Capítulo IV
Thaynara e Paloma seguiram até um dos bairros mais nobres da cidade de Fortaleza, bastante conhecido por abrigar a alta sociedade em grandes mansões e apartamentos luxuosos. Nenhuma das duas já estivera naquela parte da cidade, pois, até aquele momento, nunca antes tiveram qualquer assunto que as levassem até ali.
O endereço que haviam recebido por mensagem indicava uma grande casa de muros altos, que impressionava já por sua fachada. O portão de ferro que protegia a entrada fez Paloma se lembrar dos portões de um castelo que ela havia visto em um filme recentemente. Através dele, as duas puderam observar um jardim muito bem cuidado que se estendia até a porta da casa.
— Não vai ser fácil invadir — Thaynara comentou com Paloma, apontando para as câmeras de segurança posicionadas em dois pontos estratégicos para captar a imagem de qualquer pessoa que se aproximasse da entrada. — Além disso, tem os seguranças! — completou frustrada.
Apesar de estar em desespero para salvar sua amiga Roberta, ela sabia que não podia simplesmente invadir uma casa como aquela, só porque o informante de um traficante disse ter visto alguém que poderia ser a pessoa pela qual estava procurando.
— Não sabemos nem se podemos confiar nesse tal de Gavião. — Paloma falou quase como se conseguisse ler os pensamentos da melhor amiga. — E eu não quero ser presa por invasão. Ou melhor, eu não quero ser presa por nada! — completou no exato momento em que o celular de Thaynara tocou.
— Estou a caminho — Thaynara respondeu depois de poucos minutos de ligação, desligando e encarando Paloma com um pesar no olhar. — Era da funerária. O corpo de Amanda já está no local para o funeral. Nós temos que ir! — Antes de saírem abraçadas, Thaynara ainda olhou na direção da casa, mantendo o olhar por alguns segundos no terceiro andar, o único onde se podiam ver luzes acesas através das janelas.
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O relógio já marcava três e meia da manhã quando Fernando Augusto retornou para a delegacia. Depois de coletar o depoimento da amiga de Amanda Batista de Souza, uma das vítimas do caso que ele e seu parceiro Pedro estavam investigando, foi convocado pelo delegado para averiguar uma denúncia de roubo de carga de medicamentos. Apesar de não ser exatamente a sua área de investigação, não podia negar um pedido do delegado. No fim, ele havia conseguido interceptar o caminhão e duas pessoas haviam sido presas.
— E aí, levou quantos tiros no rabo? — Fernando ouviu seu parceiro perguntar, logo que ele entrou na delegacia, e preferiu ignorar a provocação do colega, pois sabia que, uma vez que entrasse no jogo de provocações do outro, não teria mais paz. Pedro era o tipo de pessoa que fazia de tudo para provocar e irritar todos ao seu redor, simplesmente por esporte, e apesar de Fernando considerá-lo um escroto como pessoa, sabia que o outro era um excelente policial e investigador e era por isso que ele o tinha como parceiro.
— Teria sido mais fácil se eu pudesse voar, tivesse uma agilidade fora do comum e ainda pudesse lançar rajadas de calor, por exemplo. Alguma novidade por aqui enquanto eu estive fora? — desejou saber, mesmo faltando poucos minutos para o fim do seu plantão.
— Ah, o de sempre — Pedro respondeu sem dar muita importância. — Aliás, você esqueceu o seu celular na mesa. — Disse jogando o aparelho na direção de Fernando, que conseguiu pegar o objeto no último instante antes de cair no chão. — Acho que você tem uma admiradora! — O tom de voz do investigador era carregado de malícia.
— Do que você está falando? — Fernando perguntou curioso e sem compreender o que Pedro estava querendo insinuar. Devido à rotina e a completa dedicação ao trabalho, em especial no caso que ele estava investigando atualmente, Fernando não tinha tempo ou oportunidade para encontrar namoradas, muito menos admiradoras.
— A belezura da Thaynara Lima, a garota de programa, ligou querendo falar com você — Pedro explicou, sem mais enrolação. — Se ela imaginasse como você ganha pouco, talvez não se esforçasse tanto em tentar chamar a tua atenção. — completou rindo alto.
— O que ela queria? Alguma informação nova para o caso? — perguntou o investigador, ignorando mais uma vez as provocações do outro e abrindo os arquivos da investigação no computador, enquanto aguardava a resposta.
— Nada demais. Acho que só queria chamar a atenção! Falou que havia visto novamente o carro das pessoas com quem a amiga dela havia feito programa. Com tantos clientes que devem atender, duvido que elas se lembrem até do próprio nome depois de satisfazer todos. Anotei o que ela disse, mas como nem sabia o modelo do veículo...
— E você emitiu algum alerta para as viaturas que estão rodando? — Fernando indagou, interrompendo Pedro e começando a sentir-se irritado com a forma que o parceiro estava falando. — Chegou a considerar a possibilidade de ser uma informação pertinente para o caso? — Quase gritou de raiva, pegando o celular e retornando à ligação para o número da última chamada recebida. Enquanto ouvia o som da chamada, operava o teclado do computador com agilidade, emitindo um alerta com as características do veículo para todos os policiais que estavam nas ruas, como deveria ter sido feito desde o início. A chamada foi encaminhada para a caixa de mensagem, depois de chamar várias vezes sem que ninguém atendesse.
— Pelo visto, você está bem estressado hoje. Se quiser dar atenção pra prostituta, tudo bem! Quem sabe você consiga relaxar com alguma delas. Eu vou indo pra casa porque já deu por hoje — Pedro falou, levantando-se de onde estava e saindo da sala.
Fernando não se deu ao trabalho de responder, voltando a ligar para o número de Thaynara mais algumas vezes sem ter sucesso em falar com a mulher. Resolveu discar para outro número e, logo que foi atendido, levantou-se de onde estava e caminhou também para fora da delegacia.
— Oi, aqui é o investigador Fernando Augusto Gomes, preciso de uma informação!
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O grupo se reunia no grande salão de festas que ficava na cobertura da casa de três andares. O local era amplo e bem iluminado por lustres importados da Índia, especialmente para decorar o ambiente. O local, destinado geralmente para bailes e festas, estava livre de móveis, exceto pelas cadeiras, que mais se assemelhavam a tronos reais, ordenadas de forma a compor um grande círculo. No centro, todos aqueles que ocupavam as cadeiras podiam observar com clareza o corpo desnudo da mulher de cabelo ruivo, com braços e pernas abertos como se tentasse representar o homem vitruviano de Leonardo da Vinci. Em cada membro era possível ver cortes profundos, os quais davam acesso a tubos finos e transparentes, que a cada segundo drenava o sangue da vítima, puxando-o para uma máquina semelhante ao equipamento de hemodiálise usado em tratamentos renais. Todavia, ao contrário do equipamento hospitalar, a máquina a que a matava lentamente, sintetizava o líquido vermelho em diversos compostos químicos que resultariam, dentro de poucos minutos, na droga batizada de Poder do Sangue.
— É uma honra mais uma vez ter todos vocês conosco, irmãos — quebrando o silêncio, uma mulher loira, de pele pálida e olhos azuis brilhantes, se pronunciou, sorrindo para os demais que agora voltavam a sua atenção exclusivamente para ela, fitando-os com superioridade em sua postura perfeita e elegante. — Sem a contribuição de cada um presente esta noite, nada disso seria possível. Contudo, devemos um agradecimento especial ao meu querido esposo, o nosso Imperador, que mais uma vez conseguiu recolher uma ótima amostra para a nossa dose de poder — com um gesto sutil a mulher indicou o homem sentado à sua direita, quem, de forma modesta, agradeceu os aplausos que se sucederam em sua homenagem. — Ele, como vocês sabem, se aventurou nessa cidade em busca do ingrediente mais valioso que precisamos para ter, mais uma vez correndo em nossas veias, o poder dos deuses, dos quais certamente descendemos. — Levantando-se, ela caminhou até o equipamento que mostrava, em um pequeno visor, uma contagem regressiva se aproximando do número zero. Assim que o equipamento foi tocado por ela, uma sequência de alerta sonoro ecoou pelo espaço, sinalizando que o processo havia chegado ao fim.
Com mãos hábeis, a Imperatriz, como ela era conhecida naquele meio, acionou os comandos certos para abrir o compartimento onde o produto final daquela fusão encontrava-se. Os dedos finos pegaram, como se pegasse uma pedra preciosa, um comprimido de coloração vermelha. Erguendo-o diante dos olhos, a Imperatriz admirou a droga antes de levá-la até a boca e sentir o sabor férreo com o qual ela já estava acostumada. Três meses antes, ela descobrira que a sua fórmula farmacêutica poderia funcionar para algo além do que pessoas comuns seriam capazes de compreender. Apenas precisava atribuir um ingrediente: o sangue humano.
Não teve dúvidas. Faria o que fosse necessário para produzir aquilo que daria, a quem o consumisse, o acesso à
Logo que o comprimido se dissolveu com saliva, a Imperatriz sentiu os efeitos da droga. Primeiro, foi como se uma corrente elétrica percorresse todo o seu corpo, fazendo o seu coração acelerar e a respiração ficar mais curta, até que, segundos depois, os sinais vitais voltaram ao normal. Mas normal era algo que perderia o significado nas horas seguintes. Encarando os outros membros da seita à sua frente, a Imperatriz sentia-se capaz de exterminá-los com pouco esforço, assim poderia ter todas aquelas doses somente para ela. Mas precisava daqueles patifes vivos, infelizmente.
Com esforço, ela abriu novamente um sorriso para os demais que a encaravam com ansiedade. Com naturalidade, fez os seus pés abandonarem o chão e ouviu os sons de admiração dos outros ao vê-la flutuar.
Voltou a se pronunciar quando o silêncio outra vez predominou no ambiente:
— Venham, meus irmãos. Sejam deuses! — convocou-os, flutuando acima do corpo sem vida de Roberta.
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Enquanto abraçava Paloma, que ainda chorava, Thaynara pensava em como as coisas seriam dali para frente. Ela encarava o caixão de Amanda, enquanto lentamente era descido na cova. Além da tristeza, sentia a frustração de não ter sido capaz de cumprir com sua promessa de sempre protegê-las. Amanda, Roberta e Paloma eram mais do que amigas para Thaynara, elas eram a única família que ela possuía e agora estava enterrando uma delas, enquanto a outra estava desaparecida.
Muitas das companheiras de trabalho que conheciam Amanda compareceram ao funeral para prestarem os sentimentos e se despedirem. Sabiam que aquilo poderia ter acontecido com qualquer uma delas, pois o meio onde estavam acabava sendo perigoso de várias formas. Nara conhecia cada uma das que estavam ali e sabia de suas histórias, a maioria das quais tinha muito em comum, não estando naquela profissão por desejarem, mas devido à diferentes fatores que as levaram até a prostituição.
Thaynara não tinha ninguém na vida, mal havia completado o ensino médio e tudo que aprendeu fora sozinha, por não querer ser uma completa ignorante. Paloma havia sido expulsa de casa quando decidiu passar por sua transição para redesignar o seu gênero; a mãe simplesmente não conseguia aceitar que o seu filho Paulo era uma mulher presa dentro de um corpo que não era seu. Roberta tinha que sustentar a mãe que sofria de câncer e que, se dependesse unicamente da ajuda da saúde pública, já teria falecido.
Pensar nisso fez Thaynara imaginar o que seria da mãe de Roberta caso a amiga tivesse o mesmo destino de Amanda. Saindo de onde estava, caminhou até perto da cova e jogou a rosa branca que segurava.
— Espero que você esteja em um lugar melhor, minha amiga. Meus pais costumavam me contar histórias de espíritos de pessoas mortas que voltavam para a terra em outras formas e sei que se você voltar. Vai ser como uma linda flor, como você era em vida, bonita, delicada e frágil. Desculpe não ter conseguido lhe proteger, mas eu garanto que vou fazer o responsável pagar pela sua morte — com lágrimas nos olhos, Thaynara se afastou para que outras pessoas pudessem se aproximar e dizer suas últimas palavras para Amanda.
Paloma e ela foram as últimas a deixarem o cemitério, exaustas. Thaynara pegou o celular dentro da bolsa, a fim de solicitar um carro para casa, quando viu as várias chamadas perdidas. Estivera tão desligada desde o funeral até o enterro, que não percebeu as ligações. Reconheceu que o número era do investigador da polícia e logo retornou para ele.
—Thaynara? — a voz grave do outro lado da linha soou no ouvido dela logo depois do primeiro toque.
— Sim, sou eu — respondeu, se dando conta de que estava rouca, provavelmente devido às horas seguidas de choro.
— Aqui é o Fernando, investigador...
— Eu sei — ela o interrompeu, não querendo prolongar aquela conversa. Já sabia a importância quase nula que a polícia estava dando para aquele caso e não queria escutar mais deboche e indiferença de ninguém. — Já prendeu quem fez isso com a minha amiga? Já encontrou Roberta? Ou está ligando para que eu vá reconhecer mais algum corpo? — as palavras foram cuspidas com raiva e indignação, sem que Thaynara conseguisse controlar, assustando até mesmo Paloma que estava ao seu lado.
— Eu... — Fernando perdeu o foco depois do que escutou. — Eu sinto muito! Só queria avisar que estou fazendo o possível para localizar a sua outra amiga desaparecida. — respondeu, ouvindo apenas o choro de Thaynara do outro lado da linha por alguns segundos, sem qualquer resposta. — Então, era isso. Qualquer coisa eu entro em contato. Sinta-se à vontade para fazer o mesmo — completou, antes de desligar.
— Idiota. — Thaynara xingou encarando o celular, explicando depois para Paloma o que havia acontecido. — Espero que ele realmente esteja fazendo o trabalho dele, porque se até essa noite não tivermos notícias sobre o paradeiro da Roberta, eu vou invadir aquela casa.
♦
Nas horas que se seguiram, Thaynara organizou o seu plano. Sabia que poderia ser uma completa loucura invadir a casa de alguma família rica, simplesmente por causa de uma informação vaga, mas ela precisava começar por algum ponto.
— Não posso simplesmente ficar na rua e esperar que o cara apareça mais uma vez para pegar outra pessoa que conhecemos. E você não vai sair hoje — falou em tom de ordem para Paloma.
— Primeiro, você não manda em mim, Thaynara Lima. Segundo, eu não concordo com essa sua ideia de visitar o passado e encarnar a invasora de domicílio novamente. E terceiro, mas não menos importante, eu quero ajudar de alguma forma e já que não vai ser oferecendo meus ombros para você subir e pular o muro, então, vou para a rua, sim. Ficar de vigia e impedir que mais alguém caia nas garras desse maníaco metido a Jack Estripador — respondeu em um só fôlego.
Thaynara sabia que não adiantaria discutir com Paloma. Mais do que ela, a amiga era uma grande cabeça dura e quando decidia algo, não havia quem conseguisse fazê-la mudar de ideia.
— Certo, mas com uma condição... — deu uma pausa para pegar a bolsa, retirando duas pistolas e estendendo uma para Paloma, que olhou para a arma com os olhos arregalados. — Você vai levar uma dessas — Nara completou, como se não tivesse parado de falar.
— Você só pode estar louca, Thaynara. Afasta isso de mim! — Paloma falava de forma histérica, levantando-se da cama onde elas estavam sentadas, caminhando até a porta do quarto. — Então foi isso que voltou para buscar na sala do Gavião quando saímos de lá? — indagou, lembrando-se da noite anterior, quando Nara a deixara sozinha por alguns minutos antes de saírem da casa do traficante. — Essas armas estavam na mesa dele, eu lembro.
— Foi isso mesmo. Eu peguei essas duas armas e munição! — Thaynara respondeu, irritada. — Caso você não tenha percebido, temos um assassino sequestrando e matando nossas amigas e você não espera que eu vá atrás dele de mãos vazias, apenas contando com o meu poder de influenciar emoções. Ou espera? Pessoas como essa não têm emoções, Paloma! — Estendeu novamente a pistola automática na direção da amiga.
Paloma olhava para Nara com completo espanto, não somente pelas armas ou pelas palavras que ela acabara de dizer, mas por ter falado abertamente dos seus poderes. De todas que moravam naquela casa, Paloma era a única que conhecia mais a fundo os poderes da melhor amiga, pois fora a primeira a conseguir conquistar a confiança de Thaynara e sabia o quanto a outra evitava mencionar qualquer coisa referente às suas habilidades.
— Não vou andar pelas ruas com uma arma, Thaynara. Pode esquecer! Eu nem sei usar essa coisa. Não posso simplesmente olhar um tutorial no Youtube de como atirar em um assassino. E você, sabe usar? — perguntou, olhando nos olhos da amiga e obtendo a sua resposta com a expressão de vergonha que se formou no rosto da outra. — Claro que sabe! — bufou.
— Na época que eu trabalhava com... — pensou em qual palavra seria melhor para usar, antes de continuar. — Na época que eu trabalhava com a turma do Gavião, eu era a responsável pelo armamento — explicou, guardando as duas pistolas na bolsa novamente. — Não vou sair atirando em qualquer um como você está pensando. Isso é somente para nossa proteção, caso as coisas fiquem complicadas demais — tentou explicar.
— Minharesposta ainda é não. Odeio armas e não quero tocar em uma durante a minha vida inteira, se possível! Caso ascoisas fiquem complicadas, como você disse, eu tenho unhas grandes e fortes osuficiente para usar. Além disso, você esqueceu que eu sou mais forte do queaparento ser!? — Paloma perguntou e fez uma pose de lutadora, tentando amenizaro clima pesado que havia se formado e conseguindo arrancar um sorriso deThaynara. Apesar de ela não concordar com as escolhas da amiga, sabia queestava fazendo tudo com a intenção de protegê-las e achava isso muito honrado. —Fique atenta ao seu celular, se eu verqualquer coisa, eu te ligo — falou, saindo do quarto para se arrumar, masparando no meio do caminho e voltando para perguntar algo que havia esquecido. — Aliás, vai usar qual roupa?
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