Capítulo 6
2212 Palavras
Suspiro sozinha, enquanto me permito sentir o calor que envolve meu corpo.
Alcancei a esfera, e lentamente meu corpo é envolto por ela. A sensação de que estou sendo erguida surge sobre mim, e dentro deste silêncio, começo a refletir.
Tento esquecer tudo que vi, mas é impossível para mim. Tudo se repete continuamente em meus pensamentos, dos primeiros aos últimos momentos, revivo tudo sem parar.
Os momentos que passei com Mel, seu jeito doce e completamente único que tanto me marcou, e que certamente é o que mais desejo recordar... Como também os momentos de tensão e toda aflição que passei naquele mercado e o humano que levei até o hospital.
Consegui retornar muito antes do tempo limite do meu trabalho. A aurora que criei ainda não estava nem na metade do tempo mínimo estipulado, então tenho ciência que não passei tempo demais no mundo humano.
Não devo expor isso a ninguém. Nenhum dos anjos deve saber dessa minha experiência, nem aqueles mais próximos de mim.
Manterei tudo em segredo.
Não reprimo meu sorriso ao lembrar que aprendi essa palavra e seu significado, graças a Mel.
Sentirei falta daquela pequena.
Quando sinto que meu corpo para de ser erguido pela força invisível, percebo que algo está diferente de alguma forma, e então abro meus olhos.
Estou no mesmo espaço amplo onde não existe chão, teto, ou paredes, e que ao longe sempre é possível enxergar os tons dourados do sol em um lado, e os tons púrpura do entardecer em seu lado oposto. O espaço vazio que sempre atravesso para entrar no paraíso.
Só que desta vez, não me encontro sozinha.
À minha frente, estão presentes não um, mas três arcanjos, e bem atrás dele, uma figura de maior estatura que todos os arcanjos, completamente envolto por um denso manto e faixas brancas, e em suas costas, estão presentes três pares de imensas asas bem abertas.
Nunca o vi, mas já ouvi sobre ele. O único possuidor de seis asas em todo o Paraíso. Aquele conhecido como Grão Mestre Arcanjo, Rel'El.
- Esse é o Anjo Boreal Mi'Ka? – Uma voz que nunca ouvi antes se pronuncia, ela é tão forte que por um instante tenho a impressão de ecoar em todo o lugar, o fazendo tremer.
- Sim, exatamente... – Um dos arcanjos responde. Hil'Del, o arcanjo responsável pelos Portadores do Belo, e aquele que me acolheu quando tomei minha decisão de ser um anjo portador do belo, muito tempo atrás.
Por um momento Hil'Del me observa impassível a princípio, mas quase imediatamente ele fecha seus olhos, e não consigo dizer o que ele está sentindo.
Olhando os outros arcanjos, vejo que são So'Riel, e também Ka'Ruel, o principal arcanjo responsável pela Legião e também considerado um dos melhores combatentes e um dos arcanjos mais poderosos do paraíso.
Se esses três estão aqui, então estão cientes do que houve.
- O anjo responsável pelo imprudente incidente da aurora em região inadequada. – A voz se pronuncia novamente, e baixo meu olhar. – E agora, novamente agiu de maneira imprudente.
- Diga-me So'Riel, por acaso Mi'Ka foi o anjo que esteve procurando paraísos particulares no Pilar das Almas recentemente? – Ka'Ruel questiona. Ele mantém seus braços cruzados e me olha de soslaio, ele me analisa com um ar desdenhoso.
- Exato, o anjo era Mi'Ka. – So'Riel responde fechando seus olhos. Seu tom de voz é completamente neutro. – Segundo suas próprias palavras, foi por curiosidade pelos humanos.
- Estranho... Por mais uma vez, seus atos envolvem diretamente os humanos. – Ka'Ruel diz me olhando diretamente, mantendo sua postura firme. – Por que tanto interesse neles Mi'Ka?
- Isso já não faz diferença. – A voz de antes atrai a atenção dos três arcanjos. A poderosa figura de seis asas avança devagar, e me sinto minúscula diante do imenso arcanjo. – Está ciente do peso de suas ações, não é?
Não consigo respondê-lo muito menos consigo me mexer, e o nervosismo cresce em mim ao sentir a pressão esmagadora que surge por causa de sua presença. Uma pressão tão forte que demonstra o quão absurdo é seu poder, que parece abalar toda a estrutura de onde estamos, até mesmo os três arcanjos atrás de si se mostram apreensivos. Nem os três juntos apresentam um poder tão imensurável como deste arcanjo diante de mim.
Pela primeira vez desde que surgi no paraíso, estou temendo pela minha existência.
- Sua primeira falha foi perdoada pela Alta Esfera pois, apesar de imprudente e com mais barulho do que gostaríamos, aquela aurora causou resultados benéficos aos humanos. Muitos repensaram seus atos e caminharam para longe da perversão frente ao que chamaram de anomalia antinatural. – O gigantesco Rel'El proclama, parando bem a minha frente – E também, ninguém teve ciência de nossa existência. Por isso, decidimos fazer vista grossa e dar-te uma segunda chance...
Recordo desse incidente, que foi a primeira vez que fui chamada na Alta Esfera. Não sabia o que esperar daquela vez, e o mesmo ocorre agora.
Hil'Del foi quem me contou que haviam perdoado meu erro, e esperavam que isso não tornasse a acontecer. Mas da outra vez, não havia ninguém me esperando quando cheguei ao Paraíso.
- Entretanto, suas recentes ações são diferentes. – O arcanjo de seis asas torna a falar, e apesar do tom de sua voz não mudar, algo me faz sentir muito medo – Você violou leis importantes do Paraíso. Abandonou sua função, mergulhou no mundo humano sem preparação, interferiu diretamente na vida humana de várias formas, expos sua graça e foi contaminada pela perversão, e se revelou como um anjo para vários deles.
- Mas... – Consigo falar, para minha própria surpresa – Mas eu... Eu não tinha más intenções. Tinha curiosidade nos humanos, e precisei tomar ações que nunca esperei fazer. Mas não fiz visando maldade.
- Eu sei Mi'Ka... – Apesar de grave, sua voz soa compreensível e suave, semelhante a uma brisa, mesmo assim não deixo de sentir-me assustada – Senti quando sua graça se agitou em violência, e assisti quando levou aquele humano para ser cuidado... Mas deve saber que, mesmo ações que possuam boas intenções não devem ser feitas com tamanho impulso... Senão, haverão consequências ruins, por melhor que sejam suas intenções.
- Então... Eu... – Digo em voz baixa – Eu deveria ter permitido que o sofrimento dele perdurasse? Mesmo sentindo que era aquela era uma boa pessoa, eu deveria ter permitido?
- Sei que é difícil entender, mas existem regras Mi'Ka, e existe um equilíbrio que não devemos ferir... – Rel'El diz com calma, e mesmo que não consiga enxergar seu rosto por baixo do longo manto, sei que seus olhos estão sobre mim – Aquele não é nosso mundo, mas sim dos humanos. Não podemos agir nem decidir de acordo com nossa vontade.
- Mas, se podemos fazer algo, ainda assim devemos apenas permitir? – O olho fixamente, mas não tenho uma resposta. – Não podemos interferir quando é por uma boa causa?
- Não quando nossas ações perturbam a ordem natural. – Ele responde quase que de imediato, e não entendo – E perturbar a ordem natural não é divertido quando se tem conhecimento da sujeira resultante.
- Sujeira? – Pergunto sem entender o que ele quer dizer.
- Permita-me mostrar. Veja com atenção... – Logo à frente do anjo de seis asas, algo estranho toma forma. É muito semelhante a água se moldando, e dentro dela imagens surgem – Se não houvessem interferências, aquele homem violento seria pego pelas autoridades pouco tempo depois, vangloriando-se de itens que não lhe pertencem. Enquanto que o outro, aquele que buscava alimento, retornaria para sua morada com os mantimentos desejados, e logo tornaria a buscar uma profissão.
Observo atentamente as imagens, sem expressar uma palavra.
- Entretanto, o violento encontra-se livre e já realizou um novo delito. – A cada palavra de Rel'El, as imagens vão surgindo, da mesma forma que acontecia na televisão que vi na terra – Enquanto que o outro encontra-se em tratamento, sem garantias de recuperação. Sua família ainda não tem notícia alguma, e seu futuro é incerto.
As imagens cessam e devagar a estranha forma se dissipa frente ao anjo. Os arcanjos não se pronunciam, mas consigo ver que Hil'Del ainda não olha para mim.
- Eis a razão de não podermos interferir, mesmo que nossa intenção seja boa. – O arcanjo de seis asas se pronuncia – Nossas ações no mundo humano tem consequências... Se impensadas, elas perturbam a ordem natural, e o equilíbrio é abalado.
Fecho meus olhos e baixo levemente a cabeça. Me deixei guiar pela curiosidade, e não posso negar esse fato. – Peço desculpas pelos meus atos impensados. Reconheço que agi sem pensar novamente, e isso não tornará a acontecer.
O silêncio perdura por alguns momentos, e a cada instante, me sinto mais aflita. Não sinto nenhuma movimentação, mas consigo sentir claramente a presença dos arcanjos, e do imenso anjo de seis asas a minha frente – Me dói dizer isso... Mas de fato, isso não tornará a acontecer.
Ergo meu corpo devagar – O... O que quer dizer?
- Esta não é a primeira vez que você comete um erro... E como disse, você violou leis do Paraíso. – Ele continua parado a minha frente, e suas asas que estavam recolhidas se abrem, expandindo em um tamanho que não imaginava possuírem – Eu posso fazer uma exceção. Uma, não duas... E já te concedi essa exceção, não há mais chances Mi'Ka.
A pressão, que antes já era imensa, agora cresce absurdamente de forma que torna-se completamente insuportável. Sei que estou tremendo frente a esse poder imensurável de tão esmagador, uma graça assombrosa de tão grandiosa.
O ambiente inteiro começa a reagir ao poder deste anjo. Me dou conta que o sol que havia no horizonte começa a ser coberto por uma mancha escura, e seu brilho é completamente ofuscado. Pela primeira vez nesse espaço, tudo escurece, restando apenas o intenso brilho da lua do lado oposto, e incontáveis estrelas por todos os lados.
A única luz presente agora, provem dos três pares de asas e a aureola do imenso arcanjo. Nada além dele emana brilho, ele é quem ilumina tudo nesse espaço agora escuro.
Quero me afastar, voar para longe daqui, mas simplesmente não consigo mais me mover, meu corpo não me obedece de forma alguma.
- Você receberá a punição pelos seus atos. – Sinto que algo começa a ser arrancado de mim a força, e começo a gritar pela dor enlouquecedora que recai sobre meu corpo – Primeiro, terá sua graça arrancada.
Diante dos meus olhos, assisto minha graça emergindo da minha pele continuamente em densos fios brancos intensamente brilhantes, e não consigo fazer nada para impedir que isso aconteça. A cada instante, sinto-me cada vez mais fraca.
As linhas param de deixar meu corpo, e começo a me sentir vazia, com frio, e sem forças. Meus olhos embaçam, e dou passos para trás, me sentindo desorientada.
- Você não é mais um anjo Mi'Ka... – Ele diz, e avança até mim. – E agora, a enviarei para o lugar onde permanecerá pela eternidade.
Consigo erguer meus olhos, e tudo que tenho tempo de ver, é um imenso borrão avançando sobre mim, atingindo meu rosto com uma força esmagadora, e sem que eu consiga reagir, sinto meu corpo sendo arrastado bruscamente para baixo.
O lugar onde estamos vai ficando cada vez mais longe, as estrelas e a lua agora são apenas pontos distantes, luzes passam rapidamente e mal consigo identificar as formas, até que tudo mergulha na mais completa escuridão, e meu corpo se choca de uma vez contra algo.
Fico completamente desorientada e meu corpo não me obedece. Tudo é tão rápido, tão brusco, que mal tenho tempo de entender tudo que aconteceu.
Sinto algo frio envolvendo meus braços e pernas, os prendendo e puxando com força, causando dor ao meu corpo. Alguma coisa surge enlaçando meu pescoço, e o mesmo acontece quando sinto uma nova puxada em algo nas minhas costas, e pelas plumas sem brilho que caem a minha volta, sei que minhas asas acabaram de ser aprisionadas e também são puxadas.
Meu corpo inteiro está aprisionado, e sinto dores contínuas me percorrendo. Qualquer pequeno movimento que eu tente, sou imediatamente puxada de volta em novas pontadas de dor.
Mesmo assim, estou tremendo. Tremendo do mais intenso medo, que nunca senti em toda a minha existência. Estou assustada e acuada diante de tudo que está acontecendo, desejando desesperadamente que tudo não passe de um grande devaneio assustador da minha mente.
- Este é o lugar onde receberá sua punição... – Ouço a voz a minha frente, e seu brilho ilumina parte do lugar. Percebo parte do chão e das paredes, que são formados por pedras escuras e pontudas. – Destinado aos anjos que violaram as leis do paraíso, o ponto mais profundo do submundo.
- Por... Por favor... – Consigo falar sem forças – Eu... Suplico... Me dê... Outra chance...
- Sinto muito Mi'Ka, isso não será possível. – Ele me responde, e por fim desaparece, fazendo com que tudo retorne a profunda escuridão – Suas chances já acabaram.
Não consigo mais me mover. Seja pelo que me aprisiona, ou pelas forças que abandonaram meu corpo quando minha graça foi arrancada.
O frio e o vazio crescem em mim, de forma que sinto-me estar congelando ainda viva.
Meu olhar cai no espaço escuro, e tudo que vejo na densa penumbra são minhas pernas e parte das minhas vestes que agora estão rasgadas e sujas.
Sem conseguir lutar contra isso, sou consumida pelo frio e pelo silêncio.
E tudo que me resta é o frio.
Notas Finais
1 - Existe um Arcanjo para cada Esfera do Paraíso.
2 - O Grão Mestre Arcanjo é líder máximo e o ser mais poderoso que existe no Paraíso, tendo uma graça que supera a de todos os Arcanjos reunidos, e é o único que possui o total de seis asas, sendo baseado nos Serafins.
3 - Cada nível de anjo possui uma determinada quantidade de pares de asas. Os Anjos possuem um único par de asas, os Arcanjos possuem dois pares, enquanto que o Grão Mestre Arcanjo possuindo três pares.
4 - O sufixo "El" significa "Deus".
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