Capítulo 14
Alguns séculos antes...
- A ter uma noite agradável, milady?
A filha dos Duques de Greenwich desviou o olhar da janela, o sorriso desenhando-se facilmente nos seus lábios. Os cabelos cor de bronze caíam pelas suas costas em caracóis perfeitos, o vestido rosa pálido emoldurando-lhe o corpo delicado, os olhos azuis fitando a pessoa que se dirigia a si com uma ingenuidade e gentileza que deixavam qualquer um confortável na sua presença. Com uma vénia breve, Theresa saudou o cavalheiro educadamente, com evidente entusiasmo ao dizer:
- Doutor Cullen! Que agradável surpresa. Não tinha conhecimento de que regressara do Novo Mundo. - a sua expressão alterou-se, a preocupação dominando-lhe os traços delicados do rosto - Aconteceu alguma coisa para o doutor regressar? Viu uma embarcação chegar há uns dias?
Carlisle Cullen abanou a cabeça, observando os ombros da jovem descaírem, aliviados. Era do conhecimento de todos na Corte que a filha dos Duques de Greenwich estava prometida a um Capitão do Exército Britânico, um dos poucos noivados concebidos por amor e não por arranjo matrimonial. O jovem provinha de boas famílias e era devoto ao seu Rei e à sua Pátria, além de adorar a jovem Theresa. Possuía todas as características que agradaram os Duques, para além do amor que a filha nutria por ele.
- Está tudo bem, dentro do possível quando uma guerra acontece. - respondeu o cavalheiro, esboçando um sorriso triste - Infelizmente, fui chamado à Corte por outras razões. Espero que não me leve a mal que não os partilhe consigo, Lady Theresa.
- Oh sim, claro! Assuntos da coroa, estou certa? - o mais velho assentiu e ela abanou a mão, num gesto de desinteresse - Não sou de me meter na vida dos outros.
Carlisle conhecera Theresa quando ela tinha apenas cinco anos. A menina preambulava pela Corte desde muito cedo, já que a sua mãe, a Duquesa de Greenwich, era amiga íntima da Rainha de Inglaterra. A criança era sempre bem-vinda no palácio porque era uma menina educada, gentil, gostava de ficar junto das damas em vez de ir correr para o pátio ou fazer algum disparate. Era doce, bondosa e uma lufada de ar fresco para a Rainha. Sendo Carlisle o médico da Corte, dispensado quando a guerra rebentara a pedido do mesmo, tinha-se cruzado com a jovem muito cedo... E, como todos, encantara-se por ela.
Theresa também gostava muito do Doutor. Ao contrário dos restantes membros da Corte, considerava Carlisle um amigo, alguém com quem podia falar de informalmente de ciências, literatura, astronomia... O que quisesse. As mulheres da alta sociedade deviam ser educadas, belas e preparavam-se a vida toda para serem boas esposas, boas mães, cumprir os seus deveres. Não eram educadas para a cultura, para o conhecimento, para serem académicas como os homens podiam ser. A jovem Theresa não era exceção, apesar dos pais permitirem que ela tivesse professores de todas as matérias, lesse os livros que quisesse e fosse mais do que apenas uma dama bonita. Carlisle Cullen era das poucas pessoas que conhecia que partilhava o seu amor por livros, pelo saber e o único que sabia que o sonho da jovem era enveredar pela medicina, tal como ele.
Ela não sabia o que ele era, apesar de saber que ele era diferente. Não frequentava os eventos que ocorriam durante o dia, não se alimentava durante todo o evento e, por vezes, apanhara-o a não respirar por um período de tempo muito longo. Atenta e inteligente, Theresa sabia que ele não era completamente humano mas nunca o questionara, apesar da curiosidade. O sobrenatural era obra do Diabo e bruxas eram queimadas pela Inglaterra sem misericórdia, sem a confirmação de serem realmente bruxas. O que quer que Carlisle fosse, seria considerado um monstro e iria diretamente para a fogueira.
Embrenharam-se os dois numa conversa amena sobre cultura, arte, medicina, entre outros. O baile decorria ao seu redor e Theresa não sabia exatamente dizer qual era a ocasião. Carlisle, por seu lado, permitiu-se descontrair, apreciando uma boa conversa depois de tantos meses a assistir ao rebentar de uma guerra.
Durante a conversa, Carlisle observara a jovem dispersar diversas vezes, ora para ajudar um senhor mais velho a sentar-se, ora para cumprimentar e sorrir abertamente para quem viesse ter consigo, ora para acenar em direção dos pais, que dançavam alegremente no centro do salão. Theresa era uma alma bondosa, como haviam raras. Carlisle recordava-se de um dia, não deveria ter mais de sete anos, ela correra esbaforida na sua direção, pouco se importando com a presença do Rei. Trazia um pequeno pássaro na mão com uma asa partida e estava desesperada, implorando para que o doutor visse a criatura e a salvasse. Apesar do pouco conhecimento que tinha em medicina animal, Carlisle fizera o que pudera e, quando a voltara a ver meses depois, ela viera novamente ao seu encontro a correr apenas para lhe contar com alegria que o passarinho regressara são e salvo à Natureza.
Talvez tivesse sido naquele momento em que ela lhe mostrara a pequena ave e lhe implorara para que ele a salvasse. Ou talvez tenha sido nos anos seguintes, nas vezes em que se tinham cruzado, que Carlisle pensara que, se pudesse ter filhos, gostaria de ter uma filha como Theresa.
Alguém adentrara pelo Salão, o ruído do bater das portas chamando todos à atenção. Apesar do franzir de sobrolho de desagrado do Rei, o soldado que interrompera o baile aproximou-se de Sua Majestade, beijou-lhe a mão rapidamente e sussurrou-lhe algo ao ouvido, algo tão atroz que o Rei empalideceu. Lordes e damas sentiram a tensão de Sua Majestade, murmurando entre si. A Rainha pousou a mão no ombro do seu marido, encarando-o com preocupação. O Rei pigarreou, olhando para a Corte com pesar, anunciando:
- A embarcação que partiu há poucos dias para o Novo Mundo... Foi derrubada por uma tempestade. Nenhum dos soldados que iam a bordo... Sobreviveu.
Carlisle sentiu o desfalecer de Theresa antes de a ver, segurando-a com firmeza para que ela não caísse. A jovem encarou-o, o rosto como o de um cadáver, os olhos azuis vazios e desesperados, os lábios tremendo.
- Tessa! - chamou Lady Greenwich, a mãe da jovem, aproximando-se da filha rapidamente.
- Querida, lamento muito. - disse Lorde Greenwich, pegando na mão da jovem.
Theresa encarou os pais sem realmente os ver. Matthew... O seu noivo partira naquela embarcação. Ela sabia o que aquilo queria dizer, ela sabia que o mais certo era que Matthew estivesse... Mas ela não conseguia aceitar. Somente quando a própria Rainha se encaminhara para junto dela, ciente do que se passava, e lhe dissera:
- Querida, eu confirmei... Sir Matthew, ele... Ele não está mais entre nós. Lamento muito a vossa perda.
Lágrimas escorriam pelo rosto de Theresa, sabendo no seu coração que era verdade, sentindo o vazio de quem perdera o amor da sua vida. Abanou a cabeça, sentindo-se incapaz de respirar e libertou-se dos braços da mãe que a tentavam consolar. A dor era imensa, tornando-a irracional. Queria fugir, queria correr e foi isso que fez, pegando na barra do seu vestido, empurrando quem quer que estivesse à sua frente, pouco se importando com a etiqueta, com a má educação, com o politicamente correta.
Ela sentia-se perdida.
O evento ocorria numa das mansões de algum Duque ou Conde que Theresa não prestara atenção suficiente para saber quem era. Estava situada à beira de um precipício e as ondas batiam ruidosamente nas rochas, a espuma da maresia encharcando lentamente a jovem que corria ao seu encontro. Desolada, Theresa soltou um grito, um grito grotesco, emotivo, doloroso. Os cabelos despenteados, o vestido amachucado por ter corrido, a beleza arruinada, a postura esquecida, apenas uma jovem apaixonada que perdera o seu companheiro. O homem com quem iria construir uma família, viajar pelo mundo, partilhar a vida. O seu melhor amigo. O seu amor.
No dia em que Matthew anunciara que iria para o mar para as conquistas do Rei, Theresa sequer o tentara impedir, embora temesse por ele. Sabia que aquela era a sua vida, o amor pela pátria entranhado no sangue, o seu destino. Ele prometera-lhe que regressaria, vitorioso, e casariam no dia a seguir.
Agora, ele nunca mais regressaria.
- Tu prometeste... - chorou Theresa, soluçando sofregamente - Tu prometeste! Eu não consigo... Sem ti, eu não consigo.
A dor era demasiada para ela aguentar. Cega, olhou para as ondas, sentindo o desespero tomar conta dela, a necessidade de parar a dor sobrepondo-se ao instinto básico de sobrevivência.
Ela atirou-se.
☽ ✷ ✵ ⟡
Dizem que quando se está à beira da morte se tem vislumbres da vida. Theresa não vira à sua vida, vira os rostos das pessoas que amava. A mãe. O pai. Matthew. Não eram muitos mas eram o seu mundo. Pensou no desespero da mãe quando soubesse da sua morte. Iria partir o coração ao pai.
Ela não fizera de propósito. Só queria acabar com a dor, talvez escutar a voz de Matthew uma última vez. Sentia-se culpada por provocar sofrimento aos pais. Tentava a custo lutar pela vida mas as ondas eram mais fortes, o vestido demasiado pesado, os pulmões enchendo-se depressa demais de água salgada. Estava a morrer. Não estava desesperada, estava tranquila porque sabia que Matthew estaria do outro lado à sua espera... Mas ao mesmo tempo tinha os pais...
Lutou com tudo o que tinha mas depressa se deu por vencida, sentindo o oceano levá-la.
☽ ✷ ✵ ⟡
Pensou que estava a sonhar quando sentiu braços firmes rodearem-na e arrastarem-na para terra. Sentiu a areia debaixo das suas costas mas era uma sensação longínqua, a vida escapando-se lentamente do seu corpo. Abriu os olhos, vendo vagamente os contornos do rosto familiar de Carlisle, que a abanava com veemência e tentava aquecê-la com as suas próprias roupas, embora estivessem tão molhadas como as suas. Ela iria morrer, senão pela água mas pelo frio.
Carlisle, no entanto, não estava disposto a deixá-la morrer.
- Theresa, não pode morrer. O mundo precisa de si, de mais almas bondosas como a sua... O seu noivo não iria querer que morresse. Tem tanto para dar ao mundo... Por favor, por favor, deixe-me salvá-la. Eu... Eu posso oferecer-lhe uma segunda oportunidade. - Carlisle praguejou, vendo a pulsação da jovem diminuir a pique - Por favor, Theresa... Não posso ficar a ver-te morrer.
Theresa não queria morrer. Não queria deixar que os pais sofressem pelo seu desgosto. Não queria fazê-los sentir a dor que ela sentia por ter perdido o seu amor. Eram uma família unida, onde reinava o amor acima de tudo, eram dois seres que lhe tinham dado tudo e permitido que ela fosse o que quisesse.
Ela sabia que poderia estar a fazer um pacto com o próprio diabo. Afinal de contas, Carlisle não era humano... E ela também não seria.
- Ajude-me... - sussurrou, debilmente, apertando o pulso de Carlisle com toda a firmeza que conseguia.
Viu o alívio no olhar de Carlisle. Viu-o abrir a boca, exibir os caninos afiados e soltou um grito quando ele os fincou no seu pescoço. Depois, sentiu o fogo, a dor, o desespero. Berrou, choramingou, lutou contra a dor absurda que sentia, sentindo a sua mente à beira da loucura. O seu corpo petrificava lentamente, o sangue parou de fluir e o seu coração, o mesmo coração que batia fortemente pelas pessoas que amava... Parou.
Quando abriu os olhos, o azul-ciano das suas íris desaparecera, substituídos por um forte carmesim.
- Como te sentes, Theresa? - questionou Carlisle, preocupado ao ver uma recém-nascida tão calma.
- Tessa. - corrigiu-o, com o mesmo sorriso de sempre - Trata-me por Tessa. Obrigada por me salvares a vida mas... - a voz cristalina arrastou-se, a garganta seca - O que somos?
Carlisle pousou uma mão sobre o ombro da sua primeira filha, dizendo:
- Somos vampiros, Tessa.
☽ ✷ ✵ ⟡
Séculos depois...
- Jacob chegou. - anunciou Carlisle, observando Tessa rodar o rosto depressa demais, o seu corpo respondendo de imediato ao odor característico do Black - Filha... Tu realmente importas-te com este rapaz, não é?
Tessa pestanejou, esboçando o mesmo sorriso dócil que exibira quando a conhecera pela primeira vez, tantos séculos antes.
- Ele é meu amigo. Tem sido uma peça fundamental para mim ao longo destes meses desde... Desde a separação.
- Amigo?
Carlisle conhecia a filha bem demais. Os olhos brilhantes, a devoção, a forma como torcia as mãos de nervosismo pela situação que se avizinhava... Temia por ela. Tessa tivera o coração partido por duas vezes e, apesar de eterno, não sabia quantas vezes mais ela aguentaria um desgosto de amor. Ele amava-a demais para vê-la sofrer novamente.
- Achas que ele vai lidar bem quando souber sobre a gravidez da Bella? - murmurou, preocupada, os olhos dourados encarando o Cullen em busca de conforto e conselhos, como uma filha para com o seu pai.
- Tenho para mim que não. - respondeu Carlisle, com sinceridade - Mas tenho a impressão que estarás lá para apoiá-lo.
O rosto de Tessa iluminou-se, os olhos dourados ficados num ponto em frente, sentindo a presença de Jacob dentro da casa dos Cullen.
- Sim. Sim, claro que estarei aqui para ele. Sempre. - olhou para o vampiro, abraçando-o rapidamente- Obrigada, pai.
E afastou-se, deixando Carlisle com um breve sorriso no rosto e uma sensação de gratidão no peito por ter a oportunidade de ser pai contra todas as probabilidades.
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