Capítulo Dez (O devaneio febril sobre a menina morta)
My lover's gone,
His boots no longer by my door.
He left at dawn
And as I slept I felt him go
— My Lover's Gone, Dido.
🎭
Roseville, 2008
Roseville tinha desvanecido com o tempo, anuviado-se, como se um sopro da névoa que surge no início da manhã não tivesse se dispersado ao longo do dia, deixando uma réstia de sombra cinza encobrindo o que havia restado. Estávamos só na metade da tarde e o Sol se estendia pelo infinito de verde que se perdia de vista do lado oposto da rodovia 321.
Ao longe, ainda era possível ver os campos de algodão florescendo. Os capulhos formavam uma camada branca e grossa como neve fora da temporada, cobrindo o topo de flores silvestres esbranquiçadas ao lado dos maquinários e das colhedoras de fuso rotativo que produziam um chiado incômodo. Um oceano de nuvens cuja maré provocou um recuo e exibia, em retorno, velhos navios naufragados corroídos pela ferrugem.
Os dias insossos se arrastavam lentamente junto ao calor típico de maio.
A cidade ficava na divisa entre dois estados, na ponta sul do condado de Cotton-Cape, entre o Alabama e a Flórida. Existia um grande questionamento territorial e político de não pertencimento desde sua fundação. Todos os nascidos em Roseville até o início dos anos 60, durante o período pós-guerra, eram cidadãos do Alabama. O restante de nós, herdeiros dos baby boomers, éramos citadinos do estado da Flórida. Cotton-Cape pertenceu ao Alabama por mais de meio século até ser declarado território do estado vizinho, bagunçando uma geração inteira geograficamente. Uma disputa silenciosa e intensa que começava entre os governantes e terminava entre os cowboys e homens de meia idade com camisas floridas erguendo suas bandeiras mescladas.
Roseville era potencialmente uma raridade. Pais e mães repetiam orgulhosos aquela frase emblemática de programa de TV dominical. Ficava em uma área privilegiada entre a zona de plantio de algodão, dos gigantescos pomares de laranja ao leste da Flórida e se estendia em direção à riviera de Cotton-Cape, na pequena curva em formato de vírgula na ponta saliente do estado. Olhando o mapa, era necessário uma lupa para encontrar a localização exata da cidade pintada com linhas verdes no meio da imensidão azul do atlas escolar, decalcando o apogeu da zona algodoeira, no sudeste do país. E lá estávamos nós, perdidos no meio de dois grandes estados, e aqui, nessa cidadezinha irrisória, nos confins de lugar-nenhum, está toda a minha história.
Taehyung e eu costumávamos sentar nas pedras da ponte sedimentada que se estendia em direção ao mar, observando a maré subir e a rebentação quebrar nos rochedos que seguiam abaixo das falésias, gritando para as balsas e navios cargueiros que vinham do porto de Canaveral pela rota marítima do Golfo do México. Tentávamos adivinhar os nomes das embarcações a léguas de distância e acenavamos para os pequenos pontos em movimento no convés superior das plataformas, que vez ou outra, acenavam de volta. A baía de Salt Heirs se animava somente durante os dias de verão, mas se enchia de amantes durante a madrugada, fugindo de olhos curiosos em busca de privacidade barata e imediata, na manhã seguinte, peças íntimas surgiam carregadas pela maré até a orla marítima e viravam parte da exposição orgulhosa nos achados e perdidos dos quiosques.
Tomávamos nossos refrigerantes de laranja, mornos, sentindo o sabor químico e quase sedimentado do corante na tentativa de dissipar a inquietação das ondas de calor que se manifestavam como entidades da temporada.
Atravessávamos a orla com nossas bicicletas coloridas. Taehyung, com suas camisetas listradas e seus shorts de verão, cantarolando Sugar, Sugar do The Archies, enquanto o mini-rádio tocava dentro da cestinha frontal "Ah, Honey, Oh, sugar, sugar. You're my candy girl, and you got me wanting you" e ele sempre trocava as letras, substituindo o "Sugar, Sugar" por "Sofi, Sofi."
Eram detalhes que ainda brilhavam como gotas de ouro ao Sol no fundo de minha mente; os cadarços de um velho Keds branco manchados de graxa, se enroscando nas correias bem lubrificadas de minha bicicleta azul, o vento batendo no rosto, a brisa salgada que ressecavam os lábios besuntados do protetor labial Wet Cherry. Assistindo os rapazes do exército voltando para casa pela faixa de rodagem da estrada, os rostos exaustos, as mãos estendidas com os dedões para cima na espera de carros fantasmas, em busca de qualquer iminência de salvação inesperada, um estranho que os tirasse dali.
Como Billy Mansfield, o filho do Reverendo Mansfield, que todos costumavam chamar cruelmente de Billy Biruta. Billy tinha lutado na Guerra do Vietnã, naquela época, 28 anos depois. Os dias traumáticos não deixavam Billy retornar a realidade, saía perdido, vagando por Roseville pelos arredores da estrada, armado de pedaços de paus e seixos gritando para crianças e criaturas coabitando somente em sua cabeça. Às vezes, o víamos ao longe, no cemitério de ferro; a antiga estação ferroviária desativada após o acidente que matou centenas de funcionários da Cotton-Cape Railroad. Soubemos na aula de História, algum tempo depois, que Billy era um dos soldados da tropa que participou do massacre de My Lai, naquele fatídico março de 1968. O horror dirigido por tenentes naquele dia permaneceu nas entranhas de Billy, incapaz de abrir fogo contra os civis desarmados, assistiu impotente, seus colegas de base dizimarem centenas de crianças cujos rostos o assombrariam para sempre.
Éramos proibidos de ir até lá, a linha imaginária de interdição ficava demarcada no ponto entre os trilhos e os sinalizadores quebrados do lado norte, mas Taehyung e eu sempre dávamos um jeito de trazer Billy Mansfield de volta para casa: Billy era obcecado por chicletes Bazooka Joe.
Taehyung enchia os bolsos e dizia para Billy que se ele viesse conosco, poderia ficar com todos os doces. A única vez que Billy disse não, foi na última vez que o vimos com vida.
Na manhã seguinte, o noticiário local informou que seu corpo havia sido encontrado perto da praia, os seixos colhidos estavam dentro de um saco atado ao pé. A foto usada para mostrá-lo na TV exibia um rapaz bonito e sorridente, uniformizado, antes de sua alma abandonar seu corpo ainda em vida.
Billy se foi. E de alguma forma, eu o entendia agora. Sua cabeça é capaz de te destruir.
Apoiei os braços contra a janela do carro, sentindo a brisa salgada lamber o meu rosto, a aspereza do ar de um dia quente, de um junho eterno que se escancarava, o mesmo cheiro doce e enjoativo de quando a Primavera se despede silenciosa e lânguida. O carro de Taehyung produzia um barulho oco conforme avançava pela rodovia e nós dois continuavamos em silêncio. Seus olhos migravam do retrovisor até mim a cada segundo para confirmar que o choro havia cessado em definitivo.
Sabia que tudo era puro efeito do THC alto em minha corrente sanguínea, me deixando melancólica e lenta, levando-me até a base da partida e me deixando em ponto morto, esperando uma motivação maior para seguir em frente, um solavanco externo que chacoalhasse os meus sistemas na intenção de testar as funções ainda úteis. Tudo acontecia em questão de segundos, algo tão inofensivo; como cenas de um filme, uma canção, o perfume químico e a textura ensebada de um batom sendo aplicado em uma camada generosa, a fumaça do cigarro de um estranho, a premissa que indicava a chegada de uma estação, a iminência de algo que nunca vinha, mas me paralisava no pesadelo lúcido que por tantos anos parecia adormecido e quieto.
Della havia me proibido de fumar maconha, os resultados nunca eram bons, acabava ficando paranoica, triste e entrava em um ciclo de autodestruição depois que o barato se dissipava. Constantemente, precisava de algo mais forte para combater a vontade histérica que tinha de acabar com tudo. Como se o monstro amedrontado dentro de mim tivesse finalmente despertado de seu sono, faminto pelo que via ao redor.
Mas Roseville era o cenário original da tragédia, as covas abertas de cada fantasma.
Ao longe, os letreiros luminosos do Pink's pareciam muito mais modernos e elegantes, ainda tinham aquele toque peculiar facilmente reconhecível de Taylor, mas havia ganhado uma nova coloração, muito mais moderna e de tons mais fechados. O rosa suave algodão-doce estava coberto por uma demão de tinta vermelha. Mas o lugar permanecia com a mesma essência desde que fora adquirido: mesas coladas às grandes janelas de vidro, um balcão de atendimento centralizado e o piso de linóleo xadrez que parecia uma regra em toda propriedade de Cotton-Cape.
O bairro agora se chamava Catnip Falls, um complexo residencial planejado, havia uma placa gigantesca da Florida Lounges erguida diante da rua pavimentada indicando a venda de empreendimentos. Mamãe havia dito, em uma das ligações semanais, sobre a destruição de algumas propriedades antigas para a construção de um bairro mais moderno, entre elas, o Clube Blue Sunset, que daria lugar a um shopping, o primeiro da cidade. A placa pintada com fonte moderna indicava: Blue Cotton-Cape Mall, diante dos pedregulhos do que costumavam sustentar o que seria o saguão principal do clube, a imagem me causou uma sensação estranha de sufocamento. A piscina olímpica, agora, vazia, estava lotada de terra escura, o piso com mosaico em formato de estrelas pintadas era só ruínas. 'Dê adeus ao passado, seja bem-vindo ao futuro', anunciava a placa. Parecia um aviso.
Taehyung estacionou o carro em uma vaga afastada, erguendo o defletor antes de deslizar os vidros escuros de sua janela para baixo.
— Tem certeza que quer fazer isto? Se não quiser, você pode voltar outra hora. — Sua mão ensaiou uma tentativa de tocar a minha outra vez, mas a barreira invisível dos anos ainda deixava a sensação de distanciamento pairando no ar, de que éramos estranhos que se conheciam a vida inteira.
— Tudo bem. — respondi, checando o meu rosto vermelho e visivelmente inchado no espelho retrovisor. — Uma hora ou outra vai acontecer, não tenho como fugir por muito tempo.
Coloquei os óculos escuros e abri a porta com cautela, Taehyung já tinha dado a volta para me oferecer a mão, um velho costume que me fazia questionar, em algum lugar intencional de meu ressentimento, se era um dos detalhes sobre ele que Sharon Marie passou a amar.
Alguns pares de olhos se voltavam para nós e então seguiam repetindo a mesma ação, para ter certeza. O horário de almoço no Pink's significa restaurante lotado. Pessoas indo e vindo de todos os lados.
Taehyung puxou a porta, provocando um ruído mágico que parecia ter sido resgatado do passado, a velha sineta. Os olhos de Betty se voltaram para a porta e seu queixo despencou.
— Não acredito! Taylor, Taylor, ela está aqui! — Betty não havia mudado quase nada. Os fios de cabelo ruivo haviam ganhado uma coloração mais cinzenta, quase esbranquiçada, mas acreditava até mesmo que aqueles óculos eram os mesmos de dez anos atrás.
Suas mãos quentes seguraram meus braços como se quisessem sentir a materialidade da pele, a realidade física de minha projeção diante dos seus olhos. Suas mãos tocaram o guardanapo pendurado em seu bolso, e em seguida, o meu rosto.
— Que mulher bonita você se tornou, minha querida. — disse, com a voz embargada. Taehyung sorriu orgulhoso, apoiado contra o balcão, onde um homem de meia idade se pendurava em seu ombro para me ver melhor
— Ei, é aquela moça da foto! — uma garota gritou dos fundos do restaurante. — Papai, olha! É aquela atriz.
Ainda estava abraçada a Betty, sentindo o cheiro de bacon e ovos que parecia entranhado em todas as garotas do Pink's do turno matutino quando senti os braços da garotinha ao redor de minha cintura.
Fiquei tranquila porque ninguém percebeu que eu havia chorado.
Na parede lateral, onde o poster da Electric Flush costumava ficar, como um altar de adoração que Taylor mantinha para se sentir mais viva e ainda lembrar, dentro do raio das atenções e holofotes, de quem ela era. Ao seu lado havia uma foto minha. Uma mulher deslumbrante e com um longo cabelo louro que se estendia pelas costas nuas, tocando a base de um vestido vermelho. Foi na noite da minha primeira indicação ao Oscar. Nem conseguia me reconhecer na figura imponente na parede. Ali, parecia inalcançável.
— Bonequinha! — O rosto de Taylor surgiu por trás da cortina de miçangas, como uma dose homeopática de familiaridade. Continuava do mesmo modo que me lembrava. As mesmas roupas coloridas e seus berloques baratos barulhentos. Até o cheiro de erva e incenso de citronela. O tempo parecia intacto, estagnado dentro de uma garrafa como uma criatura neutralizada e rara, conservada e submersa em álcool diluído. Ela me abraçou como se eu pudesse desaparecer, conseguia sentir a vibração do seu coração em suas costas. Ainda havia amor sincero entre nós, eu pensei. — Não faz ideia de como senti sua falta.
Nos sentamos na mesa próxima à janela, Taehyung sempre falante, agitado, porque aquele ainda era o seu lugar, seu habitat. Parecia pressentir que o seu papel era me dar voz, eu relutava na tentativa de reencontrar a parte minha que eles ainda se lembravam de amar da mesma maneira doce de antes, sem o medo das segundas intenções.
Minhas mãos descansavam calmamente sobre o meu colo enquanto o olhar de Taylor me esquadrinhava a todo instante. Betty contava animada sobre o novo namorado, enquanto Taehyung ria ao ouvir a aventura dela por atravessar o Alabama inteiro em busca de um cara que estudava ufologia. Um tipo muito comum pelos lados do Sul, sempre buscando algum sinal extraterrestre nos campos de milho. Nada havia fugido do esperado em Cotton-Cape.
Ela ria enquanto segurava minhas mãos, a cabeça pendendo para trás em um prazer genuíno de enfatizar que continuava sendo a mesma mulher romântica dos anos passados. A mesma doçura da Bettie ruivinha que costumava ser chamada de solteirona como um título indesejado e não uma bênção.
— Fiz suas panquecas favoritas. — comentou, passando o balcão e depositando o prato sobre a mesa de forma maternal. — Panquecas de blueberry, lembra? — ela riu, as mãos tocaram o rosto. — Você adorava.
Sorri ao observar seu capricho em organizar, de forma delicada, as frutas no topo das panquecas formando um coração.
— Não me diga que agora você é como as garotas da Califórnia que cortam os carboidratos de todas as refeições e se enchem de tofu e queijo cottage? — ela perguntou, amigavelmente. — Por isso está tão magrinha assim. Coma! Vai te fazer bem.
Sorri quando suas mãos tocaram minhas bochechas, apertando-as de leve.
— Não negaria suas panquecas por nada no mundo, Betty.
Taehyung me observou cortar as panquecas em pedaços menores e colocar um pouco de calda, como se eu orquestrasse uma dança diante de seis radares atentos.
— Ela precisa mesmo comer, não estava se sentindo bem hoje cedo. Pelo menos está menos pálida.
— Foi só uma tontura, não se preocupem, Taehyung usa o diploma para o exagero — respondi, forçando um sorriso.
Não queria que o foco continuasse sendo minha presença minuciosamente analisada.
— Vocês não vão comer também?!
— Bettie, eu quero o de sempre. Capricha no molho, por favor. — Taehyung pediu, piscando para Betty que lhe deu um tapinha no ombro. Era um ímã de popularidade. Doce e gentil, Dr. Kim.
Um blog local havia citado sobre o prêmio de Cidadão Ilustre que ele havia recebido no ano anterior, a foto exibia um Kim de olhar seguro, erguendo uma medalha dourada diante de um púlpito, usando terno e gravata. Digitei um comentário utilizando uma conta falsa, observando uma outra versão minha tentando encontrar o vínculo perdido com o homem na foto. "Estou orgulhosa!", digitei e observei o comentário ao lado do nome inventado. Desisti no segundo seguinte em que me vi sendo estúpida o suficiente para alimentar minha obsessão silenciosa por alguém distante. Em uma rede social vi suas fotos de formatura, sua felicidade ao lado dos novos amigos, jovens endinheirados, todos com gravatas atadas ao redor das cabeças, erguendo copos para o alto. O início da sua especialização em Ginecologia, um dos dois únicos homens que formavam a turma reunida em uma foto no primeiro dia de aula. Os trabalhos voluntários em centros de idosos, na igreja e na comunidade. O quebra-cabeças que ornamentava sua reputação sempre esteve com as peças muito bem encaixadas diante de mim, contudo, agora entendia o fruto de sua adoração evidente.
— Como vai a vida na Califórnia, tem gostado de viver em uma terra onde quase nunca chove? — Taylor perguntou, tinha o rosto apoiado na palma da mão, os olhos azuis reluzentes enquanto me assistia devorar panquecas.
— Gosto de lá. Vivo em Brentwood, mas fico quase sempre em Santa Mônica, é bom estar perto do mar, então, durante o inverno chove bastante.
Taylor sorriu de maneira amigável, puxando as lascas das panquecas.
— Faz você se sentir em casa? — Ela tocou o próprio cabelo — Estar perto do mar...
— O som ainda me acalma. E é um bairro tranquilo, apesar de tudo. Viver em West Hollywood me deixa um pouco sufocada. O movimento é exaustivo, o trânsito sempre caótico.
— Imagino. — Seus olhos pareciam dois holofotes teleguiados capazes de me ver através das camadas da pele, ler os meus pensamentos sem muito esforço.
— Prontinho, aqui está, para o meu doutor se alimentar bem. — Betty trouxe dois pratos com hambúrgueres e uma porção generosa de fritas, Taehyung se curvou para beijar a lateral de sua cabeça, fazendo-a corar.
— Ah, você é a minha favorita, Bettie. — ele disse.
Observei tudo como uma espectadora.
༄
Taylor havia insistido para que eu ficasse na casa dela para o jantar, sabia bem que a conversa superficial sobre o clima da Califórnia não era o tópico em questão, um rearranjo na narrativa contada abriria as páginas não percebidas antes, coladas uma a outra ocultando um lado importante da história. Aquela cujo os olhos de todos, eu desejava manter distante.
O jantar foi servido mais cedo, Taylor havia preparado salada de frango ao molho e quinoa, típico dela.
Conforme a tarde caía, numa penumbra lilás que mergulhava Roseville numa melancolia quase azulada, as aleluias se amontoavam no parapeito da janela, perdendo as asas transparentes e translúcidas, rastejando pelas fendas. Aquela era uma época propícia para as infestações desses pequenos insetos, que ao contrário das efeméridas, causavam transtornos reais; obstruindo luminárias e destruindo assoalhos, portas de alvenaria e móveis de carvalho.
Observei um amontoado delas tostando diante da luminosidade excessiva do abajur de Taylor em uma dança mortal hipnotizante, a trilha-sonora eram os passos dela na cozinha, preparando um chá de hortelã de cheiro forte. Ringo Starr, agora, cheio de pelos brancos e uma camada pastosa nos olhos que denunciavam o avanço de sua idade, tinha um companheiro jovem e ativo, um siamês alegre chamado Jim Morrison.
Taylor contava sobre o convite que havia recebido, há quase um mês, para um tributo aos dias de glória da Electric Flush, estava pensando em retomar a turnê; a velha guitarra que costumava ficar pendurada como objeto ornamental na parede, pendia diante do apoio de um pedal elétrico, zunindo, implorando para ser tocada. Estava praticando um pouco, ela disse, embora ainda me lembrasse de sua capacidade sobre humana de compor canções sinceras.
— Você é uma artista natural — falei, tocando a base da guitarra. Ela suspirou, mas parecia orgulhosa de si mesma, uma cumplicidade juvenil ainda compartilhada, uma percepção e confirmação de uma outra pessoa sobre o quanto ela ainda estava viva e jovem o suficiente para fazer o que queria.
— Aprendi a tocar alguns acordes quando fiz o teste para o último filme... — falei, me movendo até a telecaster branca e dedilhando algumas notas. A mesma canção que Hoseok havia me ensinado no verão em que fui sua: Dust in The Wind.
— Vamos sentar no quintal, vou acender a lareira — ela falou, me entregando a caneca morna assim que cruzou a sala. Assenti. — Vou buscar um xale para você, deve ter caído uns cinco graus lá fora.
Taylor voltou da sala de jantar trazendo a peça de crochê com pequenas flores coloridas bordadas e estendeu para mim.
Sentada lá fora, observei o topo dos carvalhos no quintal, as luzes se espalhando pelas casas vizinhas ao longe. A casa de Taylor tinha um ponto privilegiado que permitia ver a tela imensa do drive-in da cidade. Sentados no primeiro andar, conseguíamos ver as cenas em um ângulo deformado e com alguns bilhetes roubados, descobríamos a frequência da rádio para ouvir os diálogos emocionantes dos clássicos. Muitas vezes, quando dormia aqui, ficava inventando falas para as cenas, rindo até perder a voz. Um pouco além, víamos os casais desatentos da tela e dos outros ao redor, mandando ver nos bancos traseiros de um Ford.
Descansei os pés contra a mureta de pedras ornamentais e tomei um gole do chá aguado de Taylor.
— Então, sei que não gosta desse cara. — ela começou, apoiando os pés descalços com as unhas pintadas de verde-oliva na mureta. Percebi que o tempo também havia passado para Taylor, as veias azuladas de seus tornozelos tinham ganhado protuberância, os microvasos contornando os joelhos e coxas como pequenos mapas vistos do espaço. Os sinais da fragilidade que, lentamente, tomava conta de seu corpo. — Esse seu noivo politizado e babaca. Sei que não gosta dele.
Mordi o lábio.
— Eu amo o James. — disse, fazendo Taylor erguer as sobrancelhas enquanto olhava para dentro do próprio copo.
— Já te vi apaixonada, bonequinha. E não se parece em nada com isso aí que você chama de amor. — Me senti exposta com sua análise, a ideia de que passaria despercebida de quem me conheceu a vida inteira soou patética, ridiculamente óbvia para um olhar minucioso de quem, de fato, eu já não podia enganar.
— É diferente, Taylor, não tenho mais dezesseis anos. — ela assentiu, tocando a ponta de sua trança que pendia na lateral do ombro.
— É verdade. Me esqueço que você não é mais aquela menina. — Taylor falou. — O amor deve ser diferente para você agora. Ter outro significado. Certo?
Encarei o solitário pesando em meu dedo. A sensação perniciosa se alastrava como um fogaréu em meu peito. Sabia do que precisava.
— O James nem sempre é tão ruim assim, se quer saber. — observei o fogo da lareira subir como uma dança hipnotizante e perigosa, as chamas lambendo as madeiras e os pedaços de revistas velhas que Taylor havia jogado dentro dela. — Ele tem defeitos, mas também tem muitas responsabilidades para dar conta. Eu tenho que entender isso.
Taylor revirou os olhos, sua autoridade iminente, sem precisar de palavras, me emudeceu.
— Conheço um babaca quando vejo um. — Ela respirou fundo — E se isso fosse mesmo verdade, você não precisaria me dar uma desculpa. — Seu comentário era acusatório e assertivo.
— Eu não...
— Você não...? — questionou ela — Pode até enganar o Taehyung, mas achou mesmo que não perceberia? Não ando lendo nada a respeito de vocês, não pense que vivo de fofocas, mas basta te olhar com um pouco mais de atenção para perceber que as coisas não andam bem. Bom, não é da minha conta de todo modo. — ela tomou outro gole do seu chá insípido. — Só espero que isso não esteja custando a sua felicidade.
— Queria que fosse tão fácil quanto só querer — falei, soava esgotada. — Se dependesse só do que quero, talvez fosse feliz, mas acabaria sem nada.
— É mais fácil para você viver das aparências do que ser feliz, então?
— Todos vivem das aparências no fim das contas, não acha?! Todo mundo tem sua parcela secreta seja lá do que for, eu apenas escolhi não ser burra o bastante para perder a chance quando ela apareceu. — tomei outro gole do seu chá, parecia intragável naquele momento.
— Às vezes uma oportunidade pode custar mais do que o preço que ela parece ter. — disse Taylor, pacientemente. — Mas acho que você sabe muito bem disso.
— Podemos tomar uma cerveja?
— Que Afrodite te ilumine, criança. Esse chá está com gosto horrível — ela respondeu, dissipando um clima tenso entre nós. Sorri aliviada.
Fiquei em silêncio observando as folhas balançarem conforme a brisa gelada passava enquanto Taylor estava de volta à cozinha.
— Então você voltou realmente por conta de Stane, certo? — questionou ela, a voz fantasmagórica atravessava a janela de persianas horizontais. Ouvi o tintilar das garrafas de vidro se tocando conforme ela traçava o caminho de volta.
— Digamos que sim, — falei. — já estava planejando uma visita, mas essa questão com o testamento de Stane não fez sentido algum para mim. O que ele poderia me deixar como herança? Na verdade a pergunta seria, por quê?
Taylor estendeu a garrafa suada devido a fusão da temperatura, que fez as pontas dos meus dedos congelarem.
— Stane adorava você, adorava os cinco, na verdade. Estaria mais comovida se seu nome não surgisse no testamento. Acho que tem muito mais gente surpresa por não ter sido citada lá. — Minha curiosidade afagou meu desespero, tentando imaginar o que Stane teria planejado nos dois últimos anos e na sua mirabolância para trazer todos de volta a esse lugar sem pistas deixadas, sem suspeitas.
— Me sentiria muito pior se ficasse com alguma dessas coisas que não deveriam ser minhas, independentemente, prefiro que tudo seja doado. — disse, tomando um gole generoso da cerveja enquanto ela me observava.
— Bom, se estão lá para serem suas, serão suas de qualquer jeito. — afirmou ela. — Taehyung me falou que Stane não possuía tantos bens assim. Nos últimos meses o tratamento dele foi custeado por doações, alguns eventos promovidos pelo padre Holland conseguiram um bom valor para as despesas médicas, e sei que Taehyung fez o que pode com a influência que tinha por aqui, mas o caso de Stane não tinha mais jeito. — ela bebeu um gole da cerveja, umedecendo os lábios. — Não para os médicos.
— Parece que ele assumiu uma responsabilidade enorme nesse tempo. — Minha voz parecia mais letárgica e relaxada, quase como se pura morfina tivesse corrido em minhas veias trazendo uma sensação de relaxamento graças ao álcool. Me sentia menos paranoica, porém ainda mais ávida. O peito estava em chamas.
— Stane não tinha família, nem irmãos ou parentes próximos. E apesar de tudo, você sabe que Taehyung sempre amou este lugar. Roseville sempre foi mais a casa dele do que qualquer outra. Ele faz o que pode por todos. E fez muito, principalmente por Stane.
— Imagino — afirmei. — Onde ele está? Sei que os pais dele são de Hell's Kitchen.
— Nos jazigos da igreja, perto do jardim. Ele mesmo pediu para ficar aqui. Queria continuar perto de alguma forma. — A conversa toda fez com que me sentisse dramática, exagerada, e senti vontade de chorar outra vez, como havia feito mais cedo. Mas não parecia justo que o meu luto tardio ressignificasse o abandono voluntário. Eu escolhi me afastar. Minha presença pairando naquele lugar parecia um erro perceptível a olho nu. Mesmo estando cercada de pessoas que me viram crescer, onde minhas raízes estavam amavelmente fincadas, não sabia dizer se alguma vez na vida havia me sentido tão deslocada daquele jeito.
— Há uns dois anos ele tentou entrar em contato, mas eu o evitei. Pensei que estava fazendo bem em não deixar que as informações chegassem até mim. Sei lá, pensei que tava me protegendo de tudo. No fim das contas só pareceu desprezo. — brinquei com o gargalo, deslizando o dedo ao redor da perfuração do vidro.
— Stane não veria dessa forma.
— Não tenho como confirmar essas teorias. — Se afundasse outra vez no ciclo de revisitar essa ideia não sairia mais de lá, as fixações estavam ao ponto de criar pernas e fugir pelas frestas de cada palavra desesperada que era dita, sem que percebesse. E o humor mordaz de Taylor parecia modificado na tentativa de me apaziguar, uma versão sua decalcada por cima da original, como tudo que era parcialmente falso e frágil desde que havia chegado aqui. Um protótipo vagabundo substituindo o que era legítimo.
— Você encontrou a Dana? — perguntou ela, erguendo os joelhos para perto, com os pés apoiados na poltrona.
— Ainda não, — respondi.— Tem uns meses desde que nos falamos, mas sei que quando ele está por perto, tudo fica assim, estranho. Ele já deve ter orquestrado qualquer mentira barata pra tirar o foco dela do resto das coisas. Parece que nunca consigo me aproximar o suficiente de Dana, fico sempre ali, arranhando na superfície. Aconteceu na Califórnia e aqui também, de novo.
— Você diz o Yoongi, certo?
— Quem mais seria? — Era impossível tocar no seu nome sem sentir a mágoa percorrendo os lugares mais profundos do corpo, um líquido viscoso e corrosivo de ressentimento que dilacerava a carne. — Queria só entender em que momento isso tudo aconteceu e eu acabei não percebendo, esse momento em que o que eu e Dana tínhamos se estilhaçou ao ponto de não ter mais conserto. O Yoongi me odeia. Ela o ama. É tudo bem óbvio. A gente sabe o final.
— Achei que Dana tinha um namorado. — Taylor disse, desviando o olhar na direção das árvores.
— E tem. — respondi. Algum pobre coitado que não havia percebido o quanto Yoongi continuava tirando, tirando e tirando dela esse tempo todo. — Mas você sabe, existe aquela parede que é invisível, mas ainda está lá e te deixa gritando no vazio. Não vou me envolver nisso outra vez.
Virei a garrafa, dissipando o conteúdo de uma única vez.
— Acho que nunca me mostrei de verdade pra Jordana, e quando ela viu o lado feio de tudo, não conseguiu mais me achar ali. Aquela menina morreu quando fui embora, quando disse aquelas coisas. Quando fiz aquelas coisas.
— Talvez essa garota nunca tenha existido de fato. — Taylor falou, curvando-se para apoiar a garrafa vazia no chão. — Essa menina que existe na sua cabeça, que você julga ser tão diferente de quem é agora.
Olho para Taylor de novo, sabia bem onde ela estava tentando me induzir a ir com o seu conceito metódico de confortar meu ego para então, chegar até a verdade inegável dos fatos. Não era por mal, não, não havia maldade. Taylor me amava. Eu acreditava nisso. Mas suas táticas estavam começando a se tornar evidentes, ou talvez a nossa proximidade em idade e experiência deixasse claro o que antes não conseguia perceber da mesma maneira.
— Odeio pensar nisso. No meu passado. Odeio. — O álcool já começava a surtir efeito no meu corpo. — E agora tem um monte de merda mal resolvida que deixei pra trás, Theo me odeia, meus pais tem encenado o pior papel da vida deles, como se eu não tivesse desaparecido por onze anos e ressurgido dos mortos tipo "ei, pai, mãe, desculpe achar que poderia comprar o afeto de vocês com dinheiro e umas porcarias da moda, mas minha carreira agora está fodida e pensei, por que não voltar?!"
Os olhos de Taylor não desviaram do meu rosto enquanto continuava explicando as motivações sobre a volta que, até então, permaneciam ocultas. Tinha falado demais e não poderia retirar o que foi dito. Ela sabia. Pelo menos tinha aliviado o peso que carregava comigo desde então.
— Ele está assim porque não lidou bem com sua ausência, mas qual é? Ele é um adolescente. Adolescentes me assustam pra caralho, às vezes. É uma fase estranha. Mas uma hora ele vai ceder, ele não pode te evitar para o resto da vida.
— Não o culpo se ele decidir fazer isto. Ao menos não tá fingindo.
Me senti tranquila e magoada ao mesmo tempo, talvez Taylor tivesse razão, assim como tudo mudou e seguiria mudando, o mesmo valeria para ele em algum momento. Contudo, era como se dentro do meu coração, Theo ainda fosse o mesmo garotinho doce e frágil de um tempo pretérito. Imaginá-lo como uma criança compungida ao invés de um adolescente raivoso e articulado ainda gerava uma confusão incoerente em minha cabeça. Sua resistência destrutiva não era capaz de dissipar o amor desmedido que ainda sentia a cada vez que tentava remontá-lo em minha cabeça como homem: forte, imponente e sagaz.
Ainda reconheceria os seus imensos olhos verdes amorosos que não teriam se alterado nunca. Me apegaria a ideia de que, ao menos, o seu traço mais doce permaneceria lá, intacto. Traindo o tempo e a sua espada impiedosa.
Pressionei os lábios um contra o outro na tentativa de fazer com que as lágrimas desaparecessem.
— Você tem contato com a Sharon? — desviei do assunto de um jeito menos horrendo e óbvio. Sutileza podia ser o meu forte. — Taehyung parece feliz.
Me sentia outra vez a mesma menina obcecada pela garota bonita. Desejando ser como ela, às vezes habitar em seu corpo ou até mesmo tê-la, embora naquela época não entendesse o motivo de minha atração confusa como uma nódoa de vinho absorvida por um vestido de seda caro, e hoje tudo parecesse mais claro e as respostas não exigissem tantos questionamentos. Entendia quem eu era e o que sentia. Mas naquele tempo, tudo parecia enevoado por dúvidas sutis.
Como uma vez, quando me vi assistindo pela fenda da cabine do vestiário, Sharon Marie deslizando seu batom Wet n'Wild, Vermelho-Quente, nos lábios e senti vontade de beijá-los só para descobrir a sensação que Jungkook tinha ao tocá-la, que sabor teria o gosto químico do seu batom atrelado à natureza da sua boca, ou se o sabor dele permanecia intacto nos lábios lindos que ela tinha. A sensação queimava bem ali, no meu ventre cada vez que sentia o cheiro doce que ela exalava.
Estava obcecada com a ideia de como ele amava aquelas garotas. Como era capaz de persuadi-las, sempre dizendo a coisa certa, na hora certa. Imaginava, muitas vezes, como deveria ser o sexo. Não me incomodaria em assistir. Me contentaria com a performance lírica do que ele era capaz de fazer. Queria descobrir o que diziam um ao outro, o que faziam, se Jungkook era como os rapazes que eu ouvia na escola, que faziam as garotas irem lá embaixo. Quase um experimento científico, uma análise técnica de tudo. Queria sentir o que ela sentia, por meio de osmose. Entenderia seu modus operandi e então, aprenderia a evitá-lo sem me contaminar com seu encanto venéfico.
Embora, naquela época, meu conhecimento sobre o assunto fosse limitado e inútil e o termo só me parecesse misterioso e curioso. O que havia de tão bom sobre ir lá embaixo?
Em um dia qualquer, abri a gaveta de meias de Taehyung e vasculhei pelo fundo falso, achando sua coleção de fitas enquanto ele estava no banho. As mulheres nuas, trêmulas em chuviscos de uma gravação azulada de uma filmadora VHS, exibiam uma sensualidade que não fazia sentido para mim, mas o meu primeiro pensamento foi a percepção de que eu não era como nenhuma delas, com seus seios redondos e pesados como massa de biscoito, partes dos seus corpos tão diferentes, lisas, lustrosas, rosadas, quase de borracha, erguidas em diâmetros, rotações e curvaturas impossíveis de reproduzir. Ser uma adulta é assim? Eu pensava. É disso que os garotos gostam?
Finalmente entendi o significado do termo, a mente estava distraída com o ruído pornográfico, com as sensações se aflorando em meu corpo, a pulsação incômoda no tecido de minha calcinha.
Na dimensão de uma vida tão diferente, já percebia sozinha que era moldada e laboriosamente construída para a função de causar paixão ou qualquer desejo satisfatório a um olhar masculino, só valeria a pena viver e ser amada se ocupasse um espaço nas fantasias de um garoto, o olhar daquelas mulheres misteriosas me diziam. Esta é a cruel responsabilidade de uma menina. Sussurravam elas nas entrelinhas de diálogos inexistentes.
Mas eu tinha só quinze anos e o meu mundo se resumia a Cotton-Cape, garotas nuas em fitas secretas amadoras e um rapaz experiente com aura de desordem que enlouquecia minha cabeça. Era fácil acreditar em muitas mentiras.
— Claro, ela é ótima. Taehyung e ela formam um par e tanto. Não são tão caretas quanto a maioria dos casais que conheço, acredita? Além de que eu adoro aqueles dois monstrinhos. — Taylor sorriu. — Sabe, eu pensava que você acabaria sendo a sra. Kim em algum momento, mas isso foi antes de tudo — Ela fez uma pausa, limpando a garganta, um tom de voz mais baixo me fez premeditar o que viria em seguida. — Antes dele.
— Até hoje isso parece um delírio...
— O quê?
— Jungkook, eu, aquela época toda. Às vezes parece um filme, uma memória que roubei de outra pessoa, algo que inventei na minha cabeça. Nem parece que era eu ali, vivendo tudo, sentindo na pele.
Até mesmo agora, crescida, quando olho para trás, tudo parece carregar um efeito quimérico, um ar sutil de faz-de-conta. Não tinha vergonha de ser quem era para ele. Sentia como se Jungkook tivesse a capacidade de ver partes minhas que ninguém mais era capaz de ler com tamanha facilidade, como se os códigos confusos de minha configuração avançada fossem um cálculo simples de se obter um resultado sob seus olhos precocemente experientes. Eu era um idioma secreto e ele, o intérprete de minha língua morta.
— Os primeiros amores sempre são intensos assim. Ele foi o seu primeiro cara, não é? É uma sensação maluca, tudo experimentado de um jeito tão selvagem. Ainda lembro bem do meu primeiro amor. Acho que ninguém nunca supera de verdade, a gente só aprende a amar outras pessoas.
Um arrepio percorreu minha pele e deslizei a mão pela extensão do braço na tentativa de aliviar a sensação.
— Ele foi. Em absolutamente tudo. — ri, mesmo sem vontade. — Eu nunca tinha sequer beijado um garoto até conhecê-lo. — Poderia dizer a Taylor que tínhamos feito amor escondidos na sala de sua casa, inúmeras vezes, entre as almofadas psicodélicas e o seu carpete desconfortável, em todas as suas viagens de última hora à Rhiannon, quando minha responsabilidade era cuidar e alimentar Ringo Starr. E como me sentia adulta, fingindo que aquele lugar inteiro era só nosso, um mundo mágico onde pais, mães, professores, irmãos e tios jamais poderiam nos encontrar. Mas aquele ainda era o meu segredo, o nosso, que provocava o calor gostoso de excitação sempre que revisitado, tantos anos depois. Jamais contaria.
— Você e o Taehyung nunca - — Suas mãos orquestraram um gesto obsceno.
— Ah, não, não. Nem pensar. Existiu uma tentativa, eu acho, mas eu já estava tão apaixonada que simplesmente...
— Fugiu?
— É, fugi
Ainda mantinha a carta ressentida de Taehyung antes de sua partida para a faculdade, ele havia encontrado as palavras certas para causticar a ferida ainda aberta, em uma recapitulação exaustiva, insólita, com uma boa dose de cólera derramada por cima do papel enviado em envelope comum com meu endereço escrito cuidadosamente no verso. Seu voto de silêncio depois disso deixou tudo às claras para mim. Na época, pensei que tinha-o perdido para sempre.
— Você pretende visitá-lo? Digo, o Jungkook. — Taylor voltou o dorso em minha direção, o olhar amoroso amortizou as palavras.
— Não quero ir até lá de novo.
— Ele provavelmente ficaria feliz por saber que você veio. — Ela estava errada, de novo.
— Não conheci ninguém que odiasse mais essa cidade do que ele, duvido que iria me querer de volta aqui. Mas isso não importa mais, eu cumpri minha promessa, fui embora. — Seus movimentos, decisões e cada maldita vontade giravam em torno de deixar Roseville. Jungkook costumava dizer que esta terra estava amaldiçoada, era um lugar tenebroso e infértil. Saber de que ele continuava preso aqui fazia meu coração se estilhaçar.
— Ele já sabe que você está em Roseville. Não vai poder evitá-lo por muito tempo. Deveria mesmo visitá-lo. — Taylor reforçou, caminhando em minha direção para recolher a garrafa vazia.
Não era uma frase premeditada, mas o tom parecia calculado, revestido de uma cautela necessária de quem não queria me magoar.
— Não quero ir até lá outra vez — Puxei o xale para mais perto do peito, cobrindo as pontas dos dedos. — Não me sinto pronta.
— Já se passaram onze anos, Sofi. Encerrar as coisas de maneira apropriada talvez fizesse bem a você. — Seu rosto se tornou sombrio. — E acho que faria bem a ele também.
Conhecia aquela expressão familiar, assim como me lembrava de Madame Emerald, a cartomante que um dia me falou que via amargura em meu destino, sempre em meu encalço. Aconteceu em uma tarde qualquer de 1993, antes mesmo de pisar em sua tenda no festival da colheita, anos depois.
Naquela tarde, retirei Merlin, seu gato, do topo da casa da árvore do jardim dos Kim e bati em sua porta: uma casa assustadora e cercada de erva daninha no quintal, como um cenário de filme de terror. Foram duas batidas e a vi pela fenda do olho mágico, hesitante.
Merlin estava acolhido em meu colo, ronronando. Ela abriu a porta e ele pulou para dentro no mesmo instante. Madame Emerald continuou me encarando, os olhos fixos no meu rosto.
"Pobre menina" ela falou, enquanto eu caminhava de volta até a rua deserta."Tão jovem e essa sombra de destino amargo já a persegue."
— Parece que esse pesadelo nunca acabou de verdade. Parece que eu ainda tô presa naquela mesma noite, naquele mesmo ano, continuo me vendo lá. Repetindo a cena. Um maldito botão de replay quebrado. — Me encolhi dentro do xale com cheiro forte de cânfora.
Quando era mais nova, alguns pensamentos costumavam me assombrar constantemente, entre eles, a sensação de que não conseguia me encaixar.
Estava sempre me comparando com qualquer outra garota. Cortando meu corpo em partes menores e avaliando milimetricamente, em cada uma delas, tudo o que parecia me faltar.
Uma comparação injusta e uma autocrítica cruel quando me via diante de corpos que se exibiam com uma perfeição eufônica. A menina de cara espinhenta, aparelho ortodôntico e cabelo volumoso não possuía nada de tão horrendo e asqueroso assim como mentia para si mesma no espelho. Odiando a própria imagem porque parecia inadequada diante do crivo que havia criado. Havia delicadeza em tudo, a juventude em seu estado perfeito e egoísta só nos deixa saber disso depois que se vai, quando abandona um receptáculo inóspito e maduro; olhando para as fotos daquela época, vejo uma menina tímida e bonita com postura ruim e escondida em uma crosta de insegurança, uma pérola dentro de sua concha.
A primeira vez que me dei conta de que minhas faltas eram notadas, foi quando ouvi de outra pessoa o que me aterrorizava no espelho. Um garoto, Christopher Cody, havia gritado na minha cara, naquela manhã, depois que esbarramos no corredor, que eu era uma criaturinha repugnante.
A palavra ficou dando voltas na minha cabeça. Repugnante, repugnante, repugnante.
Um adjetivo que até então só tinha associado a coisas relativamente nojentas durante a vida inteira: uma crosta de geleia envelhecida ao redor de um pão bolorento nos fundos da geladeira, comida estragada no lixo orgânico e crimes na TV. Tinha sido reduzida a uma palavra que usava para delegar tudo aquilo que era ruim, menos a aparência de alguém.
O que começou com um xingamento cruel terminou em uma lista que acabei roubando no teatro quando passou por mim, e lá estava meu nome na pilha das garotas feias. Era a quarta na categoria PIORES DO CLUBE DE TEATRO. Logo depois de Suzanne Thomas e Emma Lewis. A sensação percorreu meu corpo com uma onda de calor e desespero, acompanhando os olhares que pareciam concordar a cada voto dado na lista demarcada de canetas coloridas no verso de uma partitura amassada, um coleguismo notável que me amedrontava. Ao lado de meu nome, uma seta direcionada para a palavra que havia sido ressignificada desde então: repugnante.
Voltei para casa chorando e me escondi no jardim de Padre Stane até conseguir parar de soluçar, e soube, após alguns dias, o motivo do rosto ferido e do desaparecimento dos óculos de sol patéticos de Christopher Cody na semana seguinte: Jeon Jungkook.
Haviam muitos boatos na época, alguns diziam que Jungkook tinha feito Cody urinar nas calças ao questioná-lo sobre a lista; ele ainda metia medo nos meninos por ter vindo de um reformatório cujo histórico não era dos melhores, já outros, diziam que ele tinha rasgado-a em pedaços minúsculos e feito o garoto engolir enquanto assistia tudo do seu Maverick 79, tomando uma cerveja. Mas a verdade era que Jungkook só deixou Christopher saber do motivo do soco que partiu seus óculos de sol em dois quando ele já estava no chão.
— Faz uma lista sobre isso agora, monte de merda!
Os questionamentos foram muitos. O fato de Sharon Marie estar na lista de garotas mais bonitas, com um adendo ofensivo de "peitos gostosos" ao lado do seu nome soou como motivação justificada, um ciúmes indevido da garota que só tinha olhos para ele, e entre outros casos, era sua namorada ou qualquer outro rótulo patético de pertencimento. Mas Jungkook nunca soube sobre a lista das garotas bonitas, a única que ele carregava consigo naquela tarde era somente a minha. Tanner Kent estava lá, era o seu cúmplice. Fez questão de me deixar saber.
Lembro do dia em detalhes; encurralada entre o corredor que interligava a escola ao jardim paroquial depois de ter sido pega escondida entre um canteiro e outro, ele erguendo a lista, mais alto que minhas mãos podiam alcançar, para ler e perguntando "Quem fez isso com você? Me diga, quem escreveu essas coisas?" Me sentia tão envergonhada, porque tinha medo que ele passasse a me ver como o resto dos garotos: a criaturinha repugnante.
Homens estão sempre tão alinhados uns com os outros, concordando até mesmo quando discordam, existe algo maior partilhado entre eles. Uma necessidade de aprovação que só poderia ser dada e oferecida por outro.
Continuei encarando a superfície arranhada dos meus mocassins enquanto ele curvava a cabeça para tentar ver o meu rosto escondido entre as mãos. "Foram uns garotos da escola, mas não é nada demais, é só a verdade"
Mal conseguia formar frases sem ser interrompida pelo soluço do meu próprio choro. Ele encarou a lista outra vez.
"Posso ficar com ela?" perguntou. Deveria ter questionado o motivo. "Pode". respondi, ingênua demais para entender.
Aquele cheiro estranho de passado voltava vez ou outra. Sua mão erguendo meu rosto diante dos seus olhos, secando minhas lágrimas. Parecia que se deixasse Jungkook me olhar mais de perto ele perceberia tudo o que me faltava, tudo que mais odiava sobre mim mesma, as imperfeições gritantes que surgiam de imediato quando meus olhos encontravam o espelho. Cada singelo defeito muito bem posicionado.
"Você é linda, se quer saber. É provavelmente a garota mais bonita que já vi na vida."
Tinha o corpo posicionado diante de mim, o braço apoiado na parede detrás da minha cabeça; se erguesse os olhos, — se ao menos tivesse a coragem que sempre me faltava quando ele estava por perto —, conseguiria ver cada detalhe minucioso do seu rosto bonito e masculino: os hematomas recém curados e os olhos como duas fendas escuras direcionando luz sob o véu negro de um paraíso proibido. A ferida em sua boca que não voltaria outra vez a se curar, os lábios amorosos continuariam derramando amor até o fim.
E ele viria a fazer naquele dia, o que para sempre ficaria registrado em cada célula do meu organismo, em minhas sinapses químicas e elétricas, em cada gramatura daquele pequeno corpo de pássaro de papel, como o gesto de amor mais delicado e singelo, de fácil reconhecimento.
A palma de sua mão, com cheiro de nicotina mentolada e lubrificante de motor de carro, pousou diante do meu rosto, tocou meus lábios, deixando apenas os meus olhos expostos.
"Você tem os olhos mais doces que eu já vi."
Uma sensação misteriosa atravessou meu coração, subindo pelo peito até a boca, atingindo a ponta da língua. Sabia que estava amaldiçoada. Madame Emerald tinha razão, ela via seu rastro em meu destino. O choque de duas almas desatentas.
E eu, tinha nodos lunares posicionados estrategicamente no céu acentuando algum dano astrológico irreversível. Uma vênus amarga demais, retaliativa e retrógrada, fincada no passado. Sem me dar chances de escolha. Qualquer alívio teria sido pouco, eu pensava, aquele fogo continuaria me consumindo. Queimando, queimando e queimando.
O som do carro de Taehyung rompeu o silêncio entre Taylor e eu assistindo as chamas, lentamente, apagando-se na lareira.
Ouvi os passos dele atravessando o jardim e então, a campainha soou. Caminhei até a sala para calçar os sapatos, acompanhando Taylor, que carregava um Jim sonolento no colo.
E ali está ele. Seu aspecto parecia mais leve agora, menos sério, estava usando um moletom bege e um jeans básico. Nada que alterasse seu status perfeito de beleza. Os cabelos estavam úmidos de um banho recente e ele tinha cheiro de creme pós-barba. Um perfume almiscarado que inundou a sala.
— Achei que talvez quisesse ir pra casa. — disse ele, assim que me aproximei.
— Você já jantou, Taehyung? Tem um pouco de salada de frango na geladeira. — Taylor falou, caminhando até ele para lhe dar um beijo no rosto.
— Sim, parei agora a pouco pra comer um sanduíche no Pink's.
— Não pode viver de fast-food, Doutor. — afirmou, e Taehyung sorriu, assentindo.
— Está certa. Mas só hoje não tem problema. — Coçou a nuca, antes de deixar as mãos afundarem no pelo macio de Jim Morrison.
Eu era só a testemunha de uma vida que não me cabia mais.
— Estou pronta, se quiser ir. — falei, desviando a atenção dos dois.
— Está ficando tarde, é melhor você descansar mesmo. — Taylor disse, sua mão me puxou para perto. — Venha amanhã, tem algo que quero muito te mostrar. — O sussurro em meu ouvido, durante um abraço apertado, acendeu a fagulha da ansiedade.
Assenti.
Nos despedimos na varanda.
Caminhei até o carro de Taehyung em um silêncio quase religioso, a rua quieta parecia abandonada, absorta em uma quietude pouco usual. A calmaria que antecede a tragédia.
Foi justamente pelo barulho do motor do carro que surgia no fim da rua, passando lentamente por onde estávamos, que soube o que viria em seguida.
Nem mesmo o tempo, qualquer preocupação que tivesse a respeito daquilo poderia afetar o fato de que nesta ou em outra encarnação, seria capaz de evitá-lo para sempre. Enquanto ele vivesse, seguiria me assombrando em vida, em carne e ossos. Meu inferno e castigo, materializados.
Os faróis do carro se apagaram e a mão de Taehyung procurou a minha no espaço vazio que nos separava ali, no jardim de Taylor. Seus dedos estavam quentes demais quando alcançaram os meus.
A cabeça do motorista pendeu diante da janela do passageiro olhando fixamente para nós. Meu coração se apertou como se uma manopla invisível tivesse se atravessado em meu peito e espremendo-o entre os dedos com toda força até as bordas escaparem por entre as laterais.
A luz da rua deu forma aos traços familiares de um rosto que conhecia de uma vida inteira; olhos, boca, nariz e uma boa aparência que só uma vida decente fora daqui era digna de oferecer.
Não precisou muito para reconhecê-lo em meio a penumbra da rua; aqueles olhos ainda gelavam meus ossos, petrificavam minha alma.
A mágoa tinha um rosto e para mim, se tornou o seu.
O homem no carro era Yoongi.
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N/A: Última atualização de 2021!
Uau. Passou muito rápido.
Eu queria agradecer a quem continua acompanhando e segue aqui, comigo, sem desistir da minha filha mais velha. Sério, tirarei as próximas duas semanas para responder os comentários, finalmente estarei de férias (ufa!) e vou aproveitar o tempo livre para vir aqui conversar um pouquinho com vocês! De verdade, os comentários de vocês me motivam bastante.
Ah, antes de mais nada, queria explicar um pouquinho sobre a localização territorial de Roseville. Como vocês sabem, Roseville é uma cidade fictícia (mas Sofi, não tem uma cidade com esse nome lá nos Estados Unidos?), embora exista uma cidade com o mesmo nome e eu não soubesse disso quando a criei, de toda forma, ela é meramente ficcional. E assim como ela, a costa de Cotton-Cape também. Enquanto planejava a ambientação, procurei lugares para encaixar Roseville ali pelos Estados Unidos, depois de muita pesquisa, acabei criando esse condado de mentirinha que também traz uma história importante: já foi motivo de disputa territorial de dois estados. Roseville está estrategicamente posicionada em um lugar próximo ao litoral e também, fazendo parte da zona algodoeira americana. Claro que não poderia me esquecer dos pomares de laranja, vocês sabiam que perfumes cítricos atraem borboletas? Deixo uma reflexão por aqui.
Só para esclarecer caso alguém procure no mapa e não encontre nem rastro desse lugar: ele existe só aqui, no meu coração. (e no de vocês também)
Mas vamos às fofocas, vocês sentem que rola um clima entre o Taehyung e a Ju? Os dois tem bastante história, não é? Hum.
Ano que vem Badlands terá um ritmo de atualizações um pouco mais frequente, deixarei vocês sempre atualizados sobre tudo (o livro físico vem aí pela editora roxinha, sim!)
Dia 02 de janeiro retomamos com o capítulo mais esperado por esta autora aqui, inclusive, programado para o dia do meu aniversário por motivos de: é o meu favorito.
A gente se encontra ano que vem e desde já, desejo boas-festas para vocês, um ano novo maravilhoso. Que 2022 seja especial, lindo, inspirador, feliz e saudável para nós.
À meia-noite estarei com vocês no meu coração, sério.
Eu amo vocês pra caramba! Obrigada por mais um ano compartilhado comigo.
— Com muito amor, Sô.
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