Capítulo Vinte e Um (Emoções encapsuladas dissolvem na ponta de sua língua)
My heartbeat's racin' like a strange ballet
Did the world stop spinnin' today?
— Spinnin, Madison Beer
🎭
Roseville, 2008.
— Você ficou desconfortável com a minha pergunta, não é? — Taehyung questionou quando voltamos ao seu carro.
Sem as sedutoras nuvens de cigarro rodeando o rosto de estranhos, o merlot caro manchando lábios e sorrisos despudorados, evidenciando as risadas frouxas que soavam familiares no fim da noite, sem a coragem que precisava vir de fora para dentro, inserida no corpo e na corrente sanguínea pela minha via-crucis, atravessando o caminho de meu coração para colocá-lo em um estado de pseudomorte, para esquecer do meu mundo e escolher amar um estranho, eu era só uma mulher tímida diante das próprias emoções, mas ao contrário disso, estar perto de Taehyung não me exigia façanhas misteriosas de encantamento.
A pergunta dançou em minha mente feito os comandos de um hipnotista.
É claro que havia pensado nele. Pensava nele com uma constância assustadora. E queria revelar as minhas obsessões em voz alta, dizer que seu nome surgia mais vezes em meu histórico de busca na internet do que era considerado saudável, que sabia sobre sua vida, carreira e legado muito mais do que ele era capaz de imaginar em seu coração ingênuo.
Limpei a garganta e planejei cada palavra, quis abandonar o amor a mim mesma e dizer que sim, mas não do modo como ele provavelmente imaginava que esse desconforto havia me atingido. Não havia pudor e sim tormento, por ainda sentir a faísca do que aquela maldita carta revelou uma vez, e que naquele momento, naquele singelo momento em que me sentia vulnerável o suficiente para pensar nele como uma possibilidade egoísta de amenidade, ouvir aquela pergunta foi um prazer culposo.
— Não.... — sorri. — Só foi uma pergunta inesperada.
— Não quero que pense que fiquei esses anos todos simplesmente... — Sua frase perdeu o efeito enquanto seus olhos estavam fixos nas ruas da cidade minúscula. Um casal surgiu por trás de uma árvore, aos beijos, o rapaz olhou na direção de Taehyung e acenou para ele, que acenou de volta.
— Simplesmente... o quê?
— Que fiquei guardando sentimentos ou qualquer coisa do tipo. — Dei um sorriso amigável.
A verdade é que gostei de saber que ainda existia uma possibilidade, que eu ainda existia, enroscada em sua memória, afligindo sua carne ou ao redor do coração. Continuar existindo em algum lugar que me tornava especial.
Eu era desejada constantemente, mas de um jeito superficial e inalcançável, como uma espécie de criatura rara cercada por uma redoma de vidro que reveste algo precioso demais para ser tocado. Existia uma devoção falsa, tão superficial quanto colecionar moedas. E Bird era uma espécime rara.
Queriam Juliet Bird. Sonhavam com Juliet Bird. Com a ideia de quem ela poderia ser em suas projeções mentais, do que era capaz de oferecê-los na cama, mas nunca de quem era, de fato, em pele, sangue e ossos. Dormir com Bird era o sonho nacional, acordar comigo era o fim da fantasia.
— Eu não pensei nisso! — toquei seu cotovelo até ter sua atenção de novo — Mas foi bom saber que ainda se preocupa com o que penso sobre você...
Os sentimentos estrangularam-se dentro de mim, amargos, confusos e furiosos, havia um desejo de me punir de alguma forma, de abrir mão do meu valor para justificar o meu ódio que não podia ser vinculado a mais ninguém.
James, Roseville, Yoongi, à própria morte.
Cada uma daquelas ruas estava associada a uma memória da qual eu tentava me desvincular, corredores de tortura e caminhos de trevas que pareciam mais indecifraveis e assustadores a cada minuto, como encarar a escuridão. Com o passar das horas, poderia considerar o efeito açucarado do refrigerante no corpo e meu estado glicêmico alterado, a erva barata com um sabor rançoso e áspero nas amígdalas. Eu era um subproduto falho de uma vontade e de uma ausência que pulsava em conjunto, direcionadas para a mesma frequência.
Quem era o culpado pelo desastre que arruinava minha cabeça e que enroscava minhas entranhas em um nó apertado ao ponto de me sufocar se não eu mesma?
Há tempos estava segurando as minhas próprias cordas de aprisionamento.
Aos vinte e oito eu sentia que havia me tornado outra, minhas inseguranças gritantes, os meus medos, meus complexos, se tornaram ruínas junto a garota que ficou para trás. A aparência já não era mais um incômodo, qualquer questão duvidosa que envolvesse a porra do meu talento e vocação para a atuação era fruto de rumores que não me atingiam tão forte, não a ponto de me derrubar outra vez, Hollywood estava prestes a me colocar a pontapés para fora da indústria porque o meu prazo estava para se esgotar. Vinte e nove era o meu limite de juventude, talento e beleza. Tudo que poderia ser extraído já havia sido retirado de meu terreno bruto.
Trinta era um precipício, eles me disseram, uma condenação, mas minha vida pendia em um precipício desde que me lembro. Era assustador não lembrar de como era a minha vida antes desse caos instaurado, e me assustava ao pensar que dar ordem a essa bagunça dentro de mim, significava perder estruturas rachadas aos quais me apeguei como parte quem eu sempre fui.
Conforme a idade avançava, minhas inseguranças infantis desapareciam dando espaço para terrores maiores e mais existenciais, tinha tudo, inclusive um medo implacável de estar completa. Saciada daquela fome de viver que nos tira o sono e motiva os propósitos para continuar existindo.
Me sentia jovem demais para ter vivido a completude que a vida tem a oferecer e ao mesmo tempo me questionava sozinha: isso é tudo que o destino tem a me oferecer?
Desde que me lembro, tudo que desejei foi esta vida; a fama, as telas, o nome brilhante.
Pensei que era impossível que alguém obtivesse tudo e ainda pudesse ser tão infeliz. E esse é o grande mistério incompreendido e irresoluto para mim, tenho tudo que sempre quis e muito além do que preciso, mas, agora, pereço e definho por tudo aquilo que um dia tive e não posso ter nunca mais.
Saber que ainda ocupava um lugar especial para alguém que era importante para mim parecia um milagre.
Ficamos em silêncio por um tempo desconfortavelmente longo.
— Para onde vamos? — perguntei, rompendo a barreira da timidez de Taehyung — O caminho para minha casa é por ali...
As luzes dos postes penetravam pelos vidros do carro, iluminando parcialmente suas mãos movimentando o câmbio, tocando o volante com uma delicadeza quase artística que os malditos dedos bonitos de Taehyung sempre tiveram, em contrapartida, jogando um holofote para as minhas mãos nervosas, descansando sobre o meu colo, assim como meus pés inquietos e meu peito acelerado pareciam recarregados por uma cinética repetitiva e incômoda.
— Quero te mostrar um lugar legal... — Ele ajustou os ombros, movimentando o pescoço, antes de sorrir outra vez. Parecia tenso.
A aliança bonita reluziu como um aviso direcionado, me sentia observada e cada pensamento parecia medido e analisado, gritando Talvez porque eles estivessem começando a preencher o espaço, o ar que penetrava os pulmões de Taehyung e suas ideias.
— Existe algum lugar que funcione em Roseville por essas horas?!
— Não é necessariamente em Roseville, mas se quiser ir pra casa, eu te levo! — O céu profundamente escuro complementava o cenário dramático de uma cidade meio fantasmagórica à noite. Isso não havia mudado. Os letreiros modernos e a tentativa de parecer mais aprazível, acompanhando a modernidade, o avanço tecnológico, não afetava o comportamento dos moradores de Roseville e seus costumes repassados e herdados através do tempo. Tudo ainda tinha o aspecto pacato e de calmaria assustadora de uma cidadezinha morta.
— É o último lugar para onde quero ir agora... — disse, antes de olhá-lo nos olhos outra vez.
Tinha prática o suficiente para forçar sorrisos por horas, para parecer amável, mas podia sentir Taehyung percebendo a minha mentira. Questionando mentalmente os porquês.
Ele cruzou a rodovia, em direção ao lado oposto de Roseville. Há onze anos, toda aquela parte era somente uma vastidão fúnebre de cruzes na estrada. Logo após o trecho, o cemitério de carros que abrigava as carcaças dos automóveis destruídos era sinalizada na saída da cidade. Não queria procurar o que, imaginava por força maior que estaria ali, mas não tinha certeza.
Desviei os olhos para o outro lado.
Os faróis ocasionais de outros carros beijavam as luzes do carro esportivo de Taehyung em encontros dispersos. Parecia distraído com outras situações dentro de sua própria cabeça.
Sabia que ele jamais entenderia o sentimento, ou saberia me ler totalmente, e pensava que nenhum homem, mesmo em um grau profundo de sensibilidade e empatia, entenderia o quanto queria me esvair de mim mesma em momentos como aquele. Os pensamentos, nessas ocasiões, me levavam a flertar com as piores decisões, as mais drásticas. O mundo inteiro sendo reduzido àquele momento em que precisava de uma substância amena para me dissociar de mim mesma. E ali, o sentimento que buscava era ele.
Tudo teria consequência, elas existiriam sempre; de corpo presente ou mentalmente ausente.
Ficamos em silêncio, mas podia sentir a empolgação de Taehyung atravessando as roupas quando nos aproximamos de um vilarejo distante da entrada da cidade.
Passando os outdoors, as plantações de algodão ficando para trás e a antiga placa desbotada de "volte sempre", estávamos no território proibido de Carnival Kane, a leste de Roseville.
Mantive os olhos na estrada até a aproximação máxima de Taehyung de um prédio antigo parcialmente iluminado por um letreiro enferrujado, zumbindo em azul elétrico.
— Que lugar é esse? — Estiquei os olhos para o alto, observando ao redor, os carros estacionados e as janelas que permitiam ver parcialmente quem estava lá dentro.
— É para onde venho quando quero me divertir, — ele desafivelou o cinto de segurança, destravando as portas — achei que seria bom para você relaxar um pouco.
O desespero subiu até a ponta da minha língua.
— Taehyung, eu não posso! Eu sou uma pessoa pública, eu não posso ser vista... — Meus olhos passearam pela parte externa do lugar — Eu não posso ser vista aqui com você.
Ele suspirou.
— Confie em mim!
Agarrada ao cinto de segurança, permaneci em silêncio, observando a projeção de azul ao redor de sua silhueta superdimensionada.
— Vem comigo! — Ele esticou a mão.
A tentativa de manter o rosto sereno foi uma batalha perdida para a expressão de desespero em meu rosto, sem qualquer tipo de inflexão e simpatia.
— Vem... — ele sorriu. — Você ainda pode confiar em mim, sabia?
Ele poderia ter captado minha hesitação de primeira, e talvez tivesse notado a princípio, mas não parecia ofendido pelo meu medo óbvio de enveredar pela velha vida como se ainda pudesse ser a versão crescida daquela garota. Meus movimentos em câmera lenta, se aproximando do desconhecido, enquanto ele esperava pacientemente do outro lado.
Taehyung entrelaçou nossos dedos antes de caminhar até a porta do bar chamado Toni'z.
Ao primeiro olhar, parecia somente um bar de jazz decadente nos arredores da estrada.
Alguns rostos desconhecidos sorriram para ele, que era facilmente amado em qualquer lugar, sob qualquer condição.
— O doutor Kim está de volta! Olhe só para você, meu garoto. — Um homem de estatura mediana, segurando um copo de whisky e usando um chapéu fedora cumprimentou Taehyung do outro lado do balcão. — A que devo a honra? — Kim sorriu.
— Trouxe minha amiga para conhecer o lugar, poderia nos trazer alguma coisa para beber, Tony?
— Seja bem-vinda ao Tony'z, espero que goste deste lugar como esse doutor aqui gosta, se não fosse por ele, não sei o que seria do bar...
Balancei a cabeça em concordância, desviando o olhar para Taehyung.
— Mas então, o que vai querer hoje? — Escondendo meu rosto parcialmente com a ponta dos dedos, evitando qualquer contato direto com as pessoas nas mesas ao lado sob a luz azulada do lugar.
— Só um refrigerante para mim e para ela... — A mão de Taehyung tocou meu ombro, trazendo-me para perto.
— Um dry-martini, por favor. — eu disse, em voz baixa. — Não, dois.
— Dois dry-martinis, Tony. Obrigado. — Taehyung repetiu.
Caminhamos até a mesa vazia no canto do bar, ao lado da jukebox iluminada.
— É tranquilo aqui, as pessoas que frequentam o bar moram nos arredores de Carnival Kane, não devem saber que você é uma super estrela da TV. — ele riu, tocando as pontas do meu cabelo.
— Há tempos não existe um lugar tranquilo para mim. — Cruzei os braços diante da mesa de madeira — Nem mesmo a minha própria cabeça.
Taehyung balançou a cabeça antes de movimentar a colher de chá enfiada em um copo ao lado de um porta-condimentos com cubos de açúcar esfarelados.
— Você me parece melhor... — O comentário feito no meio de uma desatenção fez com que seus olhos se voltassem para mim como um pedido de desculpas.
Então ele lia as notícias sobre mim, sabia a respeito dos desastres da minha vida e sabia, muito provavelmente, sobre o havia acontecido no ano passado.
— Melhor?
— Sei que foi um ano difícil para você.
— Rá. Ótimo. Não quero sua piedade, Doutor. Foi para isso que me trouxe aqui? Para tentar me analisar?
Sua mão tocou a minha.
— Não, eu sou seu amigo. Você ainda se lembra disso? Queria que eu simplesmente ignorasse o fato de que você não estava bem?
— Você não sabe porra nenhuma sobre mim, Taehyung.
— Eu sei que você é a minha melhor amiga! E eu fiz uma promessa, não deixaria nada de ruim te acontecer... — Sua voz atravessou o jazz suave tocando nos fundos do bar, silenciando meu coração por um breve segundo, encarando o dano de ter uma pessoa real, com sentimentos verdadeiros, vendo através de mim.
Seus olhos continuaram firmes quando um Tony risonho se aproximou com nossas bebidas. A Cherry-Cola viciante de Taehyung e os meus drinques com sabor de entorpecimento de maledicências. Bebi o primeiro drinque em um único gole, amparando o líquido escorrendo pelo queixo com a mão, antes de partir para o segundo com a mão estendida para pedir os próximos.
— Não sou mais aquela garota indefesa que você conheceu.
As sobrancelhas de Taehyung franziram.
— Não é mesmo, mas não significava que não precisasse de ajuda.
O sabor estranho na minha boca parecia uma constante lembrança dos efeitos paliativos dos remédios, aos poucos, quando se dissipavam e os segundos de silêncio dentro de minha cabeça dava lugar ao som violento dos meus próprios pensamentos, todos gritando ao mesmo tempo, as emoções adormecidas dançando freneticamente dentro de meu peito e depois há um vazio insuportável, como se todos naquela festa, — da qual não foram convidados — estivessem indo embora depois da bagunça feita, uma casa vazia de paredes ocas, o piso rangendo com as pegadas marcadas na poeira, uma cidade fantasma varrida por um furacão.
A calma me atingia em doses homeopáticas, sentia a tranquilidade alcoólica percorrendo o corpo e a mente em uma onda prazerosa de inércia, desligando os botões vermelhos piscando no sistema central de minhas funcionalidades.
— Por favor, mais três dry-martinis para a mesa oito. — Falei em alto e bom tom para Tony do outro lado do balcão.
Uma senhora se aproximou de canto, sorrindo amigavelmente para Taehyung que estendeu a mão para ela.
— Garoto Kim, poderia dançar comigo? Você se incomodaria, querida? — Seus olhos se voltaram para mim.
— Não, claro que não!
Taehyung sorriu para ela, antes de rodopiá-la lentamente ao som do instrumental de Fly Me To The Moon de Frank Sinatra.
Assisti Taehyung dançar com as senhoras da cidade que ainda o chamavam pelo apelido de infância, havia perdido seus trejeitos de menino há pelo menos algumas décadas, não havia sequer uma mera lembrança do rapaz. As mangas de sua camisa de botões erguidas até o cotovelo, os cabelos puxados suavemente para trás, tudo era atraente ao seu modo, sedutor em sua linguagem de beleza, em seus maneirismos de bom rapaz, do tipo que estava acostumada a me manter distante; uma aproximação sutil seria desastrosa, explosiva.
Eu iria arruiná-lo.
James estava certo quando insinuava que eu acabava incendiando tudo por onde passava, com meus rastros de fogo, de um incêndio mal controlado, havia sido estúpida com ele sem razão aparente, mas há muito tempo era incapaz de controlar o meu coração, baixar a guarda sob qualquer perspectiva de confiança.
Não conseguia confiar em mais nada. Nem em mim mesma.
Os martinis foram sorvidos com a mesma rapidez que chegaram, as azeitonas pendendo na ponta da língua com o resquício do sabor aditivo enquanto brincava jogando o grumo de um lado para o outro.
Taehyung estava certo, não havia nada para me preocupar, ninguém ali sabia quem eu era. Ou parecia se importar o suficiente para fazer disso uma nota vagabunda em um site de notícias.
Juliet Bird não era um rosto e um nome popular entre os moradores de um vilarejo em Carnival Kane. Mas era difícil desassociar Hollywood e os seus excessos de olhos e ouvidos em todos os lugares para a calmaria de um ambiente onde o mundo ao qual pertenço não importava.
Ri sozinha ao pensar na possibilidade de abandonar Brentwood e me mudar para cá, viver uma vida mais simples e irreconhecível, abrir mão dos infernos iluminados e caminhar até os limbos de tranquilidade de Carnival Kane e ser esquecida por lá.
Morrer no esquecimento como um túnel sob uma ponte.
— Ei, dança essa comigo? — Taehyung estendeu a mão, antes de escolher Another Day In Paradise do Phil Collins na Jukebox.
— Você ainda se lembra disso? — Havíamos ensaiado aquela música durante meses para aprendermos a dançar. Seulgi sentava no topo das escadas do porão para rir de nós dois, copiando os passos de uma fita de aulas de dança duas vezes por semana. Aprendemos tudo perfeitamente.
— Eu não esqueceria nunca... — Ele caminhou até a outra ponta do balcão, movimentando os ombros.
A dança lenta começava em um encontro dramático no meio da sala, como nos filmes românticos dos anos 80. Os movimentos lentos, letárgicos, cheios de giros e olhos e olhos.
Ele me alcançou pela cintura, me erguendo para o alto com uma facilidade indiscutível que outrora sequer existia, mantive as minhas mãos amparadas em seus ombros, enquanto Phil Collins cantarolava em nossos sonhos.
You can tell from the lines on her face, you can see that she's been there, probably been moved on from every place, 'cause she didn't fit in there...
Nossos rostos cada vez mais próximos, seu cheiro de colônia, sua segurança em me ter em seus braços. Meu corpo semiadormecido reconheceu o dele, tão inédito quanto uma folha em branco, seu hálito doce tocou meu rosto feito éter. Estava mergulhada nele de novo. A noite seguia atiçando uma sensação perigosa e confusa.
Quando as palmas atravessaram a tensão criada entre nós, parados no meio do bar, próximos o suficiente para confirmar o pecado que nossas bocas eram incapazes de verbalizar em voz alta, fui arrastada até a realidade outra vez.
— É melhor irmos para casa agora!
༄
No caminho de volta, o silêncio nos engoliu e dilacerou como uma faca afiada.
— Você deveria passar a noite lá em casa. — Taehyung sugeriu, quebrando o clima tenso e constrangedor entre nós. — Está muito tarde!
— Não quero incomodar o Sr. Kim, melhor não! Além disso, chegar assim, na madrugada, não parece muito adequado.
— Ah, não, não. Meus pais estão em um cruzeiro há algumas semanas, estou cuidando da casa também...
— Os cruzeiros de aniversário continuam acontecendo?
— Religiosamente. Como uma regra absoluta. — Ele ri. — Mamãe fica enjoada a maior parte dos dias, mas ainda assim, ela sempre planeja as viagens.
Endireitou os ombros.
— Você pode dormir lá!
— Tudo bem.
Cruzamos a rua da casa de Taehyung e me dei conta de como tudo parecia um pouco menor do que me lembrava. Antigamente, as casas daquele lado da cidade pareciam imensas, com jardins infinitamente mais bonitos e floridos, olhando agora, tudo parecia reduzido e sem cor. Como uma versão piorada do bairro.
A casa dos Kim permanece quase idêntica ao que me lembrava, apenas a cor das paredes e a porta frontal haviam sido trocadas. Os degraus de acesso ainda eram os mesmos e quando Taehyung estacionou o carro, me lembrei da última vez que estive ali.
O cheiro da casa também permaneceu igual, uma mistura de lustra-móveis de lavanda e frango frito. Os móveis, agora, um pouco mais modernos, assim como a TV de última geração e os aparelhos tecnológicos de aparato. A quantidade de porta-retratos também havia aumentado, Taehyung em sua formatura do curso de medicina, seu casamento, sorridente ao lado de uma Sharon Marie chorosa erguendo duas criaturas gêmeas minúsculas.
A dimensão de sua vida me atravessando como uma espada de fogo.
Taehyung era um homem casado, um pai, um médico conhecido e respeitado, a impecabilidade de sua índole me causava arrepios.
Toquei as fotos, até chegar ao cartão de Natal que exibia ele e Sharon Marie sorrindo no Rockefeller Center, usando suéteres temáticos idênticos, ensolarados até no meio da neve. O ódio percorreu o meu sangue feito a alma do fogo. O impulso de rasgar o cartão em pedaços foi interrompido por ele, que surgiu outra vez na sala.
— Vem, vou te mostrar os quartos e conseguir algo para você vestir!
Subi as escadas até o andar de cima, nada havia mudado muito, apenas o papel de parede que havia sido trocado. Os quartos seguiam uma sequência familiar: Os Kim, o quarto assombroso de Seulgi e então o de Taehyung.
— Você pode dormir no quarto da Seul, vou pegar um pijama da mamãe pra você.
— Tá bem.
Abri a porta do quarto, a luz materializou os rostos colados na parede pintada de preto. Os CDs empilhados no canto do quarto, os livros sobre feminismo, coreano e suas apostilas do curso de Direito, sua personalidade adolescente projetada nas paredes como um fosso simbólico de seu próprio âmago. Vomitada. E me sentia dentro dela.
— Papai e mamãe não mudaram nada desde que ela foi embora. — Taehyung disse ao retornar, sustentando um pijama de seda com botões frontais e calças. — Continua apavorante. — Ele sorriu — Tome, talvez fique um pouco largo, mas vai te servir.
— Está perfeito. — Alcancei o pijama e retirei o casaco, em seguida, a camiseta.
Taehyung deu as costas.
— Vou te dar um pouco de privacidade, — a voz entrecortada denunciava a surpresa — Eu volto depois. — A porta fechou atrás dele e enquanto me livrava do sutiã, sorri sozinha.
Desci as escadas depois de me trocar e ele estava na cozinha, preparando um chá de hibisco.
— Estava preparando algo pra você relaxar antes de dormir. — disse ele — O dia está quase amanhecendo...
— Obrigada.
— Parece que o pijama ficou maior do que imaginei.
— Eu costumo dormir sem roupas, então...
Seu rosto se contorceu em vergonha.
— Por hoje vai servir. — disse e ele assentiu. — Queria pedir desculpas pelo modo que tratei você no bar, sei que não fez por mal, é que... Para mim, tudo isso se tornou muito difícil.
— Você acha que me tornei mais uma das pessoas interessadas no que você tem a oferecer?
Contornei a xícara com a ponta do dedo.
— Não posso me dar ao luxo de confiar em mais ninguém.
— Isso parece cruel.
— A vida é cruel, Taehyung. — sorri.
Observei a cozinha que não havia mudado muito, parecia apenas equipada com parafernálias mais modernas, um novo jogo de jantar e uma lava-louças.
O grande sonho da Sra. Kim.
A porta para o porão, ao lado da pia, fez meu coração gelar.
— Vocês ainda usam esse porão?
Taehyung assentiu.
— Quer dar uma olhada?
— Claro!
Taehyung abriu a porta com força e acendeu as luzes no topo das escadas. Descemos degrau por degrau, voltando no tempo a cada novo passo.
O lugar continuava do mesmo modo, como se nunca tivesse sido afetado pelo tempo.
Os jogos de tabuleiro em que nos debruçávamos por tanto tempo durante os raros dias chuvosos, as revistas em quadrinhos e os filmes em fita cassete empilhados nas prateleiras improvisadas com madeira velha. Posters de filmes como Os Goonies, nosso favorito desde sempre, Os Garotos Perdidos e A Costa do Mosquito decorando as paredes de um tom amarelo calêndula setentista, na mesma época em que a casa havia sido construída.
— Minha nossa! Parece que tô em 1992 de novo — digo, quando chegamos ao último degrau. Taehyung sorriu. Parecia que jamais seria capaz de me acostumar com suas feições tão adultas, tão diferente do garoto que conheci. Permanecia com o mesmo olhar doce de quem tinha um coração inocente, perdido no paralelo de um rosto de homem crescido.
— Eu venho aqui sempre que posso! — ele disse, caminhando para o centro do velho porão, o sofá continuava coberto pela mesma manta de retalhos coloridos que havíamos feito em algum projeto de Ação de Graças. Tudo parece exatamente como me lembro.
Cada detalhe.
Despenquei no sofá e Taehyung sorriu.
— Tentativa de suicídio. — Minha voz sai, tão firme e limpa que seria impossível desviar os significados, interpretar errado o que estava tentando dizer. — Foi isso que aconteceu comigo no ano passado. Eu estava deprimida e simplesmente tomei todas as minhas pílulas junto com uma garrafa de whisky e afundei na banheira.
Seu rosto se entristeceu, aquele amparo de quem estava pronto para me colocar no colo, de quem sentia comiseração por mim.
— Eu sinto muito! Eu sinto muito que tenha sentido tudo isso. É terrível...
Tomei um gole do chá amargo.
— James me encontrou e... — olhei para a velha TV desligada, observando nossos reflexos fragmentados nela, distorcidos. Taehyung permaneceu de pé, estático. — E o resto é história.
O silêncio nos atravessou outra vez enquanto ele se movia para perto do sofá, sentando-se ao meu lado.
— Agora me diga, Taehyung, é bom ser amado de verdade? — Ele deu um meio sorriso, ainda preocupado, cruzou os braços.
— É a melhor coisa que existe. Mas acho que você sabe como é, não é?
Apoiei os pés contra a mesa de centro.
— Por que eu saberia?
— Você é muito amada.
— Não tô falando desse amor intocável que recebo por ser outra pessoa, falo de amor como o seu e da Sharon, de ser pai, de se sentir adulto, de ter uma família...
Ele me encarou outra vez, sua voz parecia somente vapor.
— Você ainda é muito amada.
Taehyung tocou meu rosto, o polegar roçando em meu lábio. Ainda tinha o gosto do chá de hibisco, me causando uma sensação estranha na alma. O medo e a culpa correndo por todo o corpo, em todos os lugares que ousasse pensar.
Queria afastar Taehyung e resguardar o desejo. A provocação era silenciosa como um sussurro diabólico. Toda ação que começa como uma ideia é muito avaliada até ter o potencial destrutivo de uma escolha. Colar os meus lábios nos lábios de um homem casado era, entre outros casos, uma escolha errada. Nosso acordo silencioso de ruptura está em vigor.
Meu tormento, em carne e pecado.
— Como?
A pergunta saiu como um sussurro.
Até seus lábios tocarem os meus, tão delicadamente, que as emoções derreteram na ponta de minha língua. Seu beijo não cessou a tristeza milagrosamente, mas havia tanta ternura em sua boca como há tempos não experimentava.
Mas sabia que não era eu a quem ele procurava. Ela, a garota perdida dentro deste corpo, não voltaria para os seus braços na tentativa de reaver o tempo perdido. Ele teria somente essa mulher quebrada e perdida.
Que procurava amor nas fontes erradas.
O alívio momentâneo foi apenas um suspiro de distância, seus olhos não se abriram outra vez, podia sentir seu coração através da camisa, cujos botões foram estourados na primeira tentativa de despi-lo. Suas mãos foram mais rápidas em desabotoar lentamente o pijama de seda, olhando para o meu corpo com uma devoção inigualável, como se tocasse um sonho, podia jurar que Taehyung estava prestes a chorar.
Seus lábios tocaram meu ombro, as sardas proeminentes que existiam ali desde que me lembro. A língua dançando na pele, experimentando o meu gosto.
Precisava de um cigarro. Me manter longe. Manter meus olhos em outras dimensões de distância. A boca de uma garrafa de gim seria tudo que deveria beijar hoje. Ou deveria ter sido a escolha mais acertada naquela noite.
Eu pensei.
Mas eu senti amor. Eu senti amor correr pelo toque delicado de suas mãos longas em minha cintura, dos olhos fechados enquanto minhas unhas raspavam delicadamente pela pele de seus ombros. Eu senti amor nos suspiros quentes a cada desprendimento dos seus lábios de meu pescoço, lânguidos, como se afastar-se de mim fosse seu maior castigo. Eu senti o amor de Taehyung enquanto era inundada de culpa. Enquanto via outra vez o rosto triste de Sharon Marie em memória. O velho pijama de seda da Senhora Kim foi despido sem pudor algum, enquanto seus olhos se abriram para me captar inteira.
Eu precisava sentir alguma coisa, me preencher de alguma culpa para ser eu mesma outra vez. Me condenar. Me arrastar de volta ao inferno. Só assim saberia viver como havia aprendido. No meu próprio limite.
— Por favor, Taehyung — supliquei — Faça amor comigo.
❀ ༄ ઼° ○ ❀ °○ ❀ ༄ ઼°○ ❀
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N/A:
Agradeço a todos vocês que estão acompanhando a maratona de Badlands e peço desculpas por qualquer possível errinho, pretendo dar uma segunda revisada no capítulo em breve.
Vocês estão gostando da frequência dos capítulos? Tá sendo bacana acompanhar?
Em breve apareço por aqui com novidades!
— Com amor, Sô.
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