10 anos depois - Madrugada de segunda
A água batia contra os telhados das casas amontoadas como peças de lego, uma encaixando na outra, agarradas como uma colônia em processo de crescimento. A chuva estava tão forte que alguns dos moradores, apesar de serem ricos o suficiente para terem certeza de que suas telhas caras e sem buracos não ofereceriam risco algum para a integridade da estrutura complexa a qual viviam dentro, ficassem com medo. Poucos seres vivos tiveram a audácia de colocar o pé para fora de casa naquela noite, a não ser os que estavam devidamente protegidos em seus veículos e eram ocupados demais para evitar encarar aquela chuva, ou as criaturas que tinham vivido demais (talvez de menos) para se importarem em morrer de pneumonia.
Duas das três únicas criaturas as quais se encaixavam na segunda descrição eram um gato e um fantasma.
Os dois estavam em cima de um dos telhados das casas coloridas e prepotentes de Erulla Alta, sendo protegidos pela cobertura de uma varanda minúscula. O gato dormia despreocupadamente, a pouca luz da lua e dos postes de luz iluminando seu pelo cinza e sujo, o fazendo parecer tão fantasmagórico quanto sua única companhia. Já o outro, alma atormentada de um garoto de 14 anos, prosseguia em seu ritual já muito bem estabelecido em sua década de pós-vida o qual se resumia em abraçar as próprias pernas e esperar que o tempo passasse. Aquela varanda era um bom lugar para esperar o tempo passar. Estava bem no alto de tudo onde se podia ver a cidade e seus pontinhos brilhantes de luz lá embaixo, como se fosse um reflexo do céu, que segundo os rumores que ele havia ouvido anos atrás, já fora salpicado de estrelas. O espectro conseguia ver a rotatória de lá de cima, mais cheia de carros do que se podia imaginar em um clima e hora daquelas. Eram quatro da manhã de uma segunda-feira tempestuosa, e a cidade já estava tão acordada que era de se perguntar se uma hora ela realmente dormia. Não era como se fosse surpresa. O céu tinha a mesma cor rosada durante a noite e o dia à tempo suficiente para que as pessoas tivessem desaprendido o conceito de que de madrugada é hora de estar na cama.
Então, aconteceu.
Igual havia acontecido mais vezes do que o companheiro do gato queria que acontecesse nos últimos anos, primeiro surgiu uma luz mínima a qual ninguém se importou muito. Ela apareceu no ar, três metros acima do chão, no meio da pista. Os carros passaram por ela, sem que ninguém se desse o trabalho de se questionar sobre a sua existência, apesar de que todos já deveriam ter aprendido a questioná-la depois de tantas tragédias. A luz cresceu, aos poucos, como um farol de um carro em movimento, e logo sumiu, como se nunca houvesse existido, para que voltasse em maior intensidade, fazendo as gotas pesadas e desesperadas de chuva brilharem como espelhos. E depois da luz, veio a explosão.
O fantasma podia não se lembrar de seu próprio nome, nem de boa parte da sua vida. Mas daquilo ele lembrava. Todas as explosões que se sucederam depois do Dia foram iguais, sem exceção alguma, e aconteceram nas mesmas condições. Pequenas, sem muito impacto, em alguma zona urbana movimentada. Alguns mortos. Alguns feridos. Algumas perdas.
O gato ao seu lado acordou em susto, e correu para um outro telhado, se encharcando com a chuva. Talvez fosse o barulho. O fantasma preferia acreditar que era pelo barulho, e não por algum trauma que o bicho pudesse ter desenvolvido depois de ter perdido tudo para o primeiro de todos aqueles acontecimentos. Ele esperava que gatos não se abalassem muito com esse tipo de coisa, já que pelo o que havia notado com sua experiência, eles eram os únicos que conseguiam vê-lo.
E estar morto era solitário.
E desesperador.
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