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FITA #1: LADO A (Para a garota que me salvou)

TW: Violência, Xenofobia, Menção a suicídio e abusos físicos/psicológicos.


Dedicado aos garotos sem nome, cujas histórias jamais serão esquecidas.


Registro Fonográfico Pessoal de J. Jungkook.

Datado em meados de Out/1995 

Reformatório Lorton, FL.


 "Mesmo quando eu andar

pelo vale da sombra e da morte,

não temerei perigo algum, pois tu estás comigo;

a tua vara e o teu cajado me protegem."

Salmos 23:4


O poema emoldurado diante da porta de entrada do prédio me dava calafrios.

Senti um mau presságio no detalhe irônico das entrelinhas daquele versículo assim que repeti-o em voz alta. A maioria das casas mantinha uma prece bíblica nas portas pedindo proteção, mas ali, soava como um aviso.

O cenário aparentemente inocente do Instituto Lorton, como costumava ser chamado, parecia acolhedor e familiar à primeira vista.

Os crucifixos pendurados em cada ala evidenciando um decoro cristão, serviam para aliviar o medo crescente.

Assim como as várias versões de um Jesus ocidental, louro e piedoso que nos acompanhavam com os olhos estáticos conforme avançávamos para dentro, seguindo o instrutor. Na leva daquele lado do estado, eu era o mais velho. A maioria dos meninos tinha entre doze e treze anos e possuíam pequenas transgressões como: ser pego fumando na escola, batendo carteiras de idosos ou por má conduta escolar. Animais de rua cruelmente capturados para o abate.

O reformatório Bartholomew Lorton abrigava em torno de 768 jovens entre doze e dezoito anos cumprindo pena por algum destes pequenos delitos. Os internos eram distribuídos em quatro prédios divididos por alas nomeadas como presidentes americanos: Roosevelt, Van Buren, Kennedy e Coolidge.

No prédio principal havia uma biblioteca, um refeitório e uma capela. Sem muros altos, correntes ou cercas elétricas. Dando uma falsa sensação de liberdade. De permissão.

Na parte frontal, um jardim bonito, coberto de lírios da temporada. Ao lado, uma quadra de basquete e um espaço livre onde os guardas costumavam jogar futebol com alguns garotos, havia fotos destes momentos penduradas na ala principal, como se ali, diante de um sofrimento imperceptível a olhos descuidados, não estivéssemos sob uma hierarquia de quem manda e quem obedece. De quem bate e quem apanha.

Não existia nada que pudesse diferir o lugar de um campus acadêmico ou uma dessas instituições particulares caras pra caralho.

Nada ali causava a mínima suspeita de que alguns de nós não voltaríamos para casa, éramos esquecidos dentro daquelas velhas paredes marcadas, como a inscrição profética diante da porta e o aviso talhado contra o banco da capela. "Não há Deus aqui, você está no Inferno."

Paramos na ala norte após as boas-vindas dada pelo homem segurando uma prancheta, e fomos guiados para a primeira revista. Um dos guardas se apresentou. Seu nome era Eugene Tidwell, mas todos o chamavam de Tallahassee, por conta do sotaque marcante daquela região da Flórida onde havia nascido. Em resumo, um homem mediano de pele clara e olhos verdes aguados. Tinha uma cicatriz no olho direito que atravessava a pálpebra, um cabelo ruivo ralo e uma aparência truculenta. Algo sobre Tidwell me remetia ao pai de Yoongi. A mesma essência infernal de criatura diabólica.

Lembro bem da primeira imagem que tive dele naquele momento crucial de colisão. Todos estavam voltados para a parede, olhos fixos nos azulejos sujos de um banheiro comum e compartilhado quando ele ordenou que tirassemos a roupa.

— Eu mandei tirar tudo — disse ele, quando permaneci ainda vestido na última peça.

— Você fala minha língua? Entende o que eu digo? — começou, — Qual seu nome?

Assenti.

— Jungkook, Senhor.

— Disse para tirar tudo, não me ouviu? Tirar-tudo! — Ele gesticulou como se eu não tivesse capacidade alguma de compreendê-lo.

— Prefiro ficar com a última peça, Senhor.

— Ouviu essa, Ricky, o ching-chong aqui prefere não mostrar as bolas — Ele falou para o guarda parado ao lado da base, que devorava um pacote de balas da cesta de um dos internos — Você, por acaso, é melhor que algum dos outros garotos aqui? Acha que merece algum privilégio?

— Não, senhor.

— Devemos nos curvar diante de Vossa Alteza?

— N-não, Senhor.

Toquei o elástico da cueca apressadamente, puxando-a para baixo, quando ele me mandou dar um passo adiante. A ponta de seu cassetete tocou de raspão o meu saco, batendo entre as coxas, instigando-me a abrir as pernas. A sensação gelada me fez prender a respiração. O mau presságio no poema recitado mentalmente me voltou à mente. "Mesmo se eu andar no vale da sombra da morte, não temerei." Mas a dor foi crua. A pancada me fez ver estrelas.

O som de minha carne pareceu oco, me paralisando de imediato. Então veio o primeiro soco, inesperado, na lateral de meu crânio, tão violento que me deixou com um zunido no ouvido por duas semanas. A quentura de sua mão tatuada contra a minha pele ainda ardia. O segundo soco fez minha cabeça girar, desequilibrando-me. A réstia de sangue cobria os lábios e o queixo. Um chute direto no estômago revirou tudo por dentro. O espelho lateral mostrava o dano em duas ou três figuras projetadas de um prisma de visão turva. Tallahassee me ergueu pela base da nuca enquanto ainda estava zonzo o suficiente para ver pontos escuros em qualquer direção que olhasse.

— Só quero lembrá-lo de como as coisas serão por aqui de agora em diante, bostinha. Que sirva de lição para algum outro engraçadinho. Vocês acham que alguém se importa com vocês depois que passam daquela maldita entrada ali?! Rá. Enquanto estiverem aqui, vocês são meus e eu posso fazer o que bem quiser com vocês, entenderam bem?! — vociferou. — Vistam o uniforme, rápido! — Ele disse. — E você também, Alteza.

Aquela foi a primeira parada de minha descida ao Inferno. Sem deus algum para me salvar.

Nas alas subdivididas, acabei abrigado no dormitório Roosevelt, sétimo andar, cela treze, e partir dali não tinha mais um nome, havia me tornado um número: Interno 110604, o mesmo bordado na parte traseira da camiseta branca que complementava o uniforme de calças cinzas e um par de sapatos feitos de lona.

Recebi os meus horários para o lado leste do reformatório; duas aulas de literatura inglesa pela manhã, uma de álgebra após o almoço e outra que eles costumavam chamar de Preparação para Honra ao Mérito, que descobri, dias depois, se tratar de encontros semanais com o intuito de lembrar porque deveríamos nos comportar como cidadãos de bem ao invés de pensar na possibilidade de pisar outra vez em um lugar como aquele. Aos sábados, um filme institucional era exibido na sala de tevê e aos domingos, todos eram obrigados a participar das reuniões de catequese que começavam pontualmente às sete e meia.

Cada interno tinha sua cela individual com uma cama vagabunda dobrável e lençóis manchados, uma escrivaninha com uma luminária capenga e ao lado, um sanitário oxidado e imundo. Esmiúces do meu novo lar. De minha nova vida

E da antiga, ainda estava carregando o bracelete que Sharon Marie havia me dado, com contas vermelhas e um pingente em formato de cereja pendurado na lateral do pulso como a lembrança quente da velocidade assustadora com que o Verão tinha se esvaído, algo tão puro diante de um lugar sujo como aquele.

Agosto tinha passado em um piscar de olhos, e os dias ali me consumiam como se o tempo corresse ao seu próprio modo, tão diferente e vergonhosamente mais lento que de costume.

"Prometa que vai pensar em mim todos os dias quando estiver lá, por favor, prometa!"

Ela sussurrou em minha orelha, pressionando os lábios em meu pescoço, seu choro se tornando um gemido suave quando afundei dentro dela outra vez. Foi nossa última noite juntos.

Não queria pensar sobre o reformatório. Não queria pensar sobre a Roseville despedaçada que ficaria para trás com minha ausência. Nem sobre deixá-la ali, desamparada e soturna.

O coração embebido em culpa por partir, me levava a desejar guardar cada pedaço da Sharon ensolarada e de carne doce que se manteria enroscada no calor do meu corpo madrugada adentro em algum lugar do passado, em uma memória saborosa de um Verão feliz que, diligentemente, reviveria durante a ruína dos dias futuros. Adorando os ossos de seus quadris como um altar montado cujo único deus, falso, efêmero e passageiro, era eu.

Me arrastei pela pele macia de suas coxas e afundei o rosto na pelugem suave e castanha entre suas pernas, o transe zênite dos seus olhos, virados para o alto, erótico e enevoado, deixou minhas pernas bambas e meu estômago estremecido.

Desenhei um coração com as pontas dos dedos no contorno de seu umbigo, as unhas de Sharon estavam fincadas em meus ombros, como se pudesse ampará-la quando seu corpo estivesse prestes a fundir-se com o meu.

Só me concentrei em sua voz, enquanto o mesmo Jesus de cabelos louros e olhos profundamente azuis, me julgava ali, pendurado acima de sua cama.

"Prometo." respondi, mesmo sendo uma mentira. Aquela primeira noite, a mesma em que me masturbei revivendo a última vez que fizemos amor, foi a única, durante todo martírio, que pensei em Sharon Marie.

Mas por alguma razão, lembro daquela semana em detalhes; quando Stane trouxe as cartas e um garoto chamado Adam desapareceu do Lorton.

Havia mijado nas calças de tanto medo. Sabia disso porque acordei ouvindo seu choro no quarto ao lado, enquanto Tallahassee gritava a plenos pulmões. As paredes eram finas como papel, então conseguia escutar até a respiração ofegante de Adam. E um deles tinha aparecido por aqui durante a madrugada, um dos guardas do décimo andar. Eles apareciam volta e meia com algum intuito zoado que ninguém gostava de repetir em voz alta, como se trouxesse à tona uma ameaça noturna à luz do dia.

Da última vez, Tallahassee havia esfregado o rosto de um dos garotos contra o próprio mijo e soubemos, na manhã seguinte, que ele tinha sido levado até a área dos geradores, conhecida como furna, e tomado uma surra.

Sua pele estava talhada de marcas pelo chicote que eles costumavam chamar, carinhosamente, de A Besta.

A constância com que essas surras aconteciam eram ainda mais assustadoras do que as marcas de guerra desenhadas como linhas em uma peça de mármore rachada nas coxas e costas de crianças que jamais saberiam o motivo da brutalidade que motivava tanta violência. Devia existir um motivo, em algum lugar deveria haver um, e elas buscariam incansavelmente essas respostas sem nunca encontrá-las.

Segui o conselho de Tanner e tentei não me envolver. Já tinha levado um soco no chuveiro, na semana anterior, logo quando cheguei, depois da primeira revista e da surra-bônus de Tidwell.

Me recusei a chupar uns caras mais velhos. Tem que ajoelhar para todos. Ele disse, já tava com metade do pau duro enquanto eu me ensaboava no banho. É assim que funciona aqui, seu merdinha!

Eram cinco, pelo que contei enquanto eles se agrupavam ao meu redor. Eu disse não. Duas vezes. E só me lembro do primeiro soco, seguido de um chute direto no estômago. Tenho quase certeza que um deles urinou em mim.

Aquelas eram as regras básicas de um reformatório com hierarquia interna: os mais velhos mandam e você, recém-chegado, obedece. Por conta disso, passei quase cinco dias sem usar os chuveiros. Estava fedendo feito um porco.

Durante o almoço, tentei não fazer contato visual com ninguém. A refeição era a mesma merda mal cozida quase todo dia: um peixe com um molho rosado de cebolas refogadas e uma salada crua que parecia ter sido descongelada às pressas.

Vi dois garotos, Pat Lavigne e John Needles, respectivos numéricos 345687 e 126574, roubando o leite de um dos meninos mais novos. Os dois escarraram no copo de plástico, expelindo um muco esverdeado e elástico, e obrigaram o garoto a beber até a última gota misturada à bebida quente enquanto assistiam. Passei a tarde com o estômago embrulhado. Antes mesmo das doses de vitaminas que éramos obrigados a tomar após cada refeição.

Na fila para receber as vitaminas e medicações diárias, conheci Namjoon Curtis, ou Joonie, como costumava chamá-lo; um garoto um pouco mais velho e de pai coreano, cuja afinidade senti de primeira.

Ele me explicou como funcionavam as regras durante minha ida até a biblioteca para checar os livros parcos e cheirando a mofo enfiados em prateleiras de madeira corroída. Era um ano mais velho que eu e administrava aquele emprego para diminuir a pena: três anos e nove dias no Lorton.

Defendeu a mãe de um padrasto abusivo, que por muito tempo pareceu inocente, como a maioria também parecia sob um primeiro olhar. Namjoon costumava ser um aluno brilhante de uma academia renomada no Sul da Califórnia, mas bastou que os estilhaços de uma garrafa de Jameson 12 Anos atingissem uma veia mais profunda no pescoço do filho da puta que Joonie acabou vindo parar aqui. O padrasto não morreu, mas sua mãe, sim, nove dias depois de sua chegada ao Lorton. Enforcada com a ajuda de um cabo de liquidificador pelo mesmo homem que lhe tirou tudo, Joonie disse. O corpo foi encontrado uma semana depois, um dos guardas fez questão de lhe dar todos os detalhes.

Lorton tinha uma divisão de créditos e deméritos como qualquer outra instituição. Os créditos eram dados pelo seu trabalho; se candidatar a uma das vagas de emprego dentro do instituto era a forma mais rápida de conseguir alguns, os deméritos poderiam ser recebidos por alguma atitude fora da curva ou se um guarda não fosse com a sua cara. O que já tinha me deixado com saldo negativo nos primeiros trinta minutos de permanência naquele lugar.

As regras eram claras.

Se for pego fumando, bebendo ou praticando qualquer atividade ilegal ou violenta, você toma a punição de 50 deméritos.

Se for pego se masturbando no banho, em algum espaço de convivência comum ou praticando qualquer ato libidinoso com um outro interno, 100 deméritos, o que seria equivalente a mais dois meses encarcerado no inferno.

Desrespeitar ou agredir um dos guardas era um caminho sem volta. A maioria nunca mais dava as caras no dormitório outra vez. E se a pergunta era se eles voltavam para a casa, a resposta era clara: seus corpos apodreciam numa cova rasa nos fundos do prédio. As famílias eram informadas sobre fugas que nunca, de fato, ocorreram. Rostos, nomes e documentos eram incinerados junto a qualquer menção de um desses pobres coitados enterrados debaixo de uma areia escura usada como espaço esportivo.

— Quem te pegou assim? — Joonie questionou, apontando para a ferida coberta por uma casca fina no canto do meu lábio.

— Um dos guardas, — comecei, tirando as mãos do bolso e cruzando os braços diante do peito — Tallahassee.

Joonie ajustou os óculos no rosto e voltou a posicionar os livros de forma organizada, Save a Prayer do Duran Duran tocava baixinho em um rádio à pilha no canto da sala, "You saw me standing by the wall corner of a main street and the lights are flashing on your window sill", cantava o vocalista. Caminhei para dentro do corredor e deslizei os dedos pelas lombadas empoeiradas e desniveladas. Tinha uma edição de O Retrato de Dorian Grey de 1981 no canto externo, as páginas exibiam marcações a lápis, era idêntica à que mantinha na casa do Sr. Min. Senti saudades do meu quarto, da minha cama macia, dos meus discos e de um banho tranquilo, sem o medo iminente de qualquer violência.

Na estante contrária, uma coleção de Penny Dreadfuls exibia algumas capas pela metade, a primeira, Sweeney Todd: O Barbeiro Demoníaco da Rua Fleet.

Imaginei. Teve sorte que acabou com uma surra — Ele disse, caminhando na direção oposta. — Se eles te levassem para a furna, você nem teria chance.

Por mais que tenha me feito de estúpido, sabia bem o que ele queria dizer. Outros garotos já tinham sido levados para lá e nunca mais foram os mesmos. O que acontecia por trás dos geradores não deveria ser mencionado em voz alta por ninguém. Nunca.

— É, acho que tive sorte, sim.

— Toma —, Namjoon ergueu o livro com uma capa de couro preta — Talvez te ajude a relaxar hoje, mas precisa me devolver amanhã mesmo. Temos um sistema de rodízio aqui. Tô te passando minha vez, novato. E vê se não suja as páginas de porra.

Abri o livro cuidadosamente, e no lugar de folhas de papel lotadas de parágrafos, as páginas exibiam colagens da revista Playboy. Peitos bonitos organizados em tamanhos diversos no topo da página, bocetas lisinhas em foco dinâmico e garotas lindas com línguas de fora, em posições sugestivas e ângulos que não exigiam tanto esforço imaginativo.

— Acervo completo e atualizado mensalmente. — Joonie riu. — Hatchet traz as revistas e ele mesmo monta as colagens, o cara é um artista. — Ele tirou a caneta escondida na dobra da orelha e puxou a tampa com o dente, fazendo anotações na ficha presa a prancheta.

Hatchet era o guarda daquele turno, o mesmo que estava ali, adormecido com as botas apoiadas sobre balcão e tinha um chapéu de cowboy estúpido, porque jurava ser um, mas o mais perto que já esteve de uma vaca deve ter sido em um fast-food.

— Legal. — respondi, embora o meu desinteresse no acervo fosse perceptível a qualquer um.

— Você não quer? Geralmente os novatos ficam empolgados com isso aqui! É de primeira. — Joonie mostrou a imagem centralizada, exibindo uma versão agigantada de uma mulher de cabelos ruivos e pentelhos da mesma cor, com dois dedos enfiados dentro da própria boceta. Uma imagem excitante. — O que me diz?

Dá tesão, é só que eu não...

— Oh, oh! Você curte caras?! Bom, conheço alguns aqui no Lorton que talvez você goste de conhecer. Tem o Jamie, o Lionel...

— Não, não é isso, acho que só não tô no clima.

— Ah, você é do tipo romântico? Isso não costuma durar muito por aqui.

— Não acho que seja o caso.

— Tem namorada? — Não podia afirmar que Sharon era minha namorada, nunca tínhamos dado nome àquilo, nenhum rótulo. Era o mais próximo disso, de alguma forma. Tivemos o Verão inteiro para ser um do outro, enquanto Agosto corria como uma ampulheta cruel e as datas marcadas desapareciam no calendário, vivemos uma repetição de dias excitantes e felizes. Mas o título parecia não se encaixar de forma apropriada. Não amava Sharon. Disso eu sabia.

— É, meio que tenho.

— Ela é bonita? — Joonie questionou, enquanto afastava as caixas com o pé.

— Ela tem um título de Miss na cidade. — respondi — É a garota mais bonita que já vi na vida.

Ele puxou os óculos, que pendiam no nariz, para cima.

— Espero que vocês tenham aproveitado o suficiente para você aguentar até o fim da sua pena, novato. — ele riu. — Pornografia não é traição, se quer saber.

— Só não é meu modo favorito de passar o tempo.

Seus ombros relaxaram. As marcas na pele subindo por dentro da camisa, até o pescoço, pareciam rosadas. Sinais de uma cicatrização antiga.

— Bom, temos livros de verdade, você pode escolher alguns para ler na cela. — Ele apontou para as pilhas em amontoados de caixas úmidas. Segui o gesto.

— Onde posso me candidatar a um emprego? — acompanhei Joonie enquanto ele dava a volta ao redor da estante, ainda no trabalho árduo de catalogar os nichos.

— Na sala de tevê tem uma ficha disponível, mas as vagas são aquelas que quase ninguém quer, tipo, esfregar as marcas de bosta nos sanitários dos guardas. — Joonie riu — Só se eu te indicar ao Hatchet pra você ficar aqui comigo na biblioteca. Mas talvez demore um pouco.

— Eu posso esperar — respondi — Qualquer coisa é melhor do que não fazer nada.

— Você entende alguma coisa sobre livros?

Passei os olhos pelo acervo que Namjoon retirava das caixas e colocava de volta na prateleira, já tinha lido quase todos.

Um pouco. — respondi.

Caminhei até onde Curtis estava, revirando os livros em um baú com cheiro de Naftalina. Arranquei uma cutícula entre os dentes e assisti a gota de sangue deslizar pelas linhas do meu dedo.

— Joonie — chamei-o — Você acha que o Adam está na Furna?

Os olhos de Namjoon voltaram-se para o lado oposto da sala quase imediatamente, os cantos de sua boca caíram enquanto ele me arrastava pela manga da camisa para dentro de um dos armários laterais. Fechou a porta assim que entrei, mas a mão continuou segurando o trinco.

— Nunca mais faça isso, entendeu?

— O que eu -

— Nunca mais pergunte sobre os garotos que somem, isso não é problema nosso. — Ele respirou fundo, os olhos nervosos, o transtorno visível — Se alguém te escutar perguntando sobre isso, é você que vai ser levado pra lá, tá me ouvindo? Você sabe o que acontece lá, novato? Você apanha até esquecer o próprio nome. Ou até pior. Coisas que você nem imagina, que jamais esqueceria. — Seu corpo voltou-se em direção a porta, abrindo-a lentamente. Hatchet ainda estava dormindo na mesma posição de antes, as botas imundas penduradas no balcão e o chapéu cobrindo os olhos e o cabelo castanho ensebado.

— Nós deveríamos contar a alguém.

— Ah, é? Quem?! Essas pessoas deviam nos manter seguros aqui, e olhe bem o que elas fazem. Olhe bem pra você, novato. Para mim. Garotos como nós não são bem-vindos aqui, você deveria saber melhor do que ninguém que basta uma palavra nossa e acabou. Vamos desaparecer naquele terreno ali e ninguém vai nem lembrar da nossa existência.

— Você acha isso certo? Acha que essa porra que eles fazem aqui é certa? — Joonie fechou os olhos por um segundo, a expressão do seu rosto parecia imutável.

— Precisa aprender logo como as coisas funcionam aqui. Antes ele do que você!

— Mas o Adam é só uma criança!

— Eu também era e isso não impediu porra alguma! — Joonie afirmou, antes de abrir a porta e caminhar pelo corredor estreito sem olhar para trás.

Depois daquele dia, não toquei mais no assunto. Mais tarde, enquanto corríamos ao redor do campo pela manhã, vi as cicatrizes escondidas nas coxas de Joonie e entendi.

Nas primeiras horas daquela noite, quando tentei dormir, mergulhei na escuridão de um pesadelo. Nele, estava outra vez escondido no armário sob a pia, na casa do velho Min. Via os olhos de mamãe pelas frestas, seus gestos comedidos me pediam silêncio. Encolhi os braços ao redor dos joelhos e me mantive paciente e quieto, mas pude ouvi-lo se aproximar, então fechei os olhos com ainda mais força, espremendo as pálpebras até que tudo se apagasse. Contudo, o velho Min continuava me chamando.

Jungkook-ah, Jungkook-ah, aonde está você? Sabe que não pode se esconder por muito tempo. Vou achar vo-cê!

Meu corpo inteiro tremeu, o silêncio outra vez assolou o lugar. Abri a portinhola lentamente e os pés descalços de mamãe pairavam no ar, o cheiro de Primavera, vinda das rosas do quintal banhavam a cozinha, seu cabelo imenso e negro pendia diante de seu rosto, a fenda de seus olhos continuavam voltadas para baixo. Estava pendurada por um fio de um secador de cabelo atado a uma ripa centralizada, exatamente como a última vez que a vi. Acordei ao som dos meus próprios gritos. Alguém chorava no quarto ao lado e o céu lá fora permanecia escuro.

📼

— Gosto do seu cabelo assim, filho.— Padre Stane disse, assim que caminhei até ele. Seus braços pesados se fecharam ao redor dos meus ombros e seu cheiro me fez ter saudade de casa. Sem fixador de cabelos, as mechas pendiam naturalmente para baixo, revelando o comprimento longo dos fios, na altura dos lábios. Durante aqueles dias, mantive-os atrás das orelhas quase o tempo todo.

— Você não está parecendo aquele Morrison que tanto adora.

— É Morrissey, Stane. — disse e ele deu de ombros.

— Seu tio mandou lembranças.

— Ah, ele ainda lembra que existo? — Uma onda de nervosismo cresceu na boca do meu estômago.

— Não seja assim, Jungkook. — Stane começou — Você mesmo pediu pra ele não vir.

— Ele não viria de qualquer maneira. — afirmei — Não colocaria os pés aqui.

Stane bufou.

— Mas a garota dos Blossom mandou lembranças. — Seu ombro raspou contra o meu, e um sorriso surgiu nos seus lábios ao mencionar Sharon — Disse que estava com saudades de você.

— Ela está bem?

— Está triste. — afirmou — Sente sua falta.

Stane desviou do assunto, caminhando pelo jardim frontal do Lorton que em dias de visitas se enchia de mesas, cadeiras e crianças tristes por terem que se despedir dos pais, avós e irmãos.

— Trouxe isso pra você. — Stane disse, exibindo um caderno com páginas em branco e duas canetas esferográficas pretas, dentro do pacote, envolto em papel seda, uma carteira de cigarros Lucky Strike Green.

— Um homem de Deus incentivando os vícios, está condenando minha alma, Padre? — sussurrei e ele riu, puxando um dos cigarros e pendurando entre os lábios finos. O isqueiro estava escondido em um compartimento discreto em seu bolso traseiro.

— Só Deus entende os desígnios dEle, filho.

— Como passou pela revista? — questionei e ele deu de ombros.

— Sabe, usar uma batina tem lá suas vantagens.

Padre Stane nem sempre esteve voltado para a vocação eclesiástica. Muito pelo contrário. Também teve uma vida cheia de pequenos deslizes. E essas nossas partes igualitárias costumavam se encontrar e se entender, nestes singelos momentos em que eu era um reflexo do seu passado e ele, um resultado previsível do meu futuro. Sem uma barreira que nos separasse. Louis Phillip Stane havia crescido em Midtown West, Hell's Kitchen, era filho de um imigrante russo e de uma aspirante a cantora, ficou órfão muito cedo e foi acolhido por uma gangue, a Rosa-Serpente. O símbolo tatuado em suas costas era um segredo, que por acaso, descobri. Uma lembrança de um passado que ele jamais poderia ocultar em sua totalidade. Já tinha ferido um homem gravemente. Ou quase isso. Mas nunca soube o que motivou Stane a seguir os desígnios cristãos, a abandonar a gangue, mesmo que uma parte dela ainda permanecesse entranhada em sua persona diante do altar.

Ainda exalava a essência de Caim ao invés de Abel. Do ímpio ao invés do justo. E aquela era uma pergunta proibida. Mesmo que nunca tenha sido verbalizada, eu sabia. Mas ali, ele era um amigo. Um amigo que também era padre. O peso e o alívio entre julgamento e perdão, crime e castigo.

— O caderno é para os seus poemas — disse ele, puxando um pouco o sotaque russo que de vez em quando parecia mais acentuado — Não quero que pare de escrevê-los.

— Não é como se eu tivesse qualquer tipo de inspiração aqui. — Soprei a fumaça para longe mas o cheiro mentolado ardeu quente em minhas narinas. Meu corpo inteiro relaxou com a nicotina absorvida. Senti saudades disso. O suor corria por dentro da camiseta do uniforme, podia sentir o cheiro do sabonete de aveia se desprendendo de minha pele, parecia desgrenhado e sujo.

Stane encostou o dedo contra o hematoma ainda dolorido na lateral de meu rosto.

— O que foi isso?

— Escorreguei na biblioteca, acabei tropeçando em umas caixas amontoadas. — Puxei a pétala solta de um lírio e senti a suavidade entre os dedos. Mamãe me veio à mente.

— Uma caixa com punhos?

Os olhos de Padre Stane passearam ao redor e então suas mãos se apoiaram em meus ombros. Alguns guardas desfilavam de um lado para o outro com rostos amigáveis, sorrisos forçados, quase inofensivos.

— Qual deles?

— O que?

— Qual desses cretinos fez isso? — A pergunta me fez rever o rosto de Tallahassee, suas ameaças se infiltrando silenciosamente em minha carne. Contar para alguém era pedir para ser enviado à Furna ou pior. Desaparecer para sempre. O medo correu em minhas veias, a simples menção me fez querer chorar. Queria contar para ele todo e cada detalhe do pesadelo vívido que foram aqueles dias, mas sabia que seria a palavra de um deles, contra a minha. E a palavra de um interno não valia nada.

— Não foi ninguém, Stane. — afirmei — E você sabe, aqui as suas leis não podem me proteger.

Podia mentir o quanto quisesse, mas jamais poderia enganá-lo. Sabia disso.

— Já estive em um lugar como esse, filho. Sei que não é fácil estar aqui. — Os olhos de Stane eram tão azuis que chegavam a ser incômodos, sua sinceridade parecia sempre tão estampada em seu rosto que tinha medo de ver além do que deveria. Principalmente ali, quando minhas certezas eram colocadas à prova. Como em outras ocasiões, dentro e fora do Lorton, também tive medo de não sair vivo.

— Eu só quero ir embora. — O choro contido em algum lugar do meu corpo parecia emergir a cada palavra verbalizada. — Eu só quero sair daqui. Odeio esse lugar. Essas pessoas.

— E você vai. De cabeça erguida. Eu prometo! — Ele me abraçou tão forte que meus dedos fincaram no tecido de sua batina. Não queria soltá-lo. Quase nunca deixava que me vissem chorar, mas ali, tentei não me preocupar com quem costumava ser. Nenhuma armadura projetada pela dureza de uma vida difícil vencia os dias sombrios no Lorton. Os choros tomavam as celas como uma sinfonia desesperada sempre que as luzes se apagavam. Pedidos de ajuda que não teriam resposta ressoavam nos corredores. Clamores que não seriam ouvidos ecoando entre as paredes. Estava na companhia de garotos mais miseráveis do que eu, mas nunca me senti tão sozinho em toda a vida.

— Você é um bom rapaz, Jungkook. Forte. Fugir nunca foi uma opção para você e sempre te admirei muito por isso.

Suas mãos ampararam meu rosto, seus dedos quentes sustentando minha nuca. Stane tinha um costume muito peculiar de beijar os dois lados da minha face. O mesmo ritual repetido agora: um beijo de cada lado.

— Ainda vou te ver lá fora, vivendo a vida que sempre sonhou, sim? Se recomponha, não deixe que eles te vejam assim. Não dê isso a esses cretinos.

Quis dizer a Stane sobre o que havia pensado, observando o teto da cela, ou o que já havia tentado muitas vezes, na casa de Tio Min, mas era covarde demais para terminar. Às vezes o peso da vida era insuportável, não era tão forte quanto ele pensava.

Forcei um sorriso.

— Mais uma coisa, isso aqui é pra você! — Padre Stane ergueu uma sacola com uma embalagem de presente brilhante.

— O que é isso?

— São livros, mas tem uma surpresa aí dentro.

— Que tipo de surpresa?

— Cartas. — Ele disse, soprando a fumaça do cigarro para longe — De alguém especial.

Yoongi não escreveria cartas pra mim nem fodendo, pensei.

— De quem, exatamente?

— Digamos que é de um remetente secreto. A escola está com um projeto de enviar cartas e livros para os internos do Lorton e do Willow's Creek, tomei a liberdade de separar algumas para você.

— Ah, ótimo! Vou trocar cartas com um mimadinho de merda sobre os problemas que ele acha que têm. — Segurei a sacola entre os dedos, verificando o que havia dentro.

— Confie em mim.

— E se eu não gostar das cartas? Preciso responder mesmo assim? — Padre Stane riu, jogando a ponta do cigarro nos ladrilhos e esmagando com a ponta do sapato social lustroso.

— Não, Jungkook. Não precisa! Mas quero que ao menos leia.

Nos despedimos assim que a sineta, indicando o fim do horário de visitas, soou.

Enfiei os cigarros e o isqueiro dentro das meias e do sapato de lona antes de voltar ao prédio.

No jantar, naquela noite, um caldo esquisito de frango e arroz foi serviço, estava faminto e devorei tudo. Até mesmo os pãezinhos duros que acompanhavam a refeição e o achocolatado quente que me deixava enjoado.

A contagem foi feita exatamente às 20h30, quando um dos guardas, Egan, apareceu para auxiliar Tallahassee. Alguns garotos ficaram nervosos quando o homem surgiu no corredor, Egan deveria ser o rosto da maioria dos pesadelos daqueles meninos. Um dos rapazes havia comentado no banho, em uma das cabines, que Egan " gostava de comer garotinhos".

Senti vontade de socá-lo forte quando ele tocou o rosto de Joe e o garoto estremeceu. Parecia proposital. O pânico estava visível em suas feições sardentas.

De um a um fomos liberados para entrar em nossas celas, que foram trancadas do lado de fora com fechaduras embutidas.

As luzes se apagaram às 21h00 após as batidas violentas dos cassetetes contra o metal pesado da grade. Ouvi passos e a voz de Joe outra vez, seu choro, ao longe. Gemidos de dor.

Me encolhi dentro dos lençóis e tirei a camiseta, era uma dessas noites calorentas, e por alguns minutos, meu corpo pareceu flutuar no escuro. Fechei os olhos e apaguei.

Senti uma infinidade de rostos desconhecidos tomando formas horrendas na escuridão, me observando de perto. Suas respirações sugando qualquer tentativa de ar que lutava para inspirar conforme meu peito se contraia. Deslizei para fora da cama, me arrastando até a janela na tentativa de sentir um pouco de ar puro. As mãos das criaturas diabólicas que surgiam em minha mente me puxavam pelos braços, pernas e se projetavam no teto. Alcancei o sapato largado debaixo da cama e tateei pelo isqueiro que Padre Stane havia deixado mais cedo, a claridade emergiu do puro fogo e como um sonho ruim, as criaturas desapareceram.

Meu rosto assustado estava refletido contra o vidro, o terror visível murchando as feições. Há tempos não me sentia assim, inócuo, indefeso. Fechei os olhos e respirei fundo. Ao abrir, outro par surgiu no reflexo. Era outro pesadelo.

📼

Não consegui pregar os olhos. A luminária de luz fraca acendeu com alguma dificuldade e puxei a cadeira da escrivaninha apoiando os pés descalços na cama. O livro que Joonie havia me emprestado ainda estava ali, mas as garotas nuas pareciam assustadoras no jogo de luz e sombras, uma espécie de polaridade de Succubus que já não era mais tão excitante e sim, tenebrosa. Joguei o livro para longe e busquei um cigarro escondido entre as meias. Acendi e soprei a fumaça pelas narinas. O cheiro mentolado ardeu nas vias respiratórias. Mas um outro aroma despertou uma sensação igualmente esquisita.

Os envelopes de barras azuis e vermelhas enfiados na sacola estavam perfumados. Puxei um deles para perto das narinas. Era um perfume feminino suave. Doce. Quase familiar. Cheiro de menina.

Comece por esta carta.

A letra cursiva indicava, por baixo dos adesivos de borboletas decorando o papel, a ordem de leitura. Puxei a aba, retirando a carta e o cheiro se alastrou pelo quarto.

💌

15 de Setembro de 1995,

Roseville.

Caro amigo anônimo,

Como tem passado?

Sei que as coisas não devem estar sendo fáceis por aí, bom, eu não sei direito como começar esta carta, é a primeira vez que escrevo para alguém que ainda não conheço, mas desejo que estas palavras te levem um pouco de conforto nos próximos dias.

Enquanto escolhia as cores dos papéis de carta, fiquei pensando sobre como a vida pode ser engraçada às vezes. Eu sou uma estranha para você também, mas quando você terminar de ler esta carta, já não serei mais. Se pararmos para pensar, é divertido perceber que ainda não sabemos os nomes, rostos ou as particularidades de todas as pessoas que vamos conhecer ou até mesmo amar nesta vida. Tudo é uma grande e maluca surpresa.

Então prazer em conhecê-lo futuro amigo.

Antes de começar a escrever fiquei imaginando como você seria. Sei que você é um garoto porque a Irmã Rochester disse que as cartas seriam enviadas a uma instituição para rapazes, mas não consegui dar características a você. Talvez uma só, por alguma razão, quando fecho os olhos, imagino um cabelo muito bonito. Eu acertei?

Me conte, como você é?

É madrugada agora e, enquanto te escrevo isto, os comerciais das coletâneas de música romântica estão tocando. Papai não me deixa assistir Saturday Night Live, ele diz que é "muito adulto", então sempre deixo nos canais de vendas e fico ouvindo as músicas enquanto me aconchego no carpete da sala, como estou fazendo agora enquanto a casa inteira está em silêncio.

Está quente por aí? Estamos no mesmo estado, então acredito que o clima esteja parecido!

Ouvi dizer que na Califórnia sempre faz calor e quase nunca chove. Mas o Verão já se despediu por aqui, então os dias cinzentos parecem mais comuns. Ontem eu e o meu melhor amigo passamos a tarde vendo filmes antigos no porão da casa dele, estava chovendo muito forte e foi legal assistir Os Goonies. Você já viu? Claro que deve ter visto! Todo mundo já viu Os Goonies pelo menos uma vez na vida. Toda sexta à noite a Fox reprisa.

Bom, eu moro em uma pequena cidade litorânea chamada Roseville, tenho quinze anos e sou uma caloura do ensino médio. E pra falar a verdade, não tem sido nada fácil. Me disseram que seria a época mais bonita da minha vida. Rá! Que piada.

Os garotos mais velhos são enormes e assustadores e as meninas são lindas e um pouco malvadas. Às vezes me pergunto se um dia serei bonita como elas. Por enquanto sou só uma esquisita com nariz de bruxa e aparelho ortodôntico (em três meses me livrarei para sempre). Meu melhor amigo diz que tudo isso é uma grande bobagem, mas ainda não me acostumei com os vestiários e sinto vergonha de usar o uniforme de ginástica. Me sinto feia e sem graça perto delas. Por isso espero que a maioria vá embora antes de me trocar, sei que elas ficam observando e as risadinhas vem logo em seguida. Nada disso interessa, não é? Mas, bem, a Irmã Rochester disse que deveríamos abrir nossos corações para os nossos amigos, então estou me esforçando.

Você gosta de ir a escola? O que vocês estão aprendendo aí? Você gosta de literatura? É a minha matéria favorita! Estou lendo O Grande Gatsby para a aula da Srta. Hatter.

Eu deveria contar sobre as coisas grandiosas que já fiz, não é? Mas nunca fiz nada de grandioso na vida. Nadinha mesmo. Além de ter decorado o nome de 3.100 espécies de borboletas nos últimos cinco anos, algo que me orgulho muito, nunca fiz nada que possa me valer de trunfo. Sempre escuto por aí que garotas deveriam manter o seu trunfo. Não faço ideia do que seja isto. E se eu não tiver um, será que tem problema? Me diga, amigo, o que seria "ter um trunfo" para você?

Mas meu grande sonho, na verdade, é ser uma atriz, uma grande atriz de Hollywood. Como a Rita Hayworth, ou a Audrey Hepburn ou a Marilyn Monroe, sabia que a Marilyn na verdade se chamava Norma Jean? Ela também era uma garota de uma cidadezinha esquecida nos confins do país e conquistou o mundo todo!

Um dia também terei um nome bonito de atriz e todos esquecerão do antigo e sem graça, e ninguém nunca mais vai rir de mim! Talvez isto seja um trunfo ou talvez ninguém se importe se eu não chegar a ter um só para mim. Eu também queria viver um grande amor como o do papai e da mamãe. Mas acho que talvez tenha algo de errado comigo, porque nunca gostei de alguém assim. Nunca sequer beijei um garoto na vida! E eles também não me percebem, o que por um lado, me deixa aliviada. Ser rejeitada é pior do que não ser percebida. Este é o meu maior segredo. Talvez você possa me contar um também, o seu segredo pelo meu, que tal?

Uma vez, a vovó me falou que nossas almas estão atadas a de uma outra pessoa por uma linha vermelha (presa ao dedo mínimo) desde que nascemos e não importa quão longe estamos, nem quem somos, nem quem seremos, muito menos a morte: essa linha nunca se rompe.

Talvez na outra ponta da minha linha, alguém tenha esquecido de amarrar o mindinho. E assim como o trunfo, eu esteja destinada a escolher o meu futuro sozinha.

Por enquanto, estou me esforçando para fazer parte do clube de teatro da escola. O professor é exigente e todos são muito bons. Eles apresentaram Macbeth na volta às aulas.

Eu chorei durante o Ato V. Foi emocionante!

E voltando às borboletas. Eu tenho um borboletário super legal, pedi ao papai como presente de aniversário e ele fica perto do quintal, então passo horas observando o que elas fazem. Juntei várias lagartas na semana passada e tenho observado-as conforme o tempo passa, uma delas ficou quietinha ontem e acho que em breve ela vai tecer o seu casulo. Consigo ver os fios de seda. Estou animada para saber qual espécie é. Papai acha que é uma Red Postman, por conta da estação, mas estou na dúvida entre ela e a Vanessa Vulcania.

Um dia, talvez, eu possa te mostrar as borboletas que eu tenho. Você gosta de insetos? A maioria das pessoas odeia, não é? É engraçado alguém ter repulsa a uma lagarta e amar uma borboleta. Uma jamais poderia existir sem a outra. Existe algo poético sobre essas transformações e sempre penso sobre isso. O Universo tem uma métrica perfeita para o poema que é a vida. A essência destas pequenas coisas não podem ser substituídas, isso me faz pensar que cada um de nós, no fim das contas, é único para o Universo.

Ah, já ia me esquecendo: os livros!

Estou te enviando três livros. São meus favoritos.

O primeiro, conta a história de um mago rebelde que vivia metendo medo nas garotas de um vilarejo, um boato sinistro dizia que este mago devorava o coração das garotas bonitas e elas nunca, nunca mais eram as mesmas. Até que um dia, uma garota enfeitiçada, presa no corpo de uma senhora de 90 anos, muda para sempre a vida deste mago.

Ficou curioso?

Não vale espiar as outras cartas antes de ler o livro, ok? Faça uma promessa, uma promessa de escoteiro com a mão direita erguida sob peito. Prometa, prometa!

Estou confiando em você, amigo anônimo!

Espero que goste da leitura, e aguardo ansiosamente sua resposta.

— Com carinho, da sua amiga secreta, M. Monroe.

💌

Monroe.

Por alguma razão, quando finalizei a carta, algo em mim se acendeu. Naquele momento, estive mais próximo do coração daquela garota desconhecida do que qualquer pessoa no mundo. A sensação misteriosa e estranha correu o corpo inteiro.

Meu cérebro ficou vasculhando incansavelmente pela criatura que teria escrito aquela carta. Conhecia as garotas da escola, a maioria delas — e também seus quartos, suas camas e tudo por debaixo do uniforme escolar de saia formal —, um ou dois nomes me vieram à mente, mas não conseguia encontrar nenhuma similaridade que se encaixasse naquelas características.

Puxei o pacote de livros para perto, a embalagem azul platinada era bonita e estava amarrada com um laço mal feito após a revista. Apaguei o cigarro contra a base da cadeira, soltando a guimba debaixo do colchão. Puxei o primeiro livro e a capa com ilustração infantil exibia o título O Castelo Animado. Passei os olhos pela sinopse capturando alguns nomes em destaque. Howl. Calcifer. Markl. Sophie.

Na base do livro, na folha de rosto, uma tentativa de ocultar o nome do proprietário. Abaixo de um risco firme de tinta azul, encoberto pelo cor-de-rosa sublinhado, a origem refletida diante da luz externa que penetrava pelo vidro: Pertence a Sofia Chalamet.

Vasculhei em uma memória antiga até encontrá-la.

Sim, ainda me lembrava dela.

Remontei seus traços de menina em minha mente: um cabelo volumoso, muito louro, sempre preso. Um par de olhos grandes demais para um rosto miúdo. O nariz longo, pontudo e fino e dentes levemente apinhados.

Era muito tímida e vivia pelos cantos da paróquia, era o mascote de tio Min, em quase todo ensaio — da escola e da igreja — estava ali, absorvendo cada detalhe. As bochechas acneicas quase sempre rosadas de vergonha quando era percebida. Ainda recordava uma das vezes que a encontrei na igreja, estava ouvindo música dentro do confessionário, fugindo de Stane, quando a vi chegar.

Usava enormes asas de anjo feitas de papel e tinha um laço cor-de-rosa no cabelo. Parecia ter despencado de algum altar. Saltado para fora dos vitrais. Era Natal e ela seria o Anjo Gabriel na encenação tosca que Stane havia preparado. Lembro de pintar um ou dois cenários com manjedouras naquele Inverno.

Suas mãos tremiam enquanto ela repassava o texto. Duas linhas repetidas em voz alta. "Alegra-te, cheia de graça. O senhor está contigo."

O corpo magricela enfiado em uma roupa de algodão sem forma parecia quase azulado contra a luz e os pés descalços no piso frio faziam suas pernas tremerem como as de um animal pequeno.

Me recordo de pensar que se anjos existissem, suas versões infantis provavelmente teriam a mesma aparência frágil daquela criatura amedrontada.

— Tem alguém aí? — ela perguntou quando me movi dentro do velho confessionário, provocando um ruído oco. Encostei os olhos nas frestas quando ela aproximou os seus, os cílios longos dela tocando as treliças da madeira. O susto a fez correr de volta ao pátio da igreja, desaparecer entre as cortinas que selavam falsamente as portas. Me pergunto se Sofi pensou que eu era um demônio fugitivo de algum confessor descuidado, preso assim como os pecados que ficavam encarcerados dentro daquela caixa de madeira, intransponíveis, indissociáveis. Pronto para devorá-la.

Me acomodei na cama e reli a carta mais algumas vezes, a sensação de que alguma dica da remetente tinha me passado despercebido durante a primeira e a segunda leitura me fez verificar cada mínimo detalhe, até ser embalado em um sono profundo. 

Em sonho, estava deitado sobre o jardim de Stane, com as mãos fincadas na grama úmida, plantadas na terra. Via os cabelos longos de uma criatura nínfica, angelical, flutuando ao meu redor como se estivéssemos submersos em águas limpas, numa Roseville subaquática e perdida. 

"Não quero que vá embora", o sussurro dela pareceu sair de dentro de minha cabeça, repetido em uníssono inconscientemente. "Não me deixe, por favor."

Meus pulmões foram preenchidos pela água e os meus olhos blindados pela luminosidade que pareceu me engolir. Acordei com as batidas violentas na grade da cela, o papel colorido descansando em meu peito.

Lá fora, o dia já havia amanhecido. 

❙❙

N/A: Olá, quanto tempo!

Gostaria de agradecer a quem tirou um tempinho para ler, votar e comentar no capítulo. Obrigada, de coração. Peço desculpas por qualquer possível errinho.

A tag da história é #GarotoSmiths.

Passando apenas para falar um pouco sobre a construção do Instituto Bartholomew Lorton. 

Há meses iniciei as pesquisas sobre os reformatórios nos Estados Unidos e o sistema de encarceramento juvenil norte-americano, onde Badlands é ambientada. Foram meses e meses de construção cuidadosa, pesquisas seguras em artigos científicos, documentários, matérias sobre o funcionamento dessas instituições e também sobre os segredos que a maioria delas esconde.

O Instituto Bartholomew Lorton para Jovens Infratores, em Badlands, é um lugar fictício, porém inspirado em reformatórios reais que funcionaram nos Estados Unidos entre os anos de 1900 e 2011. E queria compartilhar com vocês um pouco sobre a minha pesquisa.

A inspiração para a criação do Reformatório Lorton foi a Escola Arthur G. Dozier para Rapazes e outros reformatórios públicos que se utilizam de punições físicas e psicológicas na tentativa de "ressocialização" dos internos, que se davam muitas vezes por pequenos delitos.

Como faltar às aulas, brigas de rua e o que eles chamavam de "incorrigibilidade", de meninos e rapazes entre 5 a 18 anos. Alguns eram enviados ao reformatório por falta de vagas em orfanatos. E todas estas instituições eram financiadas pelo governo.

Nestes lugares, os alunos eram submetidos a um sistema de créditos e deméritos, muito comum em instituições de caráter correcional. Os créditos eram dados por serviços prestados a instituição, empregos que reduziam a pena como: auxiliar na lavanderia, cozinha e na organização do ambiente. 

Já os deméritos, que segundo as regras dessas instituições, só deveriam ser aplicados em casos de descumprimentos de horários e da boa convivência, eram executados como castigos físicos e psicológicos na maioria das vezes (surras, jejuns obrigatórios e outras torturas).

Em 2013, após uma análise de solo por uma empresa ambiental, 55 corpos foram descobertos em possíveis "covas" nos fundos de uma destas instituições, dentre esse número, 27 corpos apresentavam mortes não-naturais. Muitos nunca conseguiram sequer ser identificados.

A função destas instituições era reabilitar estes jovens e transformá-los nos chamados "cidadãos de bem", produtivos e úteis para a comunidade. Mas a maioria dos internos que sobreviveram às torturas impostas nestes lugares, jamais superaram os traumas. 

No Twitter  (@/etthereal_), disponibilizei os links das matérias lidas, das fontes de pesquisa e dos livros inspirados em fatos reais lidos durante a construção do lugar. 

Espero que tenham gostado do capítulo, a gente se encontra em breve.

Com muito amor, Sô.

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