Prólogo
A grande cidadela humana se preparava para dormir dentro dos muros naquele final de noite comum.
O terceiro badalar do sino da capela indicou o início da madrugada e os guardas designados à ronda noturna se organizaram para a troca de turno.
Tudo parecia correr conforme a rotina diária. Um bêbado cantando alto numa das ruas perto da taverna, que logo seria interrompido pela rígida e impiedosa Guarda Real. O casal de adolescentes apaixonados que se escondiam sob o céu estrelado fazendo juras de amor impossíveis. Até mesmo o treinamento (não tão oculto) da Ordem dos Ladinos nas sombras da periferia não incomodava mais o rei.
Este, por sinal, andava de um lado para outro do corredor, angustiado com os gritos de agonia e dor que sua esposa lançava ao ar. A ansiedade de conhecer seu primeiro herdeiro duelava com o nervosismo causado pela demora do parto.
As melhores parteiras do reino haviam sido convocadas, mas nem mesmo elas estavam dando conta da difícil missão de lidar com o cordão umbilical enrolado no pescoço da criança.
A saturação da rainha baixava consideravelmente a cada segundo e, com a perda de sangue frequente, desmaiou perante a força de expelir.
— Tragam o Grande Sacerdote com urgência! — Uma das mulheres gritou, trocando a toalha ensanguentada estendida sob o ventre da monarca por uma nova limpa.
O guarda mais novo correu pelos corredores do castelo, lançando-se para a frente numa tentativa inútil de tentar chegar à capela em velocidade recorde.
Mal sabiam que no mesmo instante, um ser da noite adentrava furtivamente o castelo. A criatura de pele roxa fosca e olhos dourados subiu a escadaria tão rápido que nenhum humano comum conseguiria impedi-la.
Conhecia tão bem o castelo que não precisou de nenhum guia para seguir aonde queria. Encontrou com o rei aflito numa das bifurcações do corredor.
— O quê? Co-como você entrou aqui? — O nervosismo do homem era quase palpável e ele engoliu em seco ao tentar se recompor diante da elfa. — O que você quer, Sha?
Essa, com uma expressão cansada, também respirou fundo antes de dizer as palavras que sabia que o monarca não gostaria de ouvir.
— Trouxe uma profecia.
O pânico e medo do rei estava presente em toda a sua feição e um grito de dor quase escapou pelos seus lábios, mas ele engoliu e se forçou à ser forte. Fora treinado desde pequeno para isso, afinal. Sabia que a profecia de um Druida nunca era um bom prenúncio, então tentou preparar-se mentalmente para as palavras que a elfa havia trazido.
Nem mesmo Sha gostava dessa parte de seu dom, mas após incontáveis anos levando o mau agouro à população já estava acostumada às reações adversas.
— Infelizmente, não poderei ajudar a Rainha Neela. Mas, se estiver disposto a aceitar minha profecia, consigo salvar a criança esta noite.
Que grande infortúnio para o rei. Ele sabia que deveria aceitar sem ponderar, mas não conseguiu evitar o impulso de olhar para trás na esperança de que o Grande Sacerdote estivesse chegando. Quem sabe ele não pudesse enxergar alguma luz que os outros ainda não puderam? Mas o monarca sabia que não tinha outra saída, não quando Sha, a Druida, em carne e osso viera para lhe dar essa notícia, então aceitou os termos da elfa com o coração pesado. E ordenou para que os guardas abrissem espaço diante do corpo de sua mulher.
Sha caminhou lentamente para dentro dos aposentos da rainha e pediu para que qualquer alma humana existente ali saísse naquele momento.
As parteiras, os guardas e o rei, banidos temporariamente do grande quarto da monarca recém falecida, aguardaram em angústia no corredor.
E um silêncio incômodo, intransigente, se fez presente e durou longos segundos de dor e medo. Nenhum dos humanos ousou respirar naquele momento.
Mas toda angústia foi interrompida pelo choro estridente do herdeiro.
— Graças à Mãe! — Um dos guardas exclamou aliviado e as mulheres vibraram com o nascimento da criança diante de tanto sofrimento. Todos comemoraram, exceto o rei.
Alguns minutos depois a elfa saiu do quarto com o bebê nos braços, embalado num véu púrpura do tecido mais puro. Olhou com piedade para o pobre monarca que aparentava estar ansioso para saber os termos do pacto que acabara de assinar.
Até o último suspiro real
Em exílio a criança estará
Quando as Trevas derem o sinal
As areias do tempo ela despertará
Sha profetizou diante de todos presentes. Sua missão, naquele momento, ainda não estava completa e precisava dar um último aviso ao rei antes de sumir na escuridão.
— Venho buscar-te quando chegar a sua hora, velho amigo.
Dito isso, o monarca observou a druida partir com seu único herdeiro no colo e ficou em silêncio ao perceber que, em apenas uma noite, perdeu tudo que mais estimava.
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