Capítulo 45
6172 Palavras
Respirar se tornou cada vez mais difícil com o passar do tempo a ponto que o faço com o máximo de cautela, estou tremendo de dores, o calor cresce dentro de mim a ponto do meu corpo inteiro estar suando sem parar, e cada vez algo está maior em mim.
Sei que deixamos o submundo não faz muito tempo, mas estou tão fraca que mal consegui prestar atenção no caminho que fizemos desde que entramos no carro, não consigo deixar meus olhos abertos. Nick está dirigindo, mas sequer sei onde estamos.
- Chegamos Mika... – Ouço Nick dizer, mas mal consigo me mover.
Tudo que posso é tentar enxergar algo em volta, e encontro apenas algo rápido se movendo para perto do carro. – O que aconteceu com ela Nick? – Consigo escutar a voz de Klauss.
- Eu não sei, a senhorita Raika fez alguma coisa... – As vozes, antes abafadas, se tornaram mais claras para mim. Com esforço tento olhar ao lado, vendo a porta do carro aberta – Ela falou de uma punição, e a Mika está assim agora.
Enxergo uma figura de branco se aproximar de mim, e mesmo com minha visão embaçada, reconheço essa presença – Klauss... – Sussurro fraca.
- Está queimando de febre. – Sua voz soa baixa, mas consigo ouví-lo, e me sinto erguida devagar para fora do carro – Vou levá-la para dentro, precisamos baixar essa febre.
Tudo ao meu redor passa muito rápido, não estou certa do que está acontecendo, apenas sei que estou em casa. Isso me traz a esperança de que tudo vai passar logo, mas não somente isso, existe uma vontade em mim, algo surgindo do mais profundo do meu ser que não compreendo, mas incendeia meu peito.
- O que houve com ela? – Ouço uma voz feminina distante, mas que também reconheço. Layla.
- Nick disse que foi uma punição. – Klauss responde apressado, e sinto meu corpo sacudindo por um movimento apressado – Mas punição pelo que?
- Punição? Eu vou agora tirar essa história a limpo com ele! – A voz irritada de Layla se afasta, e aos poucos tudo fica em silêncio, apenas sei que continuo sendo levada a algum lugar.
Sou colocada no chão devagar, e Klauss utiliza seu corpo como apoio para que eu consiga me manter de pé. – Tem alguma coisa errada... – O ouço dizer.
- Mamãe? – Ouço a voz distante de Mel, e com meu máximo, consigo olhar para ela, e encontro seu rosto assustado para mim, mas uma onda de dor me faz desviar o olhar.
- A Mika não está muito bem, filha. – Klauss explica com cautela – Eu vou cuidar dela, logo a mamãe estará melhor. Eu prometo.
Não sei se Mel permanece junto de nós ou se afasta, mas de repente sinto minhas roupas sendo retiradas às pressas, e então sinto algo gelado caindo sobre minha cabeça e escorrendo através do meu corpo, causando arrepios que me percorrem sem parar.
- Mika? – Klauss me chama, e tento me concentrar nele – Consegue ficar de pé?
- Acho... Acho que sim... – Consigo responder, apoiando uma mão na parede e a outra levo ao rosto, enquanto o anjo lentamente se afasta, mas ainda mantendo suas mãos próximas como um apoio para mim, quando uma batida mais forte em meu peito me atinge. Não me causa dor, mas é algo diferente, um pulsar forte.
Arfo devagar, e aos poucos o rosto de Klauss toma forma à minha frente. Sua feição é de preocupação, muito distante de sua habitual calma. Sua pele está molhada e gotas escorrem vagarosamente pelo rosto, fios de seu cabelo ensopado roçam na testa, sua boca entreaberta e olhos âmbar focados em mim, e apenas em mim, e assim como o anjo, suas roupas estão completamente embebidas pela água e grudadas em seu corpo.
Uma de minhas mãos trêmulas buscam pelo anjo, e assim que finalmente o alcanço, o seguro pela camisa e o puxo até mim. Nossa distância se torna nula quando seu corpo se encontra com o meu em um impacto ensopado, ele apoia uma de suas mãos na parede para manter o equilíbrio, meu rosto e o dele estão próximos, e nossos olhares se confrontam.
Arfando e olhando o fundo de seus olhos surpresos, mantenho minha mão firme em sua camisa, impedindo que qualquer distância seja criada entre nós, e quanto mais permanecemos assim, um sentimento avassalador desperta em mim, um forte calor diferente do que estive sentindo até agora. Uma vontade impulsiva que me faz desejar Klauss muito mais do que jamais desejei.
Algo que não é levado embora pela água que escorre sobre nós, é alimentado por isso, em um furor envolvente que quanto mais, me parece melhor e mais intenso, me faz querer desfrutar de uma forma que nunca fiz antes.
Rompendo a pouca distância que ainda existe entre nós, minha boca encontra a sua em um beijo e repleto de vontades ardentes, que queimam cada vez mais em mim me guiando a um frenesi profundo.
Devagar a surpresa de Klauss parece desaparecer, e ele passa a retribuir o beijo em mesma intensidade, envolvendo minha cintura com seus braços, enquanto que passo meus braços em torno de seu pescoço, pressionando meu corpo ao dele, buscando aprofundar mais deste momento, e ir tão além o quanto eu puder. Nunca essa vontade despertou em mim, mas agora, tudo que quero é me entregar a ele, meu corpo inteiro arde e anseia por isso.
De repente este momento é quebrado, e sou afastada bruscamente de Klauss, sentindo de imediato a falta de seu corpo junto ao meu. O anjo segura meus ombros e me olha perplexo, por entre uma névoa que torna-se cada vez mais presente a cada segundo, enquanto eu, só consigo me sentir confusa, e até mesmo rejeitada.
- O que foi isso Mika? – Ele pergunta incrédulo.
- Você... Está me rejeitando? – Pergunto o olhando fixamente, sentindo uma raiva imensa crescendo em mim pela forma que me afastou – Você está me rejeitando?!
Ele baixa seu olhar ao chão, os movendo de um lado ao outro repetidas vezes como se raciocinasse algo, por fim volta a me encarar. Ele aproxima de repente, tocando as costas da mão na minha testa e a mantendo alguns instantes, quando desliga o registro do chuveiro e ao se virar, alcança uma toalha e me envolve, e sinto-me guiada a outro lugar – Você não está normal.
- Eu sei como estou Klauss... Eu estou bem... – Insisto com a voz irritada, mas um novo pulsar em meu interior me atinge, solto um gemido mudo encurvando o corpo para frente.
- Acredite Mika, você não está. – Ele tenta manter a voz calma, mas em seus olhos encontro a verdade, sua confusão se iguala apenas a sua preocupação – Sua temperatura não baixou. Você está tão quente, que a água gelada estava evaporando ao tocar seu corpo.
Klauss me leva ao quarto e me deita na cama, indo às pressas ao guarda-roupa e procurando algumas roupas. Ele não demora a escolhê-las, e vem novamente até mim, as deixando ao lado e devagar começa a vestir meu corpo. Não vi ao certo quais roupas eram, sei que é uma calça e uma camiseta sem mangas muito leve.
Assim que termina de me vestir, permaneço sentada na cama com a cabeça baixa. Um novo pulsar me atinge, e todo o fôlego me abandona. Respiro profundamente apertando meus olhos, quando começo a sentir que existe algo em mim, algo intenso maior que minha irritação.
Olho para Klauss, que se abaixa à minha frente e segura minhas mãos com firmeza. Sua boca abre por uma vez, mas nada é dito a princípio – O que aconteceu no submundo? – Sussurra.
- Klauss? – Layla surge na porta, olhando para mim e Klauss com uma expressão de preocupação em seu rosto. – Pode vir na cozinha só um pouco?
Ele assente devagar, e volta seu olhar a mim, deixando carinhos suaves em minhas mãos, e de alguma maneira que nunca senti antes, seus toques me incendeiam. – Deite e tente descansar Mika. Eu volto logo.
Apesar de suas palavras, o anjo permanece na mesma posição sem deixar de dedicar sua atenção a mim, e se erguendo caminha para fora do quarto e conforme ouço seus passos ficando cada vez mais distantes, uma careta de raiva e desgosto surge em meu rosto, a ponto de me fazer revirar os olhos e encarar um canto qualquer do quarto.
Sinto meu peito pulsando mais uma vez, só que agora, foi muito mais forte do que das outras vezes, forte a ponto de minha voz desaparecer e minha visão ficar embaçada novamente. Contrariando o pedido de Klauss, tento ficar de pé, mas meu corpo perde as forças e acabo caindo no chão do quarto, levando uma das mãos ao peito onde senti esse último pulsar.
Arfo por uma vez, me erguendo do chão e caminhando com dificuldades até a porta, me escorando assim que a alcanço para não cair. Tateando devagar, sigo avançando para fora do quarto e vou até as escadas sem me afastar da parede, me segurando firme ao corrimão e descendo um passo de cada vez para não desequilibrar e cair, caso um novo pulsar ocorra.
Quando finalmente desço, consigo ouvir a voz de Nick, mas tenho que me concentrar para poder ouvir com clareza – ... E foi isso Klauss... Acho que é esse é o castigo da senhorita Raika.
- Então, todo o poder que a Mika absorveu foi liberado? – Klauss questiona, e nesse momento me escoro no sofá tentando ficar de pé, e um novo pulsar ocorre, tão forte quanto o anterior. Fecho meus olhos e aperto os dentes com força – Isso explica a energia do submundo que percebemos chegar na cidade a algum tempo.
- Eu não entendo, como liberar o poder da Mika entra como uma punição? – Layla pergunta.
- Mika adquiriu esse poder absorvendo essências do submundo para dentro de seu corpo, e notei que quanto mais absorvia, mais sua aparência mudava. – Klauss explica com cautela, e ao que ouço, ele parece escolher bem suas palavras.
- É por isso que a Mika mudou tanto...? – Ouço Nick dizer mais a si mesmo.
- Espera, quantas essências ela absorveu? – Layla questiona apressada.
- Desde que foi libertada, Mika contou ter absorvido cinco essências. – Klauss responde de forma pensativa – E quando esteve aqui, Aecos disse que o poder de Mika ainda estava contido. Talvez agora que foi liberado pela Raika, todo esse poder acumulado esteja consumindo ela... Essa deve ser a punição.
- Cinco?! – Nick pergunta assustado – Quando ainda estava no submundo, Mika mal tinha absorvido duas essências. É inacreditável que Mika ainda seja ela mesma.
- O que importa agora é descobrirmos como retirar tudo isso de dentro dela, enquanto ainda é a Mika que conhecemos. – Layla diz, e um momento de silêncio se vê presente entre eles. Esse silêncio, não somente isso, essa conversa deles está me enfurecendo – O que podemos fazer?
Mais um pulsar bate em meu peito, e meu corpo começa a tremer, e guiada pela raiva, devagar caminho para a porta da frente, quando escuto Nick dizendo algo – Será que podemos tirar todo esse poder do submundo de dentro dela?
É uma possibilidade, porém isso pode ser arriscado, não sabemos as consequências de tirar tanto poder de uma vez. – Ouço Klauss falar, assim que alcanço a maçaneta e abro a porta devagar, respirando fundo baixinho, dando um primeiro passo para fora de casa.
Arrasto os pés para fora de casa e vou me afastando pelo gramado, sentindo o frio da noite ao meu redor, que toca minha pele de forma que causa arrepios, e tenho a impressão de que um estranho vapor começa a emanar do meu corpo.
Devagar, cambaleando pelas poucas forças em mim, avanço até os fundos da casa, onde ao longe enxergo as luzes turvas da cidade. Mais um pulsar me atinge, e dessa vez sem ter onde me apoiar, desabo sobre os joelhos, me curvando para frente a ponto de encostar a cabeça no chão, e o vapor de antes aumenta tal qual o calor dentro de mim.
Faíscas flamejantes surgem ao meu redor, e um vento quente começa a rodear em torno de onde estou, e até mesmo o chão abaixo de mim começa a se aquecer, e meus punhos fecham.
O que eles sabem? O que eles querem decidir? Como podem dizer que não estou bem?
Estou perfeitamente bem, estou ótima. Então por que insistem em querer decidir algo sobre mim ou sobre meu poder? Querem retirar tudo de mim? Isso é inaceitável!
Nick... Layla... Vocês não sabem, não fazem a menor ideia de qual seja a realidade. Eu tenho essa força há muito tempo, muito mais do que vocês imaginam. Todo esse poder, eu o controlo, ele pertence a mim! Somente a mim!
Como vocês se atrevem a querer tirar esse poder de mim? Como podem ousar dizer que eu mudei? Não sou mais a mesma? Eu sou quem sempre fui!
E quanto a você... Klauss... Você também acha que mudei?
Não... Não só isso... Klauss... Você ousou me rejeitar! Como se atreveu a isso?!
Como pode negar minha paixão? Meu desejo? Como pode negar daquela maneira? Eu estava disposta a tudo, a demonstrar de todas as maneiras o que existe em mim, me entregar por inteira ao desejo que sei que você também tem, e ainda assim você me afastou!
Uma luz esverdeada no chão atrai minha atenção, interrompendo meus pensamentos. Não sei a quanto tempo essa luz está aqui, mas até então, não havia a percebido, e erguendo meu rosto vagarosamente, bem distante, próximo ao horizonte coberto pelo véu da noite, enxergo algo que a muito não vejo.
Uma aurora.
Meus olhos se mantêm no horizonte, encarando a aurora em meio ao meu silêncio por longos segundos que mais poderiam ser horas, assistindo como suas luzes esverdeadas se espalham pelo céu aos poucos.
Aperto meus olhos e me concentro na aurora, tendo impressão de algo familiar vir dela. O formato dela, os padrões e a forma que ela possui, e até mesmo o que essa aurora transmite... Ela está sendo criada por um anjo.
Meus músculos tencionam, e quanto mais olho para aquela aurora, a raiva em mim cresce sem limites. Meus dentes apertam e meus punhos doem com toda a força que estou aplicando, e num impulso brusco, minhas asas abrem rompendo o ar, em uma onda de fogo que se espalha em torno de mim.
São se mostram mais como asas com plumas douradas, elas se tornaram puro fogo, queimando selvagens como minha ira.
Elas se abrem por completo, e um único movimento basta para que um ruído estrondoso ecoe em meus ouvidos, e o chão deixe de existir debaixo dos meus pés e somente o vento frio da noite se choque contra meu rosto e sacudindo meus cabelos.
Meus olhos focam unicamente na aurora ao longe, como se mais nada existisse ao redor. As luzes da cidade ficam mais próximas e rapidamente vão passando abaixo de mim, mas não desvio meu olhar um segundo que seja.
Mesmo me movendo o mais rápido que consigo, levo alguns minutos até finalmente deixar o centro urbano e haver somente algumas poucas ruas, e só mais um pouco para haver somente a escuridão por todos os lados.
A única luz que vejo é da aurora ao longe. O véu colorido que move-se silenciosamente em meio ao céu noturno, destacado de toda a escuridão que a rodeia.
Diminuo minha velocidade assim que estou próxima o suficiente, com o vento frio das grandes alturas passando pelo meu corpo e sacolejando minhas roupas, e aos poucos vou mergulhando nas luzes da aurora, percebendo como são diferentes daquelas que eu criava tanto tempo atrás. Cerro os dentes enquanto vou encarando essas luzes, algo tão simplório e primitivo quanto isso me causa repulsa.
Sequer preciso me concentrar para sentir toda a graça que me rodeia, junto ao sentimento acolhedor e suave presente aqui, mas isso parece tão distante que agora, tudo isso não passa de um incômodo, e logo a frente, bem ao centro da aurora, enxergo um brilho branco que sei ser a origem desse fenômeno.
Suas asas estão amplamente abertas ao alto, com as plumagens brancas esticadas como se a muito estivessem recolhidas, e uma auréola envolta em um brilho puro, tal brilho envolve todo o corpo da figura em uma fina camada. As longas vestes brancas compostas por longos panos sem qualquer detalhe envolvem seu corpo, sacolejando junto ao vento serenamente.
Seus braços estão erguidos ao alto, e de suas mãos, luzes se projetam intensamente, de onde assisto incontáveis fragmentos de sua graça surgindo como centelhas, que pairam serenamente em torno de si e espalham-se por todos os lados, atravessando silenciosas o céu noturno até se tornaram apenas pequenos brilhos distantes, que penetram a aurora alimentando sua luz com a pureza de seu poder.
Assisto as diversas partículas passando por mim e seguindo seu rumo, e somente uma única solitária vem em minha direção, e devagar estendo minha mão até ela. A pequena partícula cessa seu movimento e se acomoda pairando sobre a palma da minha mão, e sem deixar de a observar seu brilho, a trago até mim.
Nada digo enquanto olho para tal brilho, nada sinto, nada além de indiferença, e fecho meu punho com toda a força, esmagando a pequena centelha. O fragmento solitário emite um brilho intenso entre meus dedos, porém ele logo desaparece, e novamente foco meu olhar ao anjo.
Reduzo a distância entre nós e paro perto o suficiente para olhá-lo uma última vez. Um anjo com uma feição bem jovem, de pele morena e cabelos escuros bem encaracolados, um olhar intenso e um sorriso empolgado está em seu rosto. Aparentemente sua estatura é menor que a minha, além de que ele é bem magro.
- Que fofo, deve ser sua primeira vez manifestando uma aurora! – Digo com um sorriso de canto de boca, cruzando meus braços enquanto presencio sua surpresa. O anjo para de manifestar sua graça de imediato, e seu olhar assustado vem diretamente a mim. Ele fica boquiaberto e sem reação, e passando meu próprio olhar pela aurora ao nosso redor por mais uma vez, volto a encará-lo, em uma risada seca – Isso explica tão baixa qualidade.
- ... Quem... Quem é você? – Ele pergunta acuado, olhando assombrado para minhas asas, isso só aumenta meu sorriso – ... O que são essas asas...?
- Eu? – Salto as sobrancelhas, erguendo o rosto – Não ligue para mim, eu não sou ninguém. Apenas vim ver seu trabalho...
Ele continua tenso, imóvel em seu lugar. O vento passa entre nós novamente, e percebendo que as luzes movem-se lentamente até mim, estico meu braço a ponto de o mergulhar dentro da aurora, libertando meu poder.
Uma mancha avermelhada incandescente emerge de onde toquei a aurora, que cresce e espalha através da aurora, sendo acompanhados pelos olhos assombrados do ingênuo anjo. Os belos tons de verde vão sendo consumidos pelo vermelho intenso, transformando por completo toda a simples aurora criada pelo anjo.
- Como... Como fez isso? – Sua voz sai trêmula, olhando assustado para a aurora que cobre todo o céu, agora iluminando tudo ao redor com um profundo e macabro tom de vermelho.
- Diga, por acaso, você é o novo anjo boreal? – Pergunto para um novo espanto dele.
- Anjo... Boreal? – Ele pergunta confuso.
- Responda! – Insisto, sentindo minha pouca paciência evaporando, e ele se encolhe ainda mais.
Ele hesita longos segundos, olhando de um lado ao outro por repetidas vezes, e está claro para mim que esse anjo está evitando me olhar, ele está apavorado. – Eu... Fui dito ser um novo Portador do Belo, e... Me disseram que seria o novo Anjo Boreal...
- Ah, então você é mesmo o Anjo Boreal... – A raiva toma conta de mim, e aperto ainda mais as mãos em meus braços a ponto de doer – Então ousaram mesmo me apagar do Paraíso e me substituir?!
- Te substituir? Mas... – Ele tenta falar, erguendo uma mão a mim, mas de imediato dou vazão as ardentes chamas em mim, envolvendo minhas mãos e logo espalhando em torno de meus braços, e tudo que o anjo faz é me olhar em um misto de espanto e encantamento – Quem é você...?
Solto uma risada seca, recuando um de meus braços e o olhando com um largo sorriso marcando meu rosto – Deseja mesmo saber, não é?
Desfiro um golpe direcionado ao anjo, e de minha mão as chamas são lançadas em uma intensa rajada, a qual se expandem e cobrem rapidamente todo o espaço entre mim e o anjo, que consegue se desviar por muito pouco, ao lançar-se por baixo do fogo.
Seus olhos estão arregalados e encarando o nada, e ele está boquiaberto, assustado com o que acabou de acontecer.
- Por acaso, já ouviu falar no nome Mi'Ka? – Questiono o encarando de cima, não mais com os braços cruzados. O anjo apenas balança a cabeça em negação – Entendo, parece que apagaram até meu nome no Paraíso... Malditos Arcanjos... Escute, eu fui o antigo Anjo Boreal, Mi'Ka!
Ele baixa seu olhar novamente, e erguendo uma mão frente ao peito ele se curva a mim, aparentemente estando envergonhado. Ergo uma sobrancelha ao presenciar tal gesto. – Perdoe-me, eu... Não sabia da existência de outro Anjo Boreal, ninguém no Paraíso me disse a seu respeito... É um prazer poder conhecer aquela quem me antecedeu.
Solto um riso curto, avançando rapidamente até o anjo, e acerto meu punho na altura de sua barriga, onde o impacto é tamanho que ecoa pelo ar, diferente de seu grito mudo.
Recuo a mão e desfiro um segundo ataque que pega em cheio em seu queixo, lançando seu rosto para cima, e aproveitando dessa brecha o seguro pela roupa, assistindo seus braços e pernas pendendo no ar, e até mesmo suas asas parecem ter perdido a força por um momento, já que sustento sozinha todo o peso de seu corpo.
Suas asas tornam a abrir e o peso que mantive desaparece. Suas mãos seguram em meu braço, o que me permite sentir como ele está tremendo, e seus olhos castanhos encontram os meus. Olhos puros, inocentes, e repletos de vida e de terror.
- É sério, você é meu substituto? – Minha voz sai arrastada, carregada em deboche, desprezo, e uma fúria crescente. – Me substituíram... Por isso? Alguém com um trabalho tão ruim?
- Por que... Está me atacando? – Ele pergunta com medo na voz, e assim que ouço suas palavras, minha outra mão segura em seu pescoço e o aproximo de mim. Seu rosto se contrai em medo e ele aperta seus olhos com força – Por que Mi'Ka? Eu... Me perdoe por não conhecê-la, não desejei ofendê-la...
Aperto os olhos o encarando, aproveitando cada segundo da feição de medo que encontro em seu rosto, e relutantemente ele abre seus olhos novamente, e por mais uma vez encontro a pureza, inocência, vida e não mais a animação de antes... Encontro o medo em seus olhos, medo pelo perigo iminente que se encontra, medo por ser atacado e sequer saber o motivo.
O motivo...
Qual o motivo disso...?
- Me poupe... Por favor... – O ouço implorar, e suas palavras mexem comigo.
Um baque atinge meu interior como não esperei acontecer, de forma que me perco em minha respiração, e me concentrando no anjo, começo a olhar para o estado do anjo e para cada um dos machucados nele, e fico completamente assustada com o que acabei de fazer.
Por que estou fazendo tudo isso?
Devagar deixo livre seu pescoço, sentindo minha própria mão trêmula, e quanto mais olho para o anjo à minha frente e o terror em si, algo em mim se abala por completo, a ponto de uma dor imensa crescer em meu peito, um profundo arrependimento toma forma, e devagar começou a soltar minha mão de suas vestes.
Contudo uma nova onda de raiva avassaladora toma conta do meu coração, consumindo meus pensamentos e qualquer arrependimento existente em mim, e segurando novamente em sua roupa, recuo o punho concentrando meu poder com tanta agressividade que toda a luz ilumina o anjo à minha frente, desfiro um novo ataque que acerta seu peito, causando uma imensa explosão que o lança para trás, e o calor é tanto que até eu mesma recuo e cubro o rosto, me protegendo da densa fumaça que espalha pelo lugar.
Balanço o braço afastando a fumaça, encontrando o anjo caindo devagar pelo ar, e sem dar tempo a ele se recuperar, avanço rápida, rasgando o espaço a minha frente como se sequer existisse, interrompendo meu movimento assim que estou sobre ele.
Ele abre seus olhos com dificuldade e o pavor toma seu rosto quando percebe que estou logo em cima dele, acompanhando sua queda lenta. Levo minhas mãos ao seu peito, agarrando em suas vestes chamuscadas com tanta força que uma luz avermelhada se vê presente.
Volto meu olhar para suas asas, que apesar de machucadas, ainda o sustentam no ar. Se não fossem essas asas ele já teria despencado lá embaixo... E isso me dá uma ótima ideia!
Com uma força que não imaginava ter, giro nossos corpos no ar, de maneira a deixá-lo sobre mim, e por um único segundo me permito admirar o contraste de sua feição e o brilho branco de seu corpo com o céu noturno acima de nós, e abrindo meus dedos, dou vida a uma nova explosão, que lança seu corpo ainda mais alto. Tenho certeza que ouvi um grito cortado antes do ruído ensurdecedor.
Ascendo rápido perseguindo seu corpo e passando propositalmente por ele, agarro em suas asas e o prendo, batendo o joelho em suas costas e puxando suas asas para trás, as forçando cada vez mais. Ele até tenta lutar contra, ele debate seu corpo como pode e percebo a força que ele tenta colocar em suas asas para se libertar, mas não adianta, sou muito mais forte que ele.
Eu vou arrancar essas asas ridículas!
Recuo o joelho e desfiro mais um golpe, forçando o anjo a arquear as costas e arfar, e dou um novo puxão em suas asas, tirando um grito apavorado dele.
O anjo, tomado pelo desespero ergue uma de suas mãos e manifesta sua graça com toda a potência, criando um clarão branco tão intensa que ofusca meus olhos e os sinto queimar.
Solto suas asas e cubro o rosto, tentando me proteger a todo custo do poder dele, e da repulsiva sensação que a luz de sua graça causa em mim. Quando finalmente me recomponho, volto a encará-lo com os olhos semiabertos, ainda com meus braços em frente ao rosto.
Assisto o anjo tentar se manter no ar com muita dificuldade, abrindo suas asas que apesar de tudo, ainda brilham intensamente no céu em seu brilho branco, onde algumas plumas se desprendem e desaparecem após cair poucos instantes.
Arrependimento? Hesitação? Por que senti essas coisas?
Que ridículo, no que eu estava pensando?!
- Por favor, pare... – Ele ergue uma mão trêmula, em seu rosto vejo uma profunda súplica.
- Eu acho que não! – Respondo com um riso de desprezo, aumentando as chamas em minhas mãos até serpentearem meu corpo por inteiro. Erguendo minha mão próximo ao rosto, fecho o punho e o aponto ao anjo, disparando uma intensa onda de chamas na direção do anjo, que o envolvem de modo que seu corpo desaparece em meio ao fogo – Me faça parar!
O fogo se espalha através do céu cada vez mais, abalando as luzes instáveis da aurora e a sobrepujando, onde resta somente o fogo no céu, e fagulhas caem de volta à terra como flechas flamejantes, quando uma onda tão obscura quanto a noite emerge das chamas de repente, repelindo meu fogo através do ar bruscamente.
Ali, segurando o anjo ferido pelas várias queimaduras, vejo alguém com um olhar sério e muito sombrio voltado a mim, seus longos cabelos cacheados e sobretudo negro sacodem com o vento, e o grande par de asas negras abrem através do céu noturno.
- Você... – Rosno entredentes – Cria do Abismo!
Ele endireita sua postura, sem deixar de me encarar. – O que está fazendo Mika?
- Fique fora disso! – Digo enfurecida, apertando os punhos com tamanha força que meu poder surge, criando um brilho avermelhado em minhas mãos – Não é assunto seu!
Ele cerra seu olhar, não dizendo nada, sequer se movendo. Se me lembro bem, nunca vi um olhar como esse em seu rosto, mas o que mais me incomoda é não ter me dado conta da presença dele se aproximando daqui.
- Consegue voar? – Ele pergunta ao anjo, o soltando devagar, que abraça o próprio corpo e posso ouvir seus gemidos de dor. Mesmo assim ele novamente abre suas asas, repletas de marcas de queimadura assim como seu corpo, e se mantém no ar com muita dificuldade.
- Sim... – Ele balbucia olhando para a figura ao seu lado. – Um... Humano...?
- Por favor, desculpe minha amiga, ela não é assim... – O Cara do Casaco diz ao anjo, o olhando de canto de olho, e voltando a mim. – Alguma coisa aconteceu com ela.
O anjo não responde, mas não me importo. Apenas encaro o intrometido à minha frente.
- Amiga? – Pergunto soltando um riso de desdém, erguendo meu rosto e apoiando as mãos na cintura – Não lembro de ter me tornado sua amiga.
- Volte para o paraíso, não é seguro aqui. – O cara do casaco alerta o anjo, que volta seu olhar aterrorizado a mim, e sem demora, ele se vira e voa para longe o mais rápido que puder, nos deixando a sós.
- Vai ficar no meu caminho? – Pergunto irritada após poucos segundos de silêncio.
- Seu olhar está diferente de antes... – Ele responde – O que aconteceu com você?
- E precisa ter acontecido algo?! – Rebato rindo em desdém – Klauss mandou você aqui?
- Não foi preciso que Klauss falasse comigo. Um par de asas de fogo atravessando o céu chama minha atenção. – Responde sério.
- Não deveria ter me seguido. – Rosno entredentes, apertando os punhos de forma que meu corpo inteiro comece a emanar brasas ardentes.
- Não é de você ferir os outros, igual estava fazendo com aquele anjo. – Ele rebate, me deixando cada vez mais irritada.
- Cale a boca! – Respondo reunindo todo o poder que consigo em meus braços e asas, guiando toda essa energia e concentrando bem a minha frente, dando forma a uma esfera incandescente tão grande que chega a ser maior que meu próprio corpo. – Não se intrometa, você não sabe nada sobre mim!
Sem conter tal poder, em um bater de asas essa energia acumulada se projeta para frente rapidamente, causando uma explosão tão poderosa que o ar se desloca violentamente por todos os lados, forçando com que eu proteja o rosto das ondas de vento ardentes, e até mesmo o que existe abaixo de nós reage com o impacto.
Sem esperar um segundo que seja, avanço na direção que o anjo foi, mergulhando na fumaça causada pela explosão. Se eu for rápida o bastante, poderei alcançá-lo antes que chegue a uma esfera que leva ao Paraíso.
De repente meu avanço é contido quando algo segura minha perna com força, e antes que eu olhe para trás, a fumaça é dissipada, e percebo uma esfera de chamas idêntica à que lancei formada logo acima de mim, e tal esfera é lançada sobre mim, causando uma nova explosão, e tudo que sinto é meu corpo projetado para baixo.
O impacto em minhas costas é imenso, assim como o baque que tenho quando meu corpo acerta em cheio algo duro e frio, que retira todas as minhas forças nesse instante a ponto de permanecer caída.
Me recuperando devagar, apoio as mãos no chão e vou me erguendo com os braços trêmulos, arfando não de dor, mas pelo impacto que tive, e com dificuldades tento reconhecer o lugar onde caí.
Identifico algumas formas ao redor, várias estruturas em formato de cruz estão presentes por todos os lados, e as encontro em todos os lados. Lembro-me que já vi lugares parecidos com esse a muito tempo atrás, lugares estranhos, onde humanos tem seus corpos enterrados dentro de grandes caixas de madeira.
- Você está certa Mika, não sei muito a seu respeito. – Ouço a voz da Cria do Abismo atrás de mim, e lançando meu olhar sobre o ombro, o vejo perto de mim, pairando a poucos metros do chão. Sua voz se mostra carregada de sono – Mas o pouco que sei sobre você, é o bastante para saber que você não é assim... Você não estava desse jeito horas atrás.
Ouço quando seus pés tocam o chão, e ele vem caminhando em minha direção. Me mantenho atenta em cada um de seus passos, até que sei que ele está parado bem atrás de mim.
- Como devolveu meu ataque...? – Encarando o chão, pergunto algo que agora que penso a respeito, não acredito que tenha sido possível.
- Não devolvi, recebi seu ataque em cheio. – Sua resposta me surpreende, e o ouço resmungar após um longo bocejo – Tudo que fiz, foi usar minha vontade e replicar toda a energia que usou em mim.
Replicou meu poder a esse nível? Até onde se estendem as habilidades dessa Cria do Abismo?
- Entendo, você merece a atenção que chamou do Paraíso e do Submundo. – Digo entredentes, depositando a energia do submundo no chão, a espalhando por todos os lados e inclusive abaixo de mim.
Explosões emergem do chão em grandes pilares flamejantes, erguendo terra e pedras embebidas pelo fogo ao ar, incinerando toda e qualquer vegetação próxima. O encaro por mais uma vez, reparando como sua atenção desviou de mim, e sorrindo, abro minhas asas, giro o corpo e salto contra ele.
Minhas mãos tentar firmar em sua roupa, contudo ele consegue impedir meu movimento e prende um dos meus braços próximo de seu corpo, me arrancando um gemido dolorido. Tento desferir um novo ataque com minha mão livre, mas ele força meu braço preso, passando uma de suas pernas atrás das minhas e me derrubando no chão, me segurando com firmeza.
Rosno me debatendo, mas a Cria do Abismo não me solta de maneira alguma, e fechando minha mão livre, a bato no chão com tanta força, lançando minhas forças ao chão de forma que um pilar de fogo surge abaixo de mim, da mesma forma que aconteceu quando enfrentei Stefan.
A Cria do Abismo olha ao chão surpreso e me solta sem demora, e juntando suas mãos frente ao rosto, algo começa a tomar forma, quando a explosão finalmente ocorre, o lançando para o alto e me jogando para longe de onde estou.
Meu corpo bate contra algo rígido, e fico abaixada sentindo as dores do impacto e de vários arranhões na minha pele, e vou me erguendo aos poucos.
Elevo meu olhar, fitando a Cria do Abismo com suas asas abertas no alto, e não deixo de reparar na imensa espada negra que surgiu em sua mão. É uma lâmina muito larga e extensa, acho que tem quase o tamanho de seu portador, e seu fio sombrio reflete a pouca luz da noite e fragmentos do fogo que queima nesse lugar.
Apesar de seu olhar sombrio, a Cria do Abismo me olha não com indiferença ou frieza, e também, não parece estar me analisando como da última vez.
- Será que agora você pode me falar o que está acontecendo? – Ele se pronuncia finalmente, enquanto a larga espada esvanece no ar, parecendo até nunca ter existido. – Se me disser o que houve, talvez eu consiga te ajudar.
- Eu não tenho nada a te dizer... – Cuspo as palavras entredentes.
- Mika... – Ele insiste.
Aperto os dentes, e o arder do fogo em minhas asas intensifica, cada instante mais selvagens, e em um novo bater de asas, uma densa onda de fogo é lançada e percorre todo o chão ao nosso redor – Se não sair do meu caminho, vou começar por você!
Ele permanece calado a princípio – Não quero brigar com você Mika... Mas se insistir nisso, não irei me conter.
- Então, pare se conter. – Digo em tom de alerta, encurvando o corpo para frente e embebendo todo meu corpo pelo ardente fogo que queima em mim.
Sinto o calor emergir de minha pele e cada parte de mim tenciona, o fogo em minhas asas aumenta ainda mais e as chamas em torno de mim engrandecem seu tamanho aos céus, e vagarosamente, algo começa a surgir.
Luzes avermelhadas surgem ao meu redor, moldando um imenso véu que percorrem todo o lugar, circulando as tumbas e brilhando soberanas acima do fogo, alternando sua intensidade do vermelho incandescente a um rosa suave.
A energia presente nesse lugar é imensa e esmagadora, as chamas cada vez mais se agitam e se unem a uma grande distorção que parece presente junto a pressão deste momento. O chão embaixo dos meus pés treme sem parar, algumas pedras saltitam pelo chão incessantemente, mas instabilizadas pelo poder manifestado, rachaduras crescem percorrendo o chão a ponto de torná-lo muito irregular.
Ele suspira pesarosamente, e apesar de seu olhar sombrio permanecer, assisto um sorriso surgir no canto de sua boca, quando uma densa aura de sombras surgem em torno de si – Se assim prefere, tudo bem... Mostre tudo que você tem! Venha Mika!
Sorrio furiosamente, e sem me conter mais um segundo sequer, avanço em um novo ataque.
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