- VI -
Quando chegaram à margem oposta do Rio Izi'avon a estrada fazia uma imensa curva em direção ao sul por conta do relevo que se tornava mais íngreme a medida que se aproximavam da Muralha Viridente. De maneira que quem quer que seguisse o curso de pedras lavradas da Via de Maghidom evidentemente deixaria o Bosque de Kēndapradiz às costas. Todavia era ali o ponto em que Erastos indicara que o cocheiro deveria parar para que descessem da carruagem.
– Aonde vamos, Mestre? – indagou Alaya segurando fortemente Itay, sua aia, pelo braço.
– Nada tema, yunim? – respondeu com uma estranha satisfação, da qual a jovem princesa e sua aia de modo algum podiam atinar a causa. E depois de um silêncio longo o suficiente para angustiar as duas jovens: – Abrandai vossa ansiedade, pois conheço este lugar como às palmas das mãos. Passei a vida toda percorrendo essas paragens. Tanto é que, por ali, seguindo ao sul, margeando o Izi'avon, está a senda que leva a minha cidade natal. Nada mais que uma mera aldeiazinha se comparada às torres brancas de Thalindari...
– Então nos levará a tua terra? – indagou Alaya.
– Eu não seria tão pretensioso, yunē. Nada há que valha a pena mostrar a uma princesa de Aslabad em Mlaksīl, senão que seus rudes artesãos e comerciantes indolentes. É para um lugar mais elevado que pretendo vos guiar.
Num primeiro instante, não pareceu claro a Alaya o que ele queria dizer sobre lugar mais elevado. Mas à medida que o terreno se tornava mais inclinado na direção dos montinhos que se erguiam no Oeste, ela entendeu que Erastos falava deles. E isso ela achou realmente engraçado, pois vinha de um país de rochas e penedos, cujas cidades se aninhavam nos contrafortes das montanhas mais altas que existiam no mundo de Aldamā, os Alpes Hýbricos, os quais, embora estivessem do outro lado do Mar Interior, podiam ser vistos, apesar de a própria costa estar tão afastada a ponto de não ser percebida por seus olhos. Disso ela riu consigo mesma, sem deixar que ele soubesse o motivo.
E vendo a jovem de corpo tão pequeno subir com agilidade pela trilha que levava à Muralha, Erastos se sentiu satisfeito e admirado por entender que ela não era a garota mimada que lhe pareceu no primeiro encontro dos dois. E ao vê-la sorrir, como se se agradasse de estar naquele lugar, ele soube que Alaya de certa maneira era alguém como ele, alguém que sabia apreciar as coisas realmente abundantes de aythir e que por isso se enfadava da convivência com as pessoas e de seu tumulto.
O que havia entre os dois, no entanto, não era nada além de impressões surgidas no coração de cada qual, tributárias de suas próprias visões da vida. A verdade é que Albion não teria se iludido e nem Edril ou Imeral teriam se deixado levar pela mera beleza da Muralha.
Quantas maldições no mundo não se assemelham ao bem? E quantos jovens inconsequentes não caem em seus ardis? Mas o Mal, sabiam os misteriosos senhores de Thalindari, o Mal está sempre a espreita.
*
Em parte história, outro tanto lenda... Quem saberá discernir depois de tantos séculos passados uma coisa da outra? A fantasia dos mortais sempre se encarrega de preencher as lacunas, onde os escribas falharam ou onde o tempo apagou as memórias.
Conta a lenda que Erastos se agradou de Alaya, não tanto talvez se comparado à Kanda, de divinas feições, mas seguramente um pouco mais que de seus pares entre os ghmanim e os maghim.
E ela com ele à destra, do alto do terceiro monte da Muralha Viridente, sorriu e espantou-se da visão de Thalindari, majestosa às margens do Golfo do Magos. E pensou que Aslabad nada mais era do que um amontoado de pedras estéreis fustigadas diariamente por Seylon, enquanto a Cidade Lótus era a escandalosa prova da determinação do homem, capaz de sobrepujar os primevos e quiçá os deuses.
De tudo que viu a jovem princesa se encantou, pois não havia na terra e nem nos mundos acima lugar tão belo.
Então, não como quem tivesse se enfadado, mas como alguém que desejasse fruir ao máximo de algo recém-descoberto, Alaya interpelou Erastos:
– Mestre, será que podemos conhecer o bosque que circunda a falda destes montes? Pois me parece esplêndido e certamente que não temos em Aslabad algo que se lhe assemelhe.
Ele hesitou um instante, porque certas memórias de lá o afligiam, mas o tempo de fato tanto cura quanto engana e ele assim mais uma vez pôs de lado a prudência:
– Certamente, yunē! E vale dizer que ali há um magnífico jardim digno das deidades dos mundos acima.
E a medida que desciam da Muralha e tomavam o caminho do Bosque de Kēndapradiz, a mata se tornava mais densa e a copa das árvores mais resistentes às flechas de Seylon. Não que houvesse escuridão, não sob o poder do deus-sol em passeio solitário pelo azul, mas sombras e penumbra e, no fundo delas, sons desconhecidos do Bosque emergiam assustadores.
– Não devemos avançar mais, princesa! – Alertou Itay, a aia. – Quem há de saber o que se refugia nesse lugar?
– Ora! Não sejas medrosa! – disse em tom de zombaria Alaya. – Jamais vi um bosque tão soberbo! E quando voltar à Aslabad, quero levar a memória de tê-lo conhecido um dia.
– Sim, sim! – concordou Erastos. – Ademais, este bosque existe desde antes de Thalindari e diz a lenda que foi um presente de Aldamā a Kanda, por isso o seu nome Kēndapradiz, "o Paraíso de Kanda". Certamente que há de despertar curiosidade o relato da yunē sobre esse lugar perante os da sua gente.
– Adorável! Não é mesmo, Itay?
A dama de companhia não concordava evidentemente e, diante da própria derrota, agarrou a princesa pelo braço se amparando nela como uma criança assustada.
– Ora! Que é isto, Itay? Larga meu braço. Pareço uma criminosa arrastando grilhões por aí.
– Tenho medo desse lugar, alteza! Por favor não me obrigue a entrar nesse Bosque. Tenho calafrios só por espiá-lo daqui.
– Decerto, Alteza! – interrompeu Luhir, o guarda pessoal da princesa. – Não é prudente entrar num lugar assim. Dizem que Tamsa, a escura entre os primevos, gosta de rondar as florestas antigas e que é a mais violenta e cruel entre os irmãos do pai-dragão Jamasur.
– Tu também, Luhir? – indignou-se Alaya. – Tal coisa eu não esperava de um guarda palaciano. Mas se quereis, não vou obrigá-los a ir, fiquei aqui os dois, pois eu e o mestre mago Erastos prosseguiremos.
– Não é correto, Alteza! – hesitou o guarda.
– Eu decido o que é correto! – Deu sua última palavra a jovem princesa. – Não sou tirânica a ponto de obrigar-vos, mas tampouco hei de abrir mão da minha vontade!
Imponente e majestática era Alaya odShwali, qualidades de quem certamente um dia governaria sua raça e, por mais que quisessem refrear seu ímpeto, assim seria: sua vontade era a sua vontade e só o próprio rei a teria dissuadido.
Dessa maneira, permaneceram à orla da estrada de Maghidom Itay e o guarda pessoal da princesa, de onde divisavam ao mesmo tempo a penumbra do Bosque, em que aquela a quem deviam zelar adentrara na companhia do jovem mago aprendiz, e a ponte de pedras do rio Izi'avon, com Thalinadari imponente na outra margem.
Tão altas quanto imensamente belas eram as árvores do Bosque de Kēndapradiz, nascidas ainda antes da Primeira Era dos homens, quietas observavam o fluir da Gestas, acumulando sob as muitas camadas de seus largos troncos os signos de cada uma delas. E Alaya imediatamente compreendeu esse fato, quando penetrou naquele domínio de primevos e deuses, dando-se conta do quão sagrado era, ainda que não pudesse decifrar a estranha tecitura de aythir, cuja trama se espalhava pelos galhos, troncos, folhas e raízes das velhas árvores que persistiam altaneiras em espiar no meio das sombras os incautos invasores. Com efeito, até mesmo as gramíneas que formavam como que um tapete sobre o solo úmido ajudavam a compor a teia de fios inumeráveis que sustentavam aquele pequeno mundo.
Dessa maneira, a jovem princesa estava imensamente excitada quando chegou à clareira de lírios-da-lua, onde uma estranha luminância dava conta de que uma presença dos mundos acima já havia estado naquele lugar algum dia. Por isso ali não havia escuridão ou sombras, mas, embora a copa das árvores formasse um dossel por sobre suas cabeças tudo a volta podia ser visto com clareza meridiana.
– Oh, Mestre! É definitivamente esplêndido! Mas não posso crer que ainda estamos em qualquer lugar de Aldamā! Antes devo ter sido levada aos mundos acima! – Sua comoção era tamanha que seus imensos olhos verdes se encheram d'água. E isso... também isso fez Erastos satisfeito.
Nesse instante, o mago aprendiz entendeu a extensão do poder da bênção de Kanda a Branca e se sentiu feliz de ser assim conduzido por caminhos tão elevados. Que ghmanim sonharia em estar na presença de deusas ou em jardins de lírios-da-lua ou quiçá ser comensal de magos e guia de princesas estrangeiras? Nenhum certamente, pois viviam suas vidas simplórias sem suspeitar sobre o que havia no mundo além das divisas de suas aldeias. Erastos era diferente deles, sempre soube disso e agora podia constatar que estivera certo toda sua vida. Havia grandeza em seu espírito que não cabia nos estreitos limites de sua aldeia e nem mesmo em Thalindari ou por toda extensão de Maghidom aquém e além-mar.
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