandeja suja e largavam ao meu lado. Quando a luz penetrava pela fenda da porta, eu engatinhava até a comida e relia a carta. De novo, de novo e de novo.
Ensaiava as respostas. Levava minha mente até ela, a alma como um pêndulo deslizando de um lado para o outro.
Eu e ela entre as flores.
Eu, ela e suas asas de anjo feitas de papel, onde eu poderia escrever meu nome.
Então, tudo ao redor era engolido por um silêncio assustador, um medo maior e mais assombroso no escuro. Aquela astenia pulmonar dolorosa, sufoco dos bofes, e eu podia sentir o cheiro deles na minha pele. Tudo se repetindo em minha cabeça.
Ainda não consigo falar sobre o que aconteceu. Me pergunto se, algum dia, alguém encontrará essas fitas, descobrirá o meu segredo e me olhará com outros olhos.
Acordava sentindo a fumaça da vela de citronela na sala da enfermaria, apanhava a carta e a relia; sabia de cor a ordem das palavras. Adormecia com ela debaixo do travesseiro, imaginando o efeito de suas palavras se enroscando em meus cabelos, deslizando para dentro de minha cabeça, condensando-se em um sonho bom. E às vezes, eu sonhava com Sofi. Podia sentir suas mãos em meu rosto, seus lábios na minha boca. Inocente como um primeiro beijo.
Em todas as lembranças que tenho dela, ela ocupava um papel de figurante nas cenas principais. Lá estava ela, amarrando os cadarços no gramado do campo escolar, ao lado de Min, durante a chamada do clube de teatro, com seu uniforme sempre largo demais, enquanto as outras meninas optavam por números menores. Parecia que para ela haviam sobrado apenas os tamanhos mais desproporcionais, engolindo sua miudeza.
Os cabelos presos com um laçarote colorido que domava o excesso de volume, os dedos enfiados na parte interna dos lábios para desprender a dolorosa tortura invisível do aparelho ortodôntico agarrado à mucosa bucal. Então, seus olhos cruzavam com os meus e desviavam para longe, como se eu sequer estivesse ali.
Nem lembrava vagamente do som de sua voz, mas podia ouvi-la em sonho, despejando aquelas doçuras douradas.
Tudo ficará bem, Jungkook. Você ficará bem outra vez.
Uma vez por semana, o doutor Jill, um médico aposentado com aspecto de maluco e um jaleco sujo, aparecia na ala hospitalar para checar os internos. Passava os olhos pelos leitos e, dependendo da gravidade dos casos, colocava seus óculos ensebados e dava um pouco mais de atenção. A maioria estava ali por castigos aplicados pelos próprios guardas, culpabilizados por motins dos internos, brigas no refeitório ou qualquer outra motivação banal que estava longe demais da realidade.
Naquela tarde, ele olhou minha ficha por alto. Na descrição médica, constava uma tentativa malsucedida de escape pelos fundos da propriedade; na fuga, eu havia despencado de uma altura consideravelmente perigosa e aterrissado diretamente no arame farpado. Rá! Um arame farpado munido de um açoite pesado e grosso.
— Tem sorte de estar vivo, moleque — ele disse, repuxando a minha pálpebra inferior para baixo. — Vai servir de aprendizado para não aprontar mais dessas.
A srta. Geller me olhou com pena.
Todos os dias, Joonie passava para me visitar e trazia itens para matar o tempo: alguns livros escolhidos a dedo ou jogos, damas ou baralho. Da primeira vez que apareceu, chorou ao lado do meu leito, implorando para que eu o perdoasse. A culpa era dele, dizia; deveria ter dito que era mentira quando tive a brilhante ideia de assumir a responsabilidade pelo livro.
Foi naquele momento que percebi: Joonie não aguentaria outra visita à Furna. Aquela personalidade brilhante servia para se distanciar das memórias, viver na superfície da dor ou não seria capaz de emergir outra vez. E eu não sabia de nenhum outro interno, além de Robbie, que havia ido mais de uma vez e retornado, completamente fodido — em todos os sentidos. O que soube é que pegaram leve comigo. Em outros casos, como o de Cody Brown, o garoto que cuspiu em um dos guardas, não restou nada mais para bater.
Conversamos por algumas horas até ele ser obrigado a retornar aos serviços do dia depois do sinal, e eu ficava debruçado em meu tédio, lendo os livros que ele havia trazido e rabiscando algumas bobagens poéticas no caderno que Stane havia trazido na última visita.
Duas semanas depois, a sala de cinema foi aberta aos internos como um presente de Dia de Ação de Graças. Exibiram uma velha fita de Karatê Kid I. Os internos me perguntavam se eu sabia caratê e se podia ensinar alguns golpes quando estivesse recuperado. Pelo visto, eu era um suposto parente do Sr. Miyagi ou algo do gênero — outras coisas racistas que me acostumei a ouvir ao longo da vida, dada a quantidade de filmes com protagonistas brancos adeptos das artes marciais. Eu não era o único garoto asiático no Lorton, é verdade, mas éramos um grupo minoritário e quase imperceptível. Apenas eu e Joonie éramos coreanos, e obviamente não sabíamos caralho nenhum sobre caratê.
Enquanto os outros internos recebiam as visitas que antecediam o Natal, Stane não teve permissão para me visitar por algumas semanas. Recebia os avisos em papel amarelo, proibindo a vinda, alegando um surto de gripe ou infecções por mononucleose na instituição — qualquer coisa menos violenta do que a própria verdade. Os garotos que visitavam a Furna tinham seus bilhetes enviados na manhã seguinte, Joonie me disse uma vez. Uma garantia de que nenhum pai, mãe ou parente vivo pisaria na grama fresca do Lorton enquanto uma criança definhava em uma cela imunda do prédio abandonado do reformatório, exigindo sua presença.
O sigilo me surpreendia, e o requinte de crueldade compartilhada entre os funcionários do Lorton parecia uma doença mutacional, comprometendo suas percepções pessoais de empatia e aniquilando qualquer misericórdia por nós, com nossos corpos mutilados em nome da diversão ferina de alguns adultos entediados.
Às vezes, não passava disso: puro ócio, o desejo de aliviar o tédio com aquelas criaturinhas assustadas que compunham um reino de medo. O diretor Mortensen era o rei vigente, Tallahassee seu fiel escudeiro, e nós, prisioneiros de guerra ou meros bobos da corte.
Na sexta-feira, quando a correspondência chegou, Stane havia enviado cigarros, um agasalho, uma revista em quadrinhos e uma carta de Sharon Marie. Embalado em papel laminado, um pouco de kimbap; pelo cheiro gostoso, sabia que havia sido feito por tio Min.
O guarda daquele horário remexeu a comida com a caneta com a qual fiscalizava e liberava as encomendas dos internos, de um lado para o outro.
— Que porcaria fedida é essa, moleque?
Fiquei em silêncio. Havia aprendido que essa era a resposta mais segura no Lorton.
Ele abriu as cartas, conferindo as fotos que Sharon tinha enviado e o conteúdo do envelope. Quis socar sua cara nojenta.
— O que temos aqui, uh? — perguntou, erguendo as sobrancelhas. — Essa é sua namorada? Que belezinha! — Keene, o guarda da troca de turnos, se esgueirou pelo ombro de Sheridan e deu uma boa olhada na foto.
Ele enfiou tudo de volta no envelope e arremessou na bancada.
— Tá liberado, fedelho. Agora some daqui. — disse — Ou vai querer outro beijinho?
Os cigarros estavam muito bem escondidos na costura de um agasalho; Stane sabia bem o que estava fazendo. O babaca do Sheridan não foi capaz de identificá-los, nem mesmo na revista.
Caminhei de volta até a biblioteca a passos lentos; os músculos das coxas ainda tinham dificuldade para dobrar. Abri a carta de Sharon no caminho, os primeiros parágrafos começavam com palavras de amor, e depois de compartilhar uma memória que tomava um caminho mais erótico, ela falou sobre o fim do verão, o retorno às aulas e a saudade, rumando para alguma lembrança perdida de nós dois na praia, com detalhes sobre mãos, dedos, boca e outras partes do corpo em funções pouco habituais, e a falta que aquele calor fazia.
Meu estômago revirou, e me esgueirei até o banheiro, colocando o café da manhã para fora. Como se fosse um excesso que havia me deixado enjoado. Embora a suspeita de que algo estivesse errado fosse tão óbvia, era um fato: aquela repulsa ao meu próprio corpo não passaria. Tudo ainda era vívido, mas se misturava ao nojo biológico daquele cheiro que continuava se desprendendo da minha pele mesmo depois de semanas. De ferir a pele no banho, tentando arrancar aquela sensação pegajosa e imunda.
Eu estava quebrado.
Depois do almoço, ocupei uma das mesas vazias da biblioteca com meus cadernos e os presentes que havia recebido.
Joonie atravessou o corredor, preenchendo o espaço do banco ao meu lado na biblioteca.
— Recebeu correspondência hoje? — ele passou os olhos sobre o papel repousando ao lado dos livros. — Essa não parece o tipo de carta que sua avó escreveria para você. — riu.
— A Sharon que mandou!
— Cara, você é um filho da puta sortudo! — Na foto, Sharon aparece sentada no meu colo, nossos rostos colados, sorridentes, disputando espaço na minúscula cabine fotográfica do parque. — Sua namorada é uma gostosa, com todo respeito.
— Não somos namorados. — disse. — Tivemos um lance no verão.
Joonie franziu as sobrancelhas.
— Você não vai dispensar essa gata aqui, vai?! — Ele exibiu a foto, sorridente. Sharon usava um biquíni vermelho, em um dia ensolarado; a piscina refletia a água como um espelho que contornava suas coxas.
Devolvi um sorriso amarelo, encolhendo os ombros dentro do agasalho confortável. Ele moveu os olhos de volta para a mesa.
— O que está escrevendo aí?
— É só uma bobagem que estava tentando dar jeito. Pensei nessa história esses dias e senti vontade de colocá-la no papel. Não é nada muito importante.
— Posso ler? — Joonie perguntou.
— Por enquanto é só um rascunho do primeiro capítulo, ainda não tá pronto.
— Deixa eu dar uma olhada nisso...
— Ah, Joonie!
— Hecatombe, por Jeon Jungkook...
— Não, cara, qual é? Não leia em voz alta. — Tentei alcançar o caderno, sem sucesso.
— Capítulo 1, Hecatombe. — Ele leu o título, e o sorriso murchou; a voz desapareceu naquela leitura que abandonava o mundo e era engolida, os olhos atentos se moviam. Fiquei envergonhado.
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Capítulo 1: Hecatombe
Por J.J.
O mundo se abreviou em um punhado de células e gosto de sangue na boca quando Nabi teve sua primeira epifania. Seus orbes super atentos, mirando o futuro proposto em uma premeditação xamânica, deram uma resposta insólita: visibilidade enviesada e uma anátema de morte.
Correu de volta até a igreja, rasgando joelhos e roupas remendadas, rezando vinte ave-marias de joelhos, e mais trinta pai-nossos que aprendera com o missionário de olhos azuis cor de céu, que reunia as crianças do vilarejo na capelinha de madeira capenga e ensinava a rezar com mãos unidas diante da boca, confessando pecados no espaço de um assovio de dedos grudados. Ae-Sook dizia que eles, os moços de língua estrangeira, alimentavam-se daquela miséria; vinham no rastro da guerra, da pobreza e da fraqueza de espírito. Comensais famintos, cujo rugido daqueles estômagos vazios podia ser ouvido de longe. Empanturravam as crianças com a fé cega em seus santos de porcelana e gesso, de tristezas ocultas e carnes fracas.
Nabi, que conheceu poucas promessas de salvação, agarrou-se à primeira que foi oferecida com gentileza. Achava bonito rezar. Orações pareciam poesias que o Homem que vivia nas dimensões de um paraíso intocado compunha para serem recitadas. Pensava sobre a solidão de Deus nas alturas, sua necessidade de companhia, e prontamente quis oferecer a sua. Confundiu o preço de um pedido com uma espécie de barganha de desejos; em troca das rezas com palavras difíceis, poderia pedir pequenos favores a quem tudo tinha. Naquela manhã, invadiu o oratório aos prantos, implorando de joelhos a Deus, cujas orações eram direcionadas: "Eu imploro, não me dê esse castigo!"
Não entendia o malquerer do Senhor que tanto amava. Mas ouvira o missionário Moore alegar com aquelas convicções cristãs:
"Não sobreveio a vocês tentação que não fosse comum aos homens. E Deus é fiel; ele não permitirá que vocês sejam tentados além do que podem suportar."
Engoliu a contragosto, suportou a tentação. Guardando o segredo como uma criança que esconde o bicho encontrado nos fundos da casa, tremelicando as asas entre os dedos pálidos com a tensão desmedida, até esbugalhar aqueles olhos minúsculos para fora do corpo frágil, por puro instinto de protegê-lo.
Uma hora a verdade escaparia por entre as mãos, escorrendo pelos braços, sendo exalada pelos poros.
Pobre Nabi, com as pernas raladas e as mãos machucadas, os joelhos feridos ainda ardiam como o diabo. Sabia que as reprimendas da mãe não depositavam doçuras na carne; os castigos infligidos desabrochavam feito alamandas roxas, um ou dois dias após as chuvas finas de junho. Longe daquele amor de obediência, era lembrada de sua cruel posição, dos ofícios rudes de uma mulher. Futura nada, Nabi seria. Daria sorte se tivesse a chance de encontrar um marido que a quisesse. Desmiolada, desnutrida, com aspecto de ruína, hecatombe.
Roçando as mãos em um punhado de terra batida, escrevia seus sonhos na poeira fina, com palavras inventadas de um vocabulário imaginário. Ainda não sabia ler, é claro. Remexendo o pó dos sonhos com um pedaço de galho retorcido, ergueu as roupas para não sujar a barra do vestidinho azul que usara após o banho, limpa e cheirando a alfazema. Caso contrário, pensou, levaria outra surra merecida.
— O que tem escrito aí?
Ergueu os olhos e a viu. Foi a primeira vez. Muito antes da grande luz, mas um fragmento dela.
Minsi era a menina que Nabi não era. Empetecada e granfina no seu hanbok de domingo. Tinha um norigae pendurado no cordão de seu jeogori e flores na trança negra que alcançava a metade das costas; aquele tecido fino poderia ser vendido no mercado e mataria a fome de metade das crianças do vilarejo, Nabi pensou. Apagou o rabisco cuja linguagem fantasiosa e signos inéditos aos olhos de qualquer um, Minsi jamais saberia. Queria dizer que o significado era: suma daqui. Mas tratar mal a dona da casa, quando vivia de favor no quartinho dos fundos, era um risco que não podia correr.
— Qual seu nome? — Minsi perguntou.
— Por que quer saber?
— Não conheço nenhuma outra criança. — Minsi disse. — E você é tão bonita.
Magricela, pálida e feiosa, a influição daquelas maldades era imediata; bonita nunca esteve nem mesmo perto de um adjetivo direcionado a si mesma.
— Nabi. — disse, sem olhá-la.
Minsi alcançou o galho largado às pressas e riscou no chão, levantando a poeira de quem molda o destino. O nome de Nabi surgiu pela primeira vez ao lado do de Minsi assim, entrelaçados como as raízes de árvores que crescem demais debaixo da terra. Flores do mesmo galho.
Se tornaram inseparáveis desde então. Em brincadeiras, jogos e afazeres, aquela Minsi de mãos delicadas se oferecia para ajudar Nabi na lida diária de lavar roupas no rio, alimentar as galinhas, pajear os porcos e cuidar de Hansu.
Quando as bonecas de pano de Minsi adoeciam, Nabi era a mudang que, com flores arrancadas aos tufos dos canteiros, as benzia em segredo e as curava das mazelas com feitiço e reza. Quando eram uma família, não se importava em ser a outra mulher vivendo de favor na casa. Sem necessitar da presença paterna inútil, nutria e sustentava a prole feita de algodão e ensancha, com seus olhos negros de botão, que orgulhosamente chamava de sua. Havia batizado o garoto de pano com nome de sol. Hajun. Ela dizia. Será Hajun.
Vivia metida no par de calças do irmão caçula, que era um tantinho de nada quase de sua altura, e era repreendida. Onde já se viu uma menina usando calças compridas como se fosse um namseong? A eomeoni dizia.
Antes de obrigá-la a tirar a peça enfiada por baixo do hanbok feito de retalhos de saco de arroz.
Minsi ensinou-lhe tudo. A ler e a escrever. As regras inéditas de um amor. Foi seu primeiro beijo, naquele treino adolescente de boca compartilhada com os lábios mais próximos. Também menstruaram quase na mesma época, com um ou dois dias de diferença. Sincronizadas em seus ciclos lunares e circadianos.
Cresceram juntas.
Minsi, a quem Nabi implorava os beijos, lambia as feridas e devotamente entregava o coração e o corpo sem pedir muito em troca. Pensava em si como uma estrutura frágil de ossos de vidro, regalada a refletir Minsi. Cujo sangue da menarca vertendo entre as pernas, com cor de cerejas arruinadas, experimentava por curioso estudo anatômico da criatura amada. O gosto pueril, adstringente e terroso, do barro do qual fora moldada, com mãos delicadas e dedos habilidosos, e a contrição áspera de uma fruta verde que ainda não fora colhida, crescendo e crescendo dentro de um solo fértil intocado. Nabi afundava naquele cenário, entre os excertos do mundo ao qual Minsi pertencia; céus e terra, ou nas profundezas ocultas de algum reino inventado por elas. As mãos se perdiam no adubo daquela terra de ninguém, fazia do solo infértil, sua Canaã. As unhas, roídas até o sabugo e repletas de manchas de leuconíquia, comprovavam as deficiências nutricionais de uma alimentação precária, justificando a magreza excessiva, os ossos salientes de uma Nabi frágil, que sempre fora instruída a analisar a vida através de um viés romântico, mesmo naquela miséria. Nas crendices da tia, os riscos marcados nos dedos eram apenas sinais de uma paixão não correspondida, de excessos de ciúmes, da demasia de Minsi em seu corpo, substituindo outras necessidades básicas. Era um fôlego de vida que se estendia na forma de outra menina, proporcional aos braços, lábios, um abrir de pernas e ao coração.
Sentia ciúmes de Minsi, de sua beleza, da atenção que recebia. Mal podia se conter quando os garotos do vilarejo enfileiravam-se para cortejá-la. Queria poder se vangloriar dos feitos silenciosos, na calada da noite, quando podia tocar aquela mulher até os confins do mundo, cada centímetro de pele, de carne, da mucosa encantada da boca com gosto de sono. Contornava o quadril de Minsi com seus dedos calejados no silêncio daquela casa, e se sentia meio santa, meio bruxa por ter só para si uma criatura que lhe era sagrada. O pecado que cabia proporcionalmente em braços e lábios.
Eun Byul, vinda da capital, com seus maus olhos, viu onde ninguém mais via malícia naquela amizade. Disse que aquela era uma diversão envenenada, perigosa. Vi muitas dessas garotas perdidas em Seoul, lotando bordéis, largadas na rua. São duas meninas, dizia Ae-Sook, foram criadas juntas. Ainda brincam de bonecas.
Eun Byul encheu seu coração com aquelas maldades.
Então Minsi teve suas cartas de amor confiscadas pela desconfiança da mãe, que sem pensar duas vezes, fez de Nabi o diabo e condenou sua alma. O esconjuro seguiu junto à inquisição de uma adolescente que só havia experimentado sexo com alguém que amava. Puta, imunda, perdida. Para o inferno com essa criada. O espectro de maldições seguiu Nabi como a promessa da premonição. Foi condenada a um exorcismo, à portas fechadas, bíblias abertas, banhos de água benta e privação de alimentos por três longos dias. Definhou na despensa vazia de um missionário com imprecações na porta, requintes de missa negra.
Não era um demônio possuindo Nabi. Era seu coração, tonto, bêbado, perdido de amor. Quanto mais rezava, mais pensava em Minsi. Mais queria Minsi. Mais desejava Minsi.
Minsi foi mandada embora para Seoul, repetiu em voz alta que jamais queria vê-la outra vez, naquele último encontro, sem cor, sem brilho, sem Nabi e Minsi para sempre. Nabi acatou, fez jus à promessa. Nunca mais voltou a face a Minsi, que casou-se com um soldado de saúde frágil, Nabi soube. Teve um filho. Enlouqueceu após perder o marido, antes dos vinte e um, e sendo trancada no velho sótão por dias para acalmar a histeria, Minsi tão amada. Minsi, que Nabi tanto amou, morreu de tristeza, de fome e de catatonia.
Nabi chorou ao receber a carta, a última, quatro anos após a partida. O pedaço de papel desbotado, um subtexto de eu te amo, não te esqueço, me perdoe e outras palavras íntimas que jamais caberiam aqui.
"Tive um filho, Nabi-ah. Um menino forte, bonito, saudável. Queria que estivesse aqui para vê-lo. Fiz jus à nossa promessa. E seja de onde estiver, cuide de nosso pequeno Hajun."
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— Caralho, você é simplesmente muito bom nessa merda!
— Não precisa mentir, Joonie, é só uma primeira versão. Não vou ficar triste com uma opinião sincera.
Imo Nabi foi a melhor amiga da omma na infância. Mamãe costumava falar sobre as ideias mirabolantes daquela Nabi menina, que vivia em um pequeno vilarejo no interior de Busan, sem grandes oportunidades, e sonhava em usar calças e pilotar uma moto como os soldados americanos faziam.
Omma amava o abeoji demais, era verdade, mas naquele diário de páginas desbotadas, o couro gasto da capa se desprendia nos dedos, quase todo escrito, até mesmo nas bordas, ela escrevia sobre Nabi-ssi com um tipo de amor que nunca tinha visto antes.
Nabi e Joohyun para sempre, dizia a inscrição no canto do papel, dentro de um coração desenhado de forma torta. Outra entrada anunciava a primeira aula de Nabi-ssi; mamãe iria ensiná-la a ler.
Uma semana depois, Nabi morreu de tifo, na primavera de seu aniversário de quinze anos. Nunca conheceu o mundo, nem aprendeu a ler. Nunca saiu do estado encantado, beirando as águas da praia de Haeundae, como sonhou. Foi ela quem escolheu o meu nome, omma me disse uma vez, antes mesmo de saber da minha existência. Era a minha anedota favorita de existência. Sentia que havia sido invocado por aquela Nabi corajosa e tinha um pouco dela, mesmo sem conhecê-la.
— Não havia criança alguma com seu nome, você acredita? Era para ser seu. Para você ser o primeiro. — Mamãe disse.
Queria dar a ela uma história digna, já que ela me deu um nome.
— Falo sério, e olha que já li bastante coisa na minha vida. — Joonie afirmou. — Você nunca me contou como aprendeu inglês?
— Meu tio me ensinou muita coisa, mas boa parte foi por conta dos Smiths.
— Aquela banda dos anos 80? — Riu.
Assenti.
— Alguém doou uma caixa de fitas para a igreja uns anos atrás, e o Stane me deu todas. Tinha uma dos Smiths, e cara, eu posso te jurar, ouvi aquela fita num walkman velho do meu pai por cinco dias seguidos e decorei cada palavra. Buscava a tradução numa enciclopédia mofada que o Min tinha em casa, pedi para ele transcrever a letra de uma das músicas e fiquei relendo até decorar. Basicamente, foi uma maneira bem fácil de ganhar vocabulário.
— Foda!
— Depois que aprendi boa parte disso, parti para a literatura.
— Você ainda tem essas fitas?
— Todas elas. Já ouvi todas. Meu gosto musical foi totalmente moldado por quatorze fitas com músicas dos anos 80 que alguém simplesmente decidiu jogar fora.
Vivi um instante mágico. Uma epifania. Se é que posso chamar assim.
Como um segundo precioso em que você olha ao redor e é capaz de perceber tudo, mais rápido que um reflexo, como se a vida estivesse lentamente se desintegrando diante dos seus olhos. Eu poderia dizer que foi a mesma sensação de ouvir The Smiths pela primeira vez. "How Soon Is Now" tocando nos fones de ouvido daquela fita ruidosa, os riffs de Johnny Marr ecoando através do aparelho como se ele tivesse seis braços segurando a base da guitarra com precisão e sincronia perfeitas em cada acorde. Tam, dam, dam, dam. A voz aveludada e poética de Morrissey cantando canções sobre minha vida. Doze anos e parecia ter descoberto o mundo inteiro.
Eu sempre pensei que os Smiths cantavam músicas para garotos como eu.
Os atormentados. Incompreendidos. Solitários.
E também pensei que, de alguma forma, minha situação me tornava especial. Mas aqui, neste lugar, eu vejo que há centenas de meninos iguais a mim e todos eles, assim como eu, logo também serão esquecidos.
— Joonie, eu preciso perguntar uma coisa. Espero que não me entenda mal; só estou tentando juntar as peças do que aconteceu naquela noite.
Ajustei a postura no banco, não conseguia olhá-lo nos olhos. A expressão no rosto de Joonie endureceu.
— Quando você estava na furna, eles fizeram algo com você, algo além das surras?
Os garotos do outro prédio corriam ao redor da quadra de terra batida do lado de fora. Eu podia ouvir gritos esporádicos dos guardas, as passadas firmes da corrida em grupo, o mundo ordinariamente funcionando como deveria. Uma derradeira memória do dia.
Ele assentiu. A atmosfera do lugar pareceu mudar.
— Não tem uma noite que não pense nisso. Ou deseje enfiar uma faca pontuda na barriga daquele desgraçado do Tidwell. — Joonie limpou as gotas de suor com a manga da camiseta. — Você não foi o primeiro, nem o único. Faz parte dos rituais dos guardas. Nós suportamos as surras; nossos corpos são jovens demais, se recuperam rápido, mas eles gostam de brincar com nossa dignidade. De lembrar quem manda nesse inferno.
Baixei os olhos para as cartas, vendo o rosto sorridente de Sharon Marie e aquela versão minha que estava morta e largada em uma sala escura nos fundos do Lorton.
— Essa sensação não vai embora, se quer saber bem a verdade. Você aprende a lidar com ela, escondê-la no canto do cômodo, movê-la para fora da casa. Mas ela continua lá, encarando você com olhos brilhantes do outro lado da rua, junto dos outros medos dos quais você se esconde. — Disse ele, com a voz trêmula. — Terá que aprender a lidar com isso.
— Sinto muito por isso, Joonie.
Entendia a dor e também as proporções daquilo, fora de mim. Poderia ocultar aquele segredo, nunca mais tocar no assunto, fingir que não estava abalado o suficiente ao ponto de sentir medo de dormir sozinho. Mas era um esforço descomunal em nome de uma mentira. Uma mentira que continuaria me acusando até o fim da vida.
— Já pensou em falar com o terapeuta? — perguntou Joonie.
— De que adianta compartilhar com os outros adultos? Eles estão pouco se fodendo. Isso não está certo, merda, isso é fodido pra cacete.
— Não, o Andrei é diferente. — Disse, virando para mim. — Você não precisa dar detalhes, sei que é... Bom, é difícil. Mas guardar também não te fará bem. Você sabe o que acontece quando guardamos essas merdas todas dentro de nós, Jay?
Fiz que não com a cabeça.
— Nos tornamos desprezíveis iguais a eles. Iguais a todos eles. Podres. Sem alma. — As lágrimas de Joonie surgiram no canto dos olhos, discretas. — Eu não quero me tornar um monstro, Jay. Não darei isso a eles.
📼
No fim da tarde, Joonie e eu saímos para dar uma volta no jardim da propriedade e comer todo o kimbap que Min havia mandado, com tempero de casa. Naquele horário, o céu ficava em um tom de azul fantasmagórico bonito, a neblina noturna surgia por entre as árvores, depois das grades, e chegava de mansinho.
— Você veio parar aqui por conta da Sharon?
— Não, era uma outra garota! — disse — E não foi exatamente por ela, o pai dela era um babaca.
Ainda lembro o jeito que Pattie Benevitte enlouqueceu minha cabeça. Nunca tinha visto uma garota com cabelos daquela cor, eu me lembro de pensar, só na TV, como a Molly Ringwald, ou nos clipes das bandas de rock. Era como uma folha de bordo no outono, um tom de vermelho que me lembrava o fogo. E parecia perigosa. Com seu delineador azul contornando a linha d'água dos olhos verdes, as sardas salpicadas na cara bonita.
Pattie era uns anos mais velha, três ou quatro, era veterana no ensino médio. Sabia disso porque, morando naquela casa nos fundos da escola, acompanhava a rotina das aulas e a troca de turnos. Sabia também sobre o namorado, Billy. Um babaca do clube de luta que vivia comendo outras garotas no terreno abandonado nos fundos da igreja, onde todo cara degenerado levava uma garota quando tinha segundas intenções.
Às terças, Pattie estava na educação física. Mantinha os cabelos presos em um rabo de cavalo bonito, com seus shorts curtos de ginástica e era sempre a primeira a ser escolhida para a queimada, vôlei ou exercícios em dupla. Gostava de olhá-la de longe, capturando tudo, cada mínimo movimento, tentando administrar aquele sentimento novo que crescia no meio do estômago, abaixo do umbigo, entre o jeans e a cueca, e fazia o corpo inteiro latejar.
Naquela época, descolei uma revista masculina entre os itens pessoais de Yoongi-hyung, escolhi a garota ruiva na capa com um propósito um pouco menos inofensivo. Com ela, só me restava sonhar.
Não me recordo com exatidão qual foi o nosso primeiro contato; acho que foi por conta daquela maldita carta. Um poema patético que enfiei em sua mochila de treino enquanto ajudava o Tio Min com os cenários da peça escolar. Nunca teria chance com uma garota daquelas, eu pensava: bonita, experiente e mais velha, iria rir de mim, daquela patética rima que exalava a minha virgindade no papel e inanição pelos poros.
No alto verão, ela arde em calor
Como a folha vermelha da flor que brilha antes do adeus,
Uma chama viva contra um céu sem cor.
Um poema ruim, que combinava com a pouca idade, a inata inexperiência. Pattie sabia quem havia deixado aquele bilhete. O esquisitão sempre à espreita nas aulas de educação física, obcecado em assisti-la. Eu. Eu. Eu. Uma semana depois, recebi a resposta, um pedaço de papel enfiado entre as grades que separavam o gramado escolar de nossa casa.
Sei que é você!!!!
Apareça aqui às oito horas, ou contarei tudo ao seu tio
e ao Billy.
As coisas começaram assim, de forma emblemática. Havia beijado algumas garotas naquela época, — mãos sob saias, sutiãs erguidos, e calcinhas úmidas, mas com Pattie era diferente. Aquela experiência não era algo que se aprende em uma aula de educação sexual no colégio, ou com amassos secos no banco de um carro no drive-in. Muito menos batendo punhetas em noites solitárias no meu quarto. Não era uma excitação que se traduzia em algo comum, não era somente ela, mas um encanto de primeira grandeza, cobiçoso, que rompe o sonho ativo e atravessa a realidade com um soco no meio da cara. Existia, era real, e delicioso. Ah, porra! Era tão delicioso.
— Não deveríamos nos beijar primeiro? — perguntei, enquanto ela levava minha mão para dentro de sua saia.
— Não — ela respondeu. — Garotos como você merecem outra coisa.
Foi minha primeira vez.
Naquela época, não sabia direito o que fazer, obedecia aos comandos involuntários que pareciam sair corretamente. Já tinha recebido outros boquetes antes, claro, daquele jeito inexperiente e atrapalhado. Mas nunca tinha enfiado a cara debaixo da saia de uma garota. Pattie direcionava as palavras e eu agia, como um soldado treinado sob adestramento. Era tudo quente, excitante e úmido. Erguida em meu colo, movendo-se como um pássaro, ela me levava a sensações que nem sabia que meu corpo era capaz de sentir.
Pattie me ensinou tudo, o que era bom e o que era ruim. E durante aquele curto primeiro ano, antes de ela ir para a faculdade, nos encontrávamos todas as noites. Eu escalava o telhado da casa dos Benevitte, jogávamos damas, cartas, assistíamos TV e trepávamos até a exaustão.
No primeiro ano da faculdade, Pattie parou de responder às minhas ligações. As cartas eram devolvidas ao remetente ainda seladas. Nas férias de primavera, ela retornou a Roseville e eu, como um cachorrinho adestrado, obediente e sedento, voltei para os braços dela. Dizem que você se apaixona pela primeira garota com quem trepou. Talvez seja verdade. Não sabia se estava apaixonado, mas gostava do que fazíamos, gostava de estar com ela, da adrenalina daqueles encontros, do perigo, daquele gosto. Ela voltou modificada naquela primavera, mais madura, menos interessada, mais experiente. Eu estava distante demais para ser o seu objeto de atenção dócil, seu aluno mais dedicado.
Senti ciúmes das experiências que foram adquiridas sem mim, mas que foram vividas comigo sem culpa. Eu era o ratinho de laboratório que ela mantinha na pequena cidade condenada para seu divertimento no meio do ócio. Isso me enlouquecia, me fazia morrer de ciúmes.
Foi a última vez que estivemos juntos.
E aquele também foi o motivo que me trouxe aqui.
— E o que rolou? O pai dela pegou vocês?
— É, meio que isso. Mas a Pattie era adulta; o problema foi com ele.
— E você bateu no velho dela? Porra!
— Fui impulsivo. Acho que qualquer um seria com a merda que ele estava fazendo. Não sei, cara, o pai dela era um fodido. Ele tentou bater na Pattie, e eu quis defendê-la, e então apanhei. Ele disse que eu era uma aberração, porque sabia como minha mãe havia morrido, e que eu acabaria do mesmo jeito. Arranquei dois dentes dele com um soco, e, por outro lado, vim parar aqui.
Joonie chacoalhou a cabeça. Éramos dois órfãos de mãe mortas, o tópico não era o mais simples naquela conversa.
— Então, de quem são as cartas que você tanto lê? Sei que não são da garota das fotos. Você estaria mais empolgado se fossem — ele riu. — São da Pattie?
Ri, não conseguia imaginar Pattie me escrevendo cartas e direcionando ao reformatório.
— Tem essa garota. Recebi as cartas dela por acaso, você sabe, aquelas cartas que os internos receberam há meses...
— Que cartas?
— As cartas, os livros, e toda aquela parada de pseudônimo.
— Do que você está falando, cara? Não recebi nenhuma carta — disse ele — E nem um livro.
Então tinha dedo de Stane nisso. Eu soube. Era óbvio.
— Ah, merda. Stane. Esquece! Mas o que eu estava dizendo é que essa garota me escreveu cartas, as cartas mais bonitas que já li. Não foi exatamente o que ela disse, é só a maneira como ela vê o mundo que é tão doce, tão pura, tão cheia de vontade de viver, uma vontade genuína de experimentar alguma coisa. Nem sabia que ainda existiam pessoas assim.
— É, vai sonhando! — Joonie disse. — O mundo acaba com a raça de qualquer um que ainda queira bancar o bonzinho. Nem dá pra criar expectativas demais.
— Espero que para ela seja diferente. — Tateei o cigarro em um dos bolsos quando alcançamos uma distância segura do prédio, tirando o isqueiro da parte interna do tênis
— Eu queria que fosse diferente.
Desejava, genuinamente, a felicidade de Sofi como se ansiasse pela minha própria. Não fazia sentido; eu mal conhecia aquela garota. Tudo que sabia sobre ela estava resumido a um pedaço de papel com sua caligrafia bonita e algumas palavras de apoio dedicadas a um estranho.
Ela não sabia que se tratava de mim, do último cara com quem ela teria autorização para falar na cidade, e agora, da criatura nojenta que jamais poderia se aproximar dela com sua miséria contagiosa.
Anjos como ela não merecem afundar nos paraísos artificiais de um serafim caído.
— Então você vai atrás dela quando sair daqui? — Joonie perguntou, alcançando o cigarro e dando uma longa tragada.
Fiz que não com a cabeça.
— Sou a última pessoa que deveria se aproximar dessa garota. Estou longe de ser o cara certo para isso. Olha onde vim parar!
Joonie chutou a grama com o bico do tênis, o silêncio desconfortável tomou mais espaço do que deveria.
— Ela é gata? — a pergunta quebrou o clima.
A pergunta de Joonie me fez rir. Nunca tinha pensado nela desse jeito. Sofi sempre pareceu estar um grau acima do meu alcance. Era filha de um professor, frequentava a igreja religiosamente todos os domingos e dias de preceito, e estava sempre com a melhor amiga ou grudada em Taehyung. Às vezes, ajudava a cuidar das flores no canteiro de Stane. Entrava e saia da sala pessoal de Stane sem dar uma palavra. Era invisível para ela, como se fizesse parte da mobília.
Parecia inacessível. E era.
— Acho que nunca tinha notado o quanto ela era bonita.
— Não acha que deveria ao menos tentar? Sei lá, você é um cara bonitão, bacana, e pelo visto enlouquece a cabeça das meninas em Roseville.
— Prefiro manter as cartas. Não quero que ela pare de me amar quando descobrir quem eu realmente sou.
— Não seja assim, Jay. Ela pode gostar ainda mais sabendo que você é você mesmo.
Fechei os olhos, sentindo a brisa fria de outono quase rasgar a pele. Soprei a fumaça para longe, a nicotina misturando-se com o ar gelado.
— O problema é que sou miserável demais para isso, vou acabar arruinando essa garota se me aproximar demais.
Joonie se agachou para pegar um pouco de grama úmida.
— Você não tem medo de acabar se apaixonando por ter que evitá-la tanto assim?
Joguei o cigarro no chão, apagando com a ponta do sapato quando um dos guardas surgiu do outro lado do campo.
— Não dá para temer o que já aconteceu, Joonie.
❙❙
N/A: Olá, quanto tempo, como estão?
Volto não só com capítulo novo, mas com uma super, super novidade:
ESTAREI NA BIENAL DO LIVRO DE SP EM SETEMBRO!
Com o lançamento do livro físico de Badlands se aproximando, penso que essa é a oportunidade ideal para encontrar e conhecer vocês, além disso, tô levando brindezinhos e outras surpresas!
Estarei presente no primeiro final de semana:
No dia 07 de setembro e no dia 08 de setembro.
Todas as informações sobre o estande, os horários e outras dúvidas estão disponíveis lá no meu Instagram (@/vestigiosdesaturno), e vou continuar atualizando sobre TU-DO!
A tag da história é #GarotoSmiths.
*Alguns dos eventos citados são baseados/inspirados em histórias ou eventos reais retirados da pesquisa e os links, documentários, livros, matérias e filmes estão disponíveis através de uma thread na minha conta do Twitter (etthereal_).
Como havia mencionado antes, os capítulos que envolvem as fitas são, quase sempre, os mais difíceis de escrever pelo próprio conteúdo dos acontecimentos, principalmente as situações de torturas que são inspiradas em situações reais com internos de reformatórios ao redor do mundo.
Lembrando que o intuito deste capítulo não é romantizar uma crueldade ou desumanizar o próprio personagem, mas trazer uma reflexão sobre o sistema carcerário juvenil ao longo dos anos e o abuso de poder.
Há anos iniciei as pesquisas sobre os reformatórios nos Estados Unidos e o sistema de encarceramento juvenil norte-americano, onde Badlands é ambientada. Foram meses e meses de construção cuidadosa, pesquisas seguras em artigos científicos, documentários, matérias sobre o funcionamento dessas instituições e também sobre os segredos que a maioria delas esconde.
O Instituto Bartholomew Lorton para Jovens Infratores, em Badlands, é um lugar fictício, porém inspirado em reformatórios reais que funcionaram nos Estados Unidos entre os anos de 1900 e 2011. E queria compartilhar com vocês um pouco sobre a minha pesquisa.
A inspiração para a criação do Reformatório Lorton foi a Escola Arthur G. Dozier para Rapazes e outros reformatórios públicos que se utilizam de punições físicas e psicológicas na tentativa de "ressocialização" dos internos, que se davam muitas vezes por pequenos delitos.
Como faltar às aulas, brigas de rua e o que eles chamavam de "incorrigibilidade", de meninos e rapazes entre 5 a 18 anos. Alguns eram enviados ao reformatório por falta de vagas em orfanatos. E todas estas instituições eram financiadas pelo governo.
Nestes lugares, os alunos eram submetidos a um sistema de créditos e deméritos, muito comum em instituições de caráter correcional. Os créditos eram dados por serviços prestados à instituição, empregos que reduziam a pena como: auxiliar na lavanderia, cozinha e na organização do ambiente.
Já os deméritos, que segundo as regras dessas instituições, só deveriam ser aplicados em casos de descumprimentos de horários e da boa convivência, eram executados como castigos físicos e psicológicos na maioria das vezes (surras, jejuns obrigatórios e outras torturas).
Em 2013, após uma análise de solo por uma empresa ambiental, 55 corpos foram descobertos em possíveis "covas" nos fundos de uma destas instituições, dentre esse número, 27 corpos apresentavam mortes não-naturais. Muitos nunca conseguiram sequer ser identificados.
A função destas instituições era reabilitar estes jovens e transformá-los nos chamados "cidadãos de bem", produtivos e úteis para a comunidade. Mas a maioria dos internos que sobreviveram às torturas impostas nestes lugares, jamais superaram os traumas.
No Twitter (@/etthereal_), disponibilizei os links das matérias lidas, das fontes de pesquisa e dos livros inspirados em fatos reais lidos durante a construção do lugar.
Espero que tenham gostado do capítulo, a gente se encontra em breve.
— Com muito amor, Sô.
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