Parte 01 - As Fachadas
— Lá vem elas, lá vem elas! — diz Che, cutucando minhas costelas.
— Eu estou vendo, pô! — dou um tapa na cabeça dele, em retribuição às cutucadas.
Ele dá um gole na cerveja, enquanto eu puxo um trago do cigarro. As duas vem se aproximando, andando distraídas no meio da calçada, e em segundos vão passar por nós dois.
Estou me sentindo meio incomodado com a situação, por mais incrível que isso possa parecer. De repente o dia frio do outono paulista ficou mais quente do que o Rio de Janeiro no verão e a fumaça do cigarro quase me faz engasgar. O que é ridículo, já que eu fumo desde que eu fiz quinze anos. Três anos e meio de vida de fumante. Mas quem é que está contando?
A culpa de toda essa indisposição e incomodo vem logo ali, caminhando pela calçada como quem não tem nenhuma preocupação.
Em teoria, já devia estar acostumado com a situação. Garotas sempre passam por aqui, principalmente quando as aulas acabam, e a maior parte delas nos dá moral, até mais que essas duas. Porque a maior parte delas nos acha "simplesmente perfeitos", como eu já tive que ouvir delas algumas vezes. Para mim, é caso de terapia. Que eu também devia fazer, diga-se de passagem. Acho que elas veem desafios na gente. A possibilidade de nos "consertar". Só porque Che vive com uma lata de cerveja e aquele alargador, enquanto eu filo um cigarro atrás do outro e tenho o corpo cheio de tatuagens. Aparentemente isso é um imã de mulher, como é que a gente ia ter noção?
Só somos dois ferrados mesmo.
A questão é que essas duas são diferentes. Na primeira vez que passaram na nossa frente, nem desviaram seus olhares para nós. Che teve que forçar seu caminho para o coração das moças, com um vocabulário de cantadas digno de um Dom Juan de araque.
Mas mesmo que essas duas garotas já tenham passado por aqui um milhão de vezes (todo dia depois da aula, por quase seis meses – mas, novamente, quem é que está contando?), eu não consigo me acostumar com a situação. Aliás, parece que a cada dia que passa, eu fico menos acostumado.
— Ô lá em casa! — diz Che, logo em seguida de um fiu-fiu, quando uma delas para na nossa frente.
— Ô Humberto, quer parar de brincadeira? — responde Margarida, a "uma delas" em questão, enquanto ele se levanta dos degraus que estamos sentados.
Tenho a impressão de que vou deixar o cigarro escorregar por meus dedos sem querer a qualquer momento, quando ficamos naquela situação de sempre. Eu e Isabela, a outra garota, trocando olhares constrangidos, enquanto Che – que na verdade se chama Humberto, mas detesta e por isso adotou o nome do revolucionário — e Margarida se envolvem numa agarração sem fim.
E isso tem acontecido bem frequentemente, pelo menos pelas últimas três semanas, mesmo que Che continue me dizendo que os dois não estão namorando.
— Fala sério, meu! — Reclamava ele, quando eu palpitava sobre o assunto. — E eu lá com cara de se amarrar com uma mina só?
Só que com certeza eles vão namorar, apesar de ele ainda dar uns pegas naquela outra guria da rua de baixo. Só que eu vejo como os olhos dele brilham quando ele vê Margarida, ou até mesmo fala dela. Se ele está enganando alguém, é só a si mesmo. Outro caso de terapia, é claro.
— Ô Garibaldi, vou levar Margarida lá na casa dela — me diz ela, com os braços cheios de livros dela.
Depois eles não vão namorar. Tá, e a Sydney Sweeney não é gostosa.
— Tanto faz – respondo, puxando mais um pouco do cigarro.
Detesto quando ele me chama de Garibaldi, apesar dele me chamar assim 99% das vezes. Por ter adotado o apelido Che, ele acha que eu gosto de ser chamado de Garibaldi (um também revolucionário, só que italiano). Eu preferia mil vezes ter o apelido de qualquer outro revolucionário, de qualquer outra nacionalidade. Mas por algum motivo, o insano do Che resolveu que Garibaldi seria uma boa ideia, já que eu sou metade italiano.
O que ele não se deu conta foi que, justamente, a minha parte italiana é a parte da minha mãe. E existe um motivo para eu negá-la. Minha genitora abandonou a mim e a nossa casa quando eu tinha 15 anos. Sem nem ter tido a decência de me informar antes de fazê-lo.
Não tem nada de maneiro em ter esse apelido. Não quando toda vez que ele sai da boca de alguém, você lembra do bilhete de poucas palavras, com caligrafia apressada e com algumas palavras em italiano que sua mãe deixou para você antes de ir embora para nunca mais voltar. Palavras que seu pai suavizou para você, mas que o dicionário esquecido te fez entender letra por letra.
Dou um puxão na minha jaqueta, só para que a gola dê uma subida, antes de me levantar também. Jogo o resto do cigarro no chão e piso vagarosamente nele, enquanto pego o case da minha guitarra do chão. De costas para Isabela, o mundo parece como sempre foi. Eu não tenho emprego, sou coberto de tatuagens e evito o máximo possível ficar em casa. Meu pai trabalha fora da cidade de segunda a sexta, e por isso aluga um apartamento por lá, me deixando morar sozinho na nossa casa daqui. Acredito que ele ache que eu sou um exemplo de filho, mas a verdade é que eu só faço bosta. Bebo, brigo e até tive que dormir algumas noites no xadrez, até provar que era inocente de certas atrocidades cometidas por aí. Porque, sabe como é, você simplesmente não pode ter um apelido, tatuagens e um violão nas costas sem ser considerado baderneiro.
E, verdade seja dita, às vezes eu era um baderneiro mesmo.
Só que quando eu viro de frente para rua e a vejo já do outro lado dela, na outra calçada, andando apressada, com seus cabelos alaranjados balançando, alguma coisa estranha acontece, como sempre acontece quando seus olhos azuis gelados ficam me encarando. Tenho vontade de ser um cara perfeito. Bonzinho, bem arrumado, de roupas limpas e sem estarem furadas. Alguém que um dia ela não teria vergonha de apresentar aos amigos e aos seus pais. Mas eu não consigo ser um mocinho... Talvez eu tenha nascido para ser o vilão.
Arrumo a Joplin nas minhas costas, observando as nuvens cinzas no céu. Deveria estar na faculdade, mas só pensar em aprender Direito, sinto um calafrio. Nada poderia ser mais diferente do meu perfil, e nada poderia deixar meu pai mais feliz do que seu filho ser um advogado. Dava vontade de rir. Mas era de desespero.
Em segundos estou em casa. Começa a chover assim que eu coloco Joplin em um dos sofás. A tevê ficou ligada sem querer, e o jornal está dando as notícias do mundo. Terríveis, como o tempo. Apesar de Che ter adotado esse apelido por conta própria, eu não consigo ver a menor semelhança entre ele e o Guevara verdadeiro. Che-Humberto mal compartilha dos mesmos ideais que eu. Na verdade, eu nem sei se ele tem algum sonho, além de ver o São Paulo campeão do mundo de novo.
Tenho vontade de fumar mais um cigarro para esquecer tudo e, especialmente, apagar a imagem de Isabela. No lugar de filar mais um, coloco um LP velho da Janis Joplin (não é à toa que minha guitarra é chamada de Joplin) e me sento no beiral da janela fechada. É esquisito pensar isso, mas a música me faz sentir melhor. Fica sendo só eu e ela, mais ninguém. Num mundo paralelo, numa bolha. Num lugar onde minha mãe não foge de casa, meu amigo não é um sem ideais e num lugar onde eu consigo olhar para garota que eu supostamente me sinto atraído e não sinto que não sou o que ela merece. A música, especialmente a música de Janis, me faz sentir bem. Toda a solidão que me toma na maior parte das vezes, é levada embora pela potência dessa voz.
Provavelmente "bad boys" não escutam Janis Joplin.
Sorrio comigo mesmo, pensando em como as fachadas das pessoas são diferentes de seu interior. Imagino como deve ser o interior de Isabela...
Acredito que tão bonito quanto sua fachada.
ØØØ
Nota da autora:
Feliz dia dos namorados! Meu presente para vocês é esse continho, um dos primeiros que escrevi na minha vida! Deve ter sido escrito entre 2007 e 2009, quando eu era apenas uma adolescente cheia de sonhos de ter livros publicados. Apesar de ser um pouco datado, eu gosto muito dele! Todos as partes já estão disponíveis, então é só continuar lendo para ver o desfecho! até já e obrigada!
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro