Capítulo 36
7207 Palavras
- Entrem na casa! – Klauss diz num ímpeto, e de imediato ele volta seu olhar a mim, passa do um braço do anjo por detrás de seu pescoço – Vamos levá-lo para dentro.
- Tudo bem, Ion'Alia, vamos! – Chamo o anjo, que está parado apertando os dentes – Ion'Alia!
- Esse humano atrevido... – Ouço ele falar, e ao mesmo tempo que seu olhar torna-se selvagem, o brilho de sua graça se eleva.
Volto meus olhos para a Cria do Abismo, que agora que está mais perto, percebo o sorriso presente em seu rosto, além da aura sombria que está presente em torno de seu corpo, como uma selvagem chama que espalha a escuridão ao redor. Assustada com esse poder absurdo, corro em direção a casa.
- Vamos Ion'Alia, temos que seguir com o plano! – Ouço Klauss o chamar e logo paro ao lado da porta, e apesar de encarar a Cria do Abismo sem parar, Ion'Alia recua, vindo correndo para o casarão.
Ambos os anjos passam por mim, e assim que estou para fechar a porta, vejo que o Cara do Casaco já está parado bem em frente ao portão, olhando diretamente para mim. Foi igual da outra vez, ele simplesmente apareceu do nada.
Assim que ele começa a caminhar em direção a porta, a fecho com força e corro para a sala, entrando no cômodo e me mantendo abaixada e escondida atrás do batente. Os anjos vão seguir o plano, irão atrair ele para os fundos e acionar o selamento. Vai dar certo. Vai dar certo.
O caminho é um só. Ele só precisa ser atraído pelo corredor logo à frente da porta, e sair pelos fundos.
As luzes dentro do casarão começam a piscar de repente, quando por fim se apagam, mergulhando todo o lugar em um profundo escuro, causando uma sensação estranha em mim.
Prendo minha respiração e faço o máximo de silêncio quando escuto o som da maçaneta girando, e devagar a porta é aberta, em um rangido duradouro que não percebi antes, mas que me faz estremecer.
Ele está aqui.
Seus passos sobre o piso antigo são tão audíveis que a casa parece vazia. São passos lentos, transmitem certa cautela em seu avanço, e isso me preocupa.
Para meu desespero, o som de seus passos vão ficando cada vez mais próximos de onde estou escondida.
Aperto os olhos em uma vã esperança de que ele não irá me notar aqui, e com o corpo tremendo, aperto o punho com força. Sentir essa massa esmagadora de poder assim tão perto faz com que eu me sinta indefesa, mas se necessário for, eu irei atacá-lo e correr para os fundos da casa.
Seus passos cessam pouco antes de entrar na sala, e prendo a respiração nesse momento. Todo esse silêncio é aterrorizante, tenho a sensação de estar completamente sozinha com essa criatura onde ser encontrada por ele parece algo iminente, e a expectativa do que irá acontecer a seguir me deixa sem reação além de esperar e torcer para não ser vista.
Para meu alívio, ouço seus passos novamente, dessa vez ficando mais distantes de onde estou. Mesmo ele se distanciando, minha atenção permanece em sua movimentação dentro do casarão, para não ser pega de surpresa.
Onde estão os outros anjos? O que eles estão fazendo?
Me mantendo abaixada, avanço com cuidado até uma janela, pisando o mais leve que consigo para não fazer barulhos que entreguem minha presença a ele, e no momento que alcanço a janela, espio do lado de fora, vendo os fundos da casa completamente escuro.
Faz sentido que os anjos tenham se ocultado para poder emboscá-lo, mas sequer consigo ver qualquer um deles nos fundos. Está escuro demais e as janelas estão tão sujas que não consigo ver com clareza por entre as manchas de sujeira e poeira. Por causa disso, eles nem parecem estar ali.
Está quieto demais, nenhum deles tentou atrair o Cara do Casaco até agora. Não é possível que os anjos estejam apenas esperando por todo esse tempo.
E essa pressão toda está me enlouquecendo, não aguento mais ficar aqui.
Fecho meus olhos por um momento, me concentrando aos sons ao redor, ou melhor dizendo, nos passos da Cria do Abismo. Ele está no andar superior.
Encosto minhas mãos na janela e tento forçá-la para cima. Mas a janela pouco se move, ela apenas dá um pequeno tranco pouco ruidoso, mas permanece no lugar. Está emperrada.
Não posso sair por aqui.
Ainda abaixada e olhando ao alto por uma vez, vou caminhando para fora da sala, atenta para caso seus passos se tornem mais próximos novamente. Se isso acontecer, irei correr para fora da casa, de forma a atraí-lo para a armadilha dos anjos.
Paro frente ao corredor de entrada da casa e espio para o alto das escadas, não vendo sinal algum da Cria do Abismo, e aliás, já nem ouço seus passos. A porta da frente está fechada, não tenho como sair por aqui, e me esticando mais um pouco, tento enxergar algo no final do corredor que leva a outra saída, onde vejo uma figura entrando na casa com cuidado.
Apertando meus olhos, consigo identificar Klauss em meio a escuridão.
Ele olha de um lado ao outro como se estivesse à procura de algo – Klauss! – Sussurro tentando chamar sua atenção.
Ele olha diretamente para mim, com um semblante nervoso, e gesticula repetidas vezes – Mika! Vem! – Sussurra também.
Tento ir o mais rápido que consigo até Klauss, quando de repente algo pousa a minha frente em uma queda pesada, impedindo minha passagem, e ao olhar bem para a figura, percebo ser o Cara do Casaco.
Recuo um passo, sem conseguir reagir pelo susto causado pela figura sombria. Ele ergue uma de suas mãos a mim, quando passos pesados podem ser ouvidos atrás dele – Mika! Deixe ela!
A sombria figura lança seu olhar para trás, e em um movimento absurdamente rápido ele consegue desviar da investida de Klauss, mas antes que o anjo esbarrasse em mim, ele bruscamente é puxado de volta, e assisto ele sendo arremessado para fora do casarão, com uma facilidade tão grande que até parece que seu corpo não pesa absolutamente nada.
Isso desperta meus instintos de batalha que despertei no submundo, agarro o braço da Cria do Abismo e manifesto as chamas em volta da minha mão livre, desferindo um golpe contra ele.
Entretanto não acerto meu alvo. Ele conseguiu segurar meu punho e, mesmo tendo tamanhos parecidos, ele apoia uma de suas mãos no meu ombro e consegue girar meu corpo, fazendo com que eu bata as costas contra a parede atrás de mim. Antes que eu consiga reagir, um impacto acerta meu corpo e sinto ser lançada para longe, batendo contra algo pesado que resmunga bastante, e sinto algo pinicando meu corpo.
Me ergo devagar, tentando entender onde estou, e me dou conta que Klauss está caído embaixo de mim, e não somente isso. Também fui lançada para fora da casa.
Klauss resmunga um pouco, mas logo ergue seu corpo devagar, me olhando preocupado – Você está bem Mika?
Assinto me ajoelhando, o olhando rapidamente – Eu estou bem... Você...?
- Não estou machucado. – Klauss se senta, apoiando ambas as mãos no chão e encarando a porta do casarão, coisa que também faço.
Ali, em meio às sombras, vemos sua figura caminhando até a porta, e conforme ele avança, a pouca luz da noite ilumina seu corpo, até finalmente mostrar seu rosto.
- Então ele é a Cria do Abismo? – Klauss sussurra, se erguendo devagar, não desviando seu olhar dele.
- Sim, é ele. – Sussurro de volta ao tempo que também me ergo, fitando o chão rapidamente, não vendo qualquer sinal da contenção criada pelos anjos.
A figura sorri, avançando um passo, depois outro e mais outro, sem expressar uma única palavra. Isso causa um grande nervosismo em mim e também em Klauss, que apesar de não recuar, está claramente tenso com a aproximação da criatura.
- Quero perguntar algo a vocês. – Ele diz de repente, sem deixar de vir até nós.
O anjo ergue suas mãos ao mesmo tempo, e de imediato uma ventania surge ao nosso redor, erguendo folhas secas e terra ao alto, em uma forte corrente de ar que por um segundo me desestabiliza, mas consigo me manter firme no local.
Me dou conta que o vento se concentra em torno da Cria do Abismo, que está cobrindo os olhos das folhas e toda a terra que o rodeia nesse instante.
Aproveito esse momento de distração dele e, juntando minhas mãos, crio uma esfera de fogo rapidamente. O calor cresce em meus braços e transborda através da minha pele, e sinto todo esse calor se concentrando na esfera de chamas formada entre meus dedos, parecendo até que minhas energias estão sendo levemente drenadas para ela, e sem perder tempo a arremesso contra a criatura.
A esfera avança e de um segundo ao outro encontra seu alvo, criando uma explosão ruidosa e forte o bastante para que eu sinta o impacto atravessando meu corpo, e precise me proteger da sujeira e fumaça levantada.
O silêncio retorna ao lugar quando a natureza se acalma, alguns animais distantes parecem ter fugido daqui após a explosão, já que não consigo mais ouvir seus barulhos, e pequenas fagulhas de fogo estão espalhadas pelo chão.
Contudo o choque me atinge quando o Cara do Casaco emerge da fumaça da explosão, caminhando até nós sem ter sofrido qualquer dano da explosão.
Recuo um passo devagar, incerta se poderemos enfrentar isso de alguma maneira, quando Klauss ergue uma de suas mãos à minha frente – Agora!
Um intenso brilho surge no chão ao redor de onde a Cria do Abismo está. Fito o chão por alguns segundos, reconhecendo vários dos símbolos do paraíso, mas também, vários desses símbolos são novos para mim.
A figura corre seus olhos pelo chão por algumas vezes, no momento que as luzes se intensificam além do chão, crescendo ao céu como vários pilares luminosos envoltos do puro e caloroso brilho da graça dos anjos, que neste momento se converte em uma grande armadilha para ele. A Cria do Abismo tenta se mover, mas ele não consegue sair do lugar.
Fontes de luz se manifestam por entre as sombras da noite, e pares de asas se abrem num rompante, e por fim todos os anjos escondidos se revelam, avançando em passos firmes, erguendo suas mãos em direção a armadilha, de modo que as luzes tornam-se mais intensas.
O calor emanado é formidável, e tenho a impressão de que aumenta a cada segundo, a pressão causada é tamanha que o chão abaixo de mim parece tremer, e a armadilha criada está erguendo seu alvo do chão em uma potente rajada de vento, o envolvendo em fios luminosos que vão crescendo em formas anormais e firmam em seu corpo e vão prendendo mais e mais.
- Não percam tempo! Iniciem a segunda fase! – Ion'Alia diz com força, aproximando-se e parando na borda da armadilha de contenção, como se tomasse cuidado para não invadir os limites da armadilha.
Os anjos se aproximam e, cada um posicionando em torno da armadilha, eles movem suas mãos em uma estranha sincronia, onde pequenas centelhas semelhante a raios circulam seus braços. Quase que de imediato esses mesmos raios surgem do chão, percorrendo os vários símbolos dos anjos que moldam a armadilha, e em um brusco erguer de braços de todos, o que eram centelhas crescem em um único e imenso clarão.
Protejo meus olhos de toda a luminosidade, que percebi ser formada unicamente pela graça dos anjos aqui reunidos. Mesmo que toda a graça presente me cause uma sensação tão nostálgica, fazendo-me recordar do paraíso, não consigo ignorar a forma como esse intenso brilho machuca meus olhos e até mesmo parece queimar meu corpo.
Quando o brilho por fim cessa, uma forma retorcida está presente ao centro da armadilha, que ainda emana seu brilho. Ali, envolto em um material estranho que lembra muito uma rocha pálida que emite partículas de graça, vejo a criatura que antes causou tanto problema e atraiu tantos seres para essa cidade.
- Acabou? – Pergunto a Klauss, que continua à minha frente. Apesar de ter sussurrado, está tão quieto que acredito que todos os anjos aqui me ouviram.
- Sim, ele está selado. Vê os símbolos entalhados na pedra? – Klauss me responde – É o sinal de que a contenção foi bem sucedida.
Ion'Alia baixa seus braços e caminha até a Cria do Abismo, dessa vez, ignorando os limites impostos pela armadilha.
- Nos encontramos de novo. – O anjo diz, num tom calmo.
- Já faz algum tempo, Alia. – A Cria do Abismo responde, em um tom bastante descontraído, o que me preocupa. Ele mal parece preocupado em estar selado. – Como estão as coisas com meu velho pedreiro de obra pronta? Ainda deixando todo o trabalho pesado para os outros?
- Uma língua muito afiada para alguém em suas condições, não acha? – O anjo responde e a irritação já surgiu em sua voz, enquanto os demais anjos se aproximam.
- São seus amigos? – Diz ao olhar os anjos o rodeando, porém ninguém diz uma palavra.
- Vamos levá-lo ao paraíso. Preparem-se para a extração imediata. – Ion'Alia vem em nossa direção enquanto que os anjos se posicionam – Vamos?
Klauss e eu assentimos, e caminhamos de volta ao casarão. Enquanto caminhamos, aproveito e lanço meu olhar para ele, que mesmo estando contido, mantém um semblante muito tranquilo, e pra piorar, ele continua sorrindo.
- Klauss? – O chamo em um sussurro de forma que Ion'Alia não nos ouça, e puxando a manga de sua roupa para que se aproxime – Tem alguma coisa errada.
O anjo vira seu olhar a mim, e já percebo que ele também se deu conta – O que você achou?
- Achei que isso foi fácil demais... – Sussurro.
- Agradeço muito a ajuda de ambos. – Ion'Alia diz assim que alcançamos a sala, lançando suas mãos atrás do corpo e fitando Klauss. – Irei relatar seu auxílio nesta missão.
Klauss olha em direção a janela por uma vez, e retorna sua atenção a Ion'Alia – Quando vocês partirão?
- Devemos retornar imediatamente. – Responde sem demora – Os arcanjos da Alta Esfera tem grande interesse nessa jovem Cria do Abismo, e pressa nos resultados dessa operação.
- Compreendo, então não ficarão muito mais tempo. – Klauss assente levemente.
- Ficaremos apenas o tempo de Lay'L retornar. – Ion'Alia olha para mim, ainda de maneira muito estranha, me analisando de cima a baixo rapidamente como se encarasse uma anomalia, e logo volta sua atenção a Klauss, que percebeu o olhar e não disfarça seu semblante endurecido ao colega da Legião – Peço que, ao retornarem, digam para Lay'L voltar imediatamente.
- Assim faremos. Vamos pra casa Mika. – Klauss segura minha mão e sem perder um segundo, iniciamos nosso caminho para fora da sala, e já me sinto aliviada por isso ter acabado e estarmos indo embora daqui.
Sequer chegamos perto da porta quando tudo começou a tremer bruscamente, de forma que todos nos desequilibramos. Trocamos um olhar confuso, quando um estouro pode ser ouvido do lado de fora da casa.
Desse estouro, ruídos estranhos podem ser ouvidos do lado de fora. Barulhos que não sei ao certo o que são, mas eles perduram por alguns instantes, quando de repente algo atravessa a janela, batendo no chão em uma queda pesada, e pelo brilho emanado, percebemos ser um dos anjos do esquadrão de Ion'Alia.
- Ei, você está bem?! – Ion'Alia se abaixa ao lado do anjo, o sacudindo levemente, enquanto Klauss e eu trocamos um olhar preocupado – Vamos, acorde!
O anjo continua desacordado. Não vejo qualquer sinal de batalha dele, mas por algum motivo ele não desperta.
- Nada! – Diz irritado e se levanta – O que está....?
Ele para de falar ao mirar a porta, e a surpresa cresce em seu rosto. Volto meu olhar para a porta, e percebo a Cria do Abismo entrando na sala em passos lentos, mantendo o mesmo olhar e sorriso descontraído. Seus passos rangem e sua presença instaura um profundo silêncio repleto de nervosismo.
- Não achou que aquilo iria me conter, não é Alia? – Ele pergunta erguendo suas sobrancelhas.
O anjo o encara enfurecido, apertando seus punhos, mas não partindo para um ataque que parece iminente – Como se libertou?!
- Foi fácil, só precisei forçar aquilo até se romper. – Diz saltando os ombros, avançando devagar.
- Acho excelente seu humano insolente, pois assim, irei puni-lo pelo seu desrespeito! Temos pendências do nosso último encontro! – Ion'Alia salta contra a Cria do Abismo, tendo uma lâmina cintilante moldada em graça dos anjos e desfere um ataque, que é contido pela criatura.
A lâmina é envolta de uma aura sombria que surge em torno do braço da criatura, que me surpreende por conter a graça de uma anjo da legião.
- Acho que não será dessa vez. – Responde sorrindo, intensificando a escuridão e causando uma onda que quase envolve Ion'Alia, mas o anjo consegue se esquivar ao pular para trás.
A aura sombria vem sobre mim, mas Klauss entra na frente e me puxa para longe, evitando que a aura nos atinja em uma onda fria que nos circula, mas não nos fere. Mesmo assim, não demora para sentir um impacto contra o chão, e vermos Ion'Alia ajoelhado.
- Por que essa diferença? – Ion'Alia questiona surpreso – Você não tinha esse poder antes...
- Eu estava exausto em nosso último encontro, mas estou muito bem agora... E vocês anjos foram pegos desprevenidos. – Ao erguer sua mão, uma rajada de sombras acerta o anjo e o lança para trás, num impacto contra a parede que o deixa desacordado – Essa é a diferença.
A Cria do Abismo solta um leve suspiro, quando volta seu olhar para nós, e meus instintos ficam em completo alerta, e me preparo para um confronto que não sei se posso vencer, e Klauss faz o mesmo.
Ele nos observa e aperta seus olhos assim que foca em mim, e nesse momento quando Klauss ergue sua mão a minha frente na intenção de me fazer recuar – Saia daqui Mika.
- O que? Quer que eu vá embora e te deixe sozinho com essa coisa?! – Brigo com ele, mas Klauss não desvia seu olhar. Impulsivamente me desvio de Klauss e, envolvendo uma de minhas mãos com minhas chamas, ataco sem esperar em uma imensa onda de chamas que envolve o homem à minha frente – Nem pensar nisso!
Klauss me olha surpreso e então fita as chamas à sua frente. De repente o homem gira o braço e as chamas que o cobriam se dissipam.
Planejo um novo ataque, quando sou surpreendida por Klauss, que acabou de me erguer nos braços e dispara contra a janela recém arrebentada – Devemos sair daqui Mika!
Sem demora ele salta pela janela, em um movimento tão rápido que me desorienta por um instante. Ao bater no chão, sinto algo gelado caindo sobre mim, e um vento congelante correndo pelo meu corpo.
Ergo-me devagar e abraço meu corpo de imediato para tentar me manter aquecida, não reconhecendo o lugar onde caímos. Não existe nada aqui, nada além do céu aberto e incrivelmente estrelado, incontáveis pontos cintilam no céu como em uma gigantesca pintura, a lua em seu intenso brilho pálido, e um grande nada coberto de neve.
- Onde nós estamos? – Pergunto procurando por qualquer coisa ao redor.
- Eu não sei. – Klauss responde confuso, se erguendo devagar enquanto passa seu olhar âmbar em volta.
- Acredito que aquele lugar onde estávamos era muito apertado. – Escutamos uma voz próxima, e nos virando em sua direção, vemos o Cara do Casaco pousando no alto de uma das colinas de gelo, tendo um imenso par de asas escuras abertas. – Decidi trazê-los a um lugar mais aberto.
- Por que nos trouxe para cá? Que lugar é esse?! – Klauss pergunta, enquanto que eu aperto os punhos e tento não avançar.
- Estamos dentro de um grande deserto congelado, em algum lugar próximo ao polo norte do mundo. – Ele responde, correndo seus olhos de um lado ao outro por uma vez. – Queria perguntar algo a vocês, quando tive a impressão de serem diferentes dos demais... Quero descobrir o quão diferentes vocês são.
- Diferentes...? – Resmungo para mim mesma, manifestando as chamas em torno do meu corpo enquanto me recordo o que ele causou e como perseguiu a mim e Mel, como trouxe tantos seres para nossa cidade e tornou tudo mais perigoso para mim, Klauss e também para Mel – É somente por isso?!
- Mika? – Klauss me chama, mas não dou atenção e, deixando vazar todo o meu poder, disparo em um ataque direto – Espera!
- Se é isso que você quer, então vou mostrar! – Digo irritada, saltando contra ele em uma tentativa de agarrá-lo e envolver todo seu corpo em fogo.
Ele se desvia dando um passo para o lado, e minhas tentativas de acertá-lo não tem sucesso, já que ele apara meus ataques e desvia de outros, e quando estou perto de alcançar o homem, ele salta para trás, pousando longe de mim e mais abaixo da colina de neve. Me irrita que ele não para de sorrir nem por um momento.
Impulsivamente avanço novamente mirando agarrar sua roupa, mas ele consegue desviar ao empurrar meu braço ao lado. Giro o corpo e tento acertar uma cotovelada nele, mas de alguma maneira ele consegue segurar meu golpe e sou empurrada contra a neve, caindo de forma até suave, mas fazendo com que minhas chamas apaguem assim que caio.
O frio me invade numa onda incômoda, e sentindo meu corpo tremer, me ajoelho e olho para trás, tendo a figura me observando.
- Lembro de você. – Ele diz de repente – Você é a mesma garota que vi na biblioteca, e também que encontrei perdida no dia da tempestade.
Quando estou para responder, um ruído rompe o silêncio, e vejo a silhueta surgindo atrás do Cara do Casaco, tendo seu imenso par de asas já manifestadas em todo seu esplendor, preparando um ataque certeiro.
Klauss aparentemente acerta seu ataque, e uma onda de vento passa rapidamente pelo meu corpo que me obriga a me proteger, e quando vejo melhor, a Cria do Abismo já não está mais no lugar de antes, apenas vestígios do estranho poder dele pairando pelo lugar.
O anjo corre seus olhos ao redor, e estende sua mão a mim – Você está bem Mika?
Seguro sua mão e me levanto – Sim, só me desequilibrei... Onde ele está?
- Eu não sei. Estava certo de que havia acertado ele. – Klauss responde, e seu olhar corre de um lado ao outro.
Faço o mesmo, buscando a figura por todos os lados, sem de fato conseguir encontrá-lo. Mesmo com a luz da lua iluminando todo o mar branco à nossa volta, ele não está em local algum.
- Ali Mika. – Klauss me chama em um sussurro, e os dois encaramos a figura, que ressurgiu não muito longe de nós, e nos observa como se nos avaliasse.
- Então, vocês também são anjos. – Diz olhando para Klauss, passando uma mão no queixo – Acho que a essa altura, já devia ter adivinhado isso.
- Como vamos fazer isso? – Pergunto sussurrando.
- Não sei ao certo. – Me sussurra de volta – Mas não temos escolha além de enfrentar ele.
- Acho que isso vai ser difícil. – Digo para mim mesma, decidida a me soltar por completo e levar isso totalmente a sério. Com essa certeza em mente, decido por reprimir toda a vergonha e o desgosto em mim, e trago à tona meu par de asas, que rompem o pálido brilho da noite com seu intenso tom dourado.
Não é momento para sentir vergonha de mim, do que sou, ou do poder que carrego. Nossas vidas estão em perigo, alguém importante para mim está em perigo. Por isso, não importa quem ou o que eu seja, nem mesmo qual seja meu poder, eu o usarei sem me conter.
Klauss me olha de soslaio e, com um pequeno sorriso surgindo no canto de sua boca, ele volta sua atenção ao nosso oponente, que parece genuinamente surpreso nesse instante.
Abro minhas asas por completo, manifestando minhas chamas em torno de todo o meu corpo e as concentrando em meus braços. Da melhor maneira que consigo uso minhas asas para me impulsionar para frente, avançando diretamente contra a Cria do Abismo, que recua um passo e segura meus braços, conseguindo conter meu ataque, mas tendo seu corpo levemente empurrado e, pelo esforço presente em seu rosto, deu pra notar que isso não está sendo nem um pouco fácil para ele.
Firmo os pés no chão e o giro bruscamente, de maneira abrupta, o arremesso de lado, o desequilibrando por um momento. Ele tenta se manter de pé, mas Klauss surge logo atrás dele, o envolvendo em um grande turbilhão de vento e neve que se eleva ao alto de um segundo ao outro.
O turbilhão de repente se dissipa em uma onda de vento frio, e pedaços de neve caem silenciosamente ao chão, e a figura permanece ali de pé, enquanto uma estranha aura sombria rodeia seu corpo.
Klauss aponta uma de suas mãos ao chão, e ondas de ar surgem de repente, percorrendo todo o caminho até a figura que, apesar de correr seus olhos de um lado ao outro, parece se incomodar bem pouco.
O vento se concentra e pilares de gelo se erguem do chão, forçando o Cara do Casaco a se desviar, mas sempre que ele vai a um lado, um turbilhão já está lançado em sua direção, o encurralando cada vez mais.
- Mika! – Klauss me chama – Use suas chamas agora. O mais forte que conseguir.
Ergo uma das minhas mãos e concentro uma esfera de fogo, a qual vou injetando cada vez mais energia, a ponto de fazê-la crescer mais e mais, indo além do que já fiz antes e exigindo um esforço muito maior para conseguir manter tanta força reunida em um único ponto.
Me dou conta que Klauss ergueu sua mão para a esfera e uma corrente de vento começa a envolver a esfera, a aumentando ainda mais, atingindo proporções imensas que nunca arrisquei criar antes, e mesmo assim, toda essa massa de poder está em meu controle.
- O vento pode sufocar as chamas, mas também pode alimentar. – Klauss diz, e nesse momento retorno para aquela noite onde fui atrás dos onze arcanos.
Naquele dia, o vento de Klauss sufocou minhas chamas até apagá-las, mas agora as alimenta, dão força a elas para envolverem um inimigo em comum. Me permito sorrir por estarmos lutando lado a lado.
Meu corpo inteiro tensiona de tão difícil que está sendo segurar essa esfera de chamas, mesmo assim me preparo para lançar todo esse poder, e fitando Klauss, e me lança um aceno positivo com a cabeça.
No momento que vejo a Cria do Abismo surgindo, desvencilhando das várias colunas de vento que o cercavam, disparo a esfera de chamas, que percorre todo o caminho até o alvo rapidamente, e quando ele percebe o ataque iminente, já está perto demais e uma gigantesca explosão flamejante acontece. Uma onda de vento quente corre ao redor, fazendo com que o chão abaixo de nós trema e uma grande parede de névoa fria se erga aos céus.
Arfo de cansaço por disparar um ataque tão poderoso, apoiando as mãos nos joelhos para me manter de pé e resistir ao cansaço. Klauss para ao meu lado, tocando meu ombro e me dando um sorriso que me conforta, ele parece orgulhoso e até feliz pelo que acabei de fazer.
- Acho que você acertou ele. – Klauss diz, quando retorna sua atenção ao nevoeiro levantado pela explosão.
- Será que deu certo? – Pergunto um pouco tensa, também me concentrando e procurando nosso alvo.
Uma silhueta pode ser vista de pé em meio a neblina, e assim que ela é finalmente carregada pelo vento, podemos ver que nosso oponente continua ali.
- Foi um excelente ataque. Estou impressionado. – Ele diz de repente com um sorriso tranquilo, começando a caminhar até nós – Mas ainda não é o bastante.
Aperto os dentes e ergo as mãos ao nosso oponente, sem saber o que posso fazer. Sem dúvidas esse meu último ataque foi o mais poderoso que já lancei, tanto que o custo de um ataque tão forte é a exaustão que recai em mim, e mesmo assim ele continua de pé depois disso.
Como vencer alguém como ele?
Uma ideia me vem em mente, e lanço meu olhar ao anjo ao meu lado – Tive uma ideia Klauss, mas preciso de algum tempo. Você consegue segurar ele por alguns minutos?
Ele me observa, e mesmo que seu olhar transpareça dúvidas, ele assente e avança um passo – Me avise quando estiver pronta Mika.
O anjo ergue uma de suas mãos e, de suas asas, fragmentos de sua graça começam a se reunir entre seus dedos, tomando forma de um objeto curvo que lembra muito uma lâmina parecida com a que os anjos moldaram antes. Quando o objeto toma uma forma consistente, a graça se dissipa, dando lugar a uma lâmina pálida que emite um brilho semelhante aos tons da lua sobre nós.
- Tome cuidado Klauss. – Digo enquanto junto minhas mãos. Me concentro para reunir meus poderes, de forma que uma luz começa a surgir entre meus dedos.
A Cria do Abismo ergue uma de suas mãos e emergindo do chão, uma imensa lâmina negra quase do tamanho dele se forma do mesmo poder sombrio dele, ao mesmo tempo que asas se formam em suas costas. Asas diferentes das dos anjos, elas são puramente negras, se moldam de uma energia negra que nunca vi igual, onde até mesmo plumagens ou uma forma definida se veem ausentes.
A figura avança de uma vez até Klauss, percorrendo toda a distância entre eles em um salto rápido, balançando sua imensa espada em um ataque pesado mas muito rápido, e Klauss imediatamente se protege.
O som das armas se encontrando ecoa pelo ambiente silencioso. A figura gira sua lâmina por algumas vezes, desferindo ataques em sequência, todos aparados por Klauss, em repetidos encontros entre as armas. A maneira como a Cria do Abismo manuseia tal arma dá a impressão de que ela não tem peso algum, mas a maneira estrondosa e bem ruidosa com a qual ela acerta o chão, a espada de Klauss, ou até mesmo como corta o ar, deixa claro o quão pesada aquela arma é.
Mesmo que Klauss consiga desviar e defender cada ataque, poucas são as vezes que ele consegue contra-atacar, e cada golpe é defendido por um ser que mal parece estar se cansando.
Desvio meus olhos do embate que se desenrola ao meu redor e volto a me concentrar. Tenho que confiar em Klauss, sei que ele consegue.
A muito tempo não faço isso, mas sinto que não esqueci como criar algo assim. Por muitos anos as criei para iluminar os céus do mundo humano, e agora, chegou o momento de tentar mais uma vez.
Manifestarei uma aurora por mais uma vez.
Da última vez que tentei, minha aurora se tornou instável de um momento ao outro, e resultou em uma grande explosão. Talvez se eu conseguir criar uma aurora com proporções maiores, ela pode ter o mesmo efeito de antes.
Muito me desagrada usar uma aurora para um fim como esse, algo tão belo que usei para iluminar os céus sendo usado para um conflito a qual não sei o real motivo, mas agora não tenho outra opção.
Afasto as mãos devagar e, sem deixar me desconcentrar pelos sons ao redor, vou expandindo as luzes ao redor.
Diferente de todas as auroras que manifestei antes, que sempre eram suaves e muito leves, essa parece ser muito mais densa e quente, carregando um estranho tom avermelhado forte em sua extensão, em luzes movem-se devagar, e conforme injeto meu poder nessa aurora, ela expande ao meu redor, cobrindo grande parte do deserto de gelo com seu véu luminoso.
Observo o espaço que a aurora se expandiu, não sendo muito grande como as que fiz antes, nem mesmo chega a ser tão bela quanto todas as outras, mas cobriu uma boa área por todos os lados e acredito ser o suficiente. Tudo parece sob controle até então, e eu espero que dê certo.
- Klauss, já estou pronta! – Digo sem saber ao certo em qual direção Klauss está, mas torcendo para que ele me ouça.
Em poucos segundos ouço um ruído bem ao meu lado e lançando meu olhar, vejo a silhueta do anjo vindo do alto em alta velocidade e pousando perto de mim, com um olhar atento para a Cria do Abismo que parece muito perto.
- O que você tem em mente? – Klauss pergunta ao meu lado em seu tom calmo. Ele não parece cansado, mas está visivelmente tenso.
Paro de alimentar a aurora no momento que vejo a Cria do Abismo se aproximando de nós. Ele observa as luzes com bastante curiosidade presente em seu rosto, aparentando até ter vontade de tocá-las.
Me dou conta que as luzes começaram a ficar instáveis e seu brilho avermelhado se intensifica, aumentando o calor presente cada vez mais. Com isso viro para Klauss, o abraçando firmemente – Klauss! Tira a gente daqui!
Ele assente e de imediato, o anjo abre suas asas e saltamos aos céus, escapando de uma grande explosão que ocorre por causa da instabilidade ocasionada na aurora.
Uma nuvem de gelo sobe no mesmo momento que o som da explosão reverbera por este local inóspito.
Permanecemos pairando no ar, me mantenho abraçada a Klauss, que me segura pela cintura. Ambos observamos os resultados da explosão, com expectativas de que minha ideia tenha dado certo.
Klauss ergue uma de suas mãos e lança uma corrente de vento contínua na direção da nuvem, a dissipando e revelando a Cria do Abismo ajoelhada, tendo suas mãos apoiadas no chão.
Aos poucos ele se ergue e, levantando o rosto ele nos observa, com um largo sorriso estampando seu rosto.
- Não deu certo. – Reclamo apertando o punho, nada do que tentamos deu certo com essa cria do Abismo – Estou sem ideias Klauss. O que nós podemos fazer contra ele?
Não tenho uma resposta, e isso chama minha atenção. Klauss está encarando a figura com bastante seriedade marcando seu olhar.
- Klauss? – O chamo.
- Alguma coisa não está certa Mika. – Ele responde, não desviando seu olhar da Cria do Abismo.
- O que quer dizer? – Pergunto fitando Klauss de canto de olho e logo voltando minha atenção ao nosso oponente, que permanece onde está, apenas nos olhando.
- Eu acho que... – Klauss para de falar de repente, e percebo como seu rosto ficou tenso, e seu corpo inteiro não reage.
Me dou conta que nós começamos a perder altura, e cada vez mais rápido vamos em direção ao chão. Klauss me abraça pouco antes de atingirmos a neve, que conseguiu amortecer parte do impacto, mas ainda assim, nós dois resmungamos de dor.
- Ao que parece, nossa reunião chegou ao fim. – Ouço o Cara do Casaco falar, e ao erguer meu rosto, o vejo se aproximando de nós.
Olho para Klauss rapidamente, percebendo como ele parece estar sofrendo com algo. Ignoro a Cria do Abismo e corro para acolher o anjo, erguendo seu corpo e o abraçando, assustada com a maneira que ele está tremendo e o semblante de dor se apossa de seu rosto.
Junto bem Klauss a mim, sem saber o que fazer para que ele pare de sofrer dessa maneira, e nem mesmo sei o que causou isso – O que você fez com ele?!
- Eu não fiz nada. – Ouço ele responder, e percebo que o Cara do Casaco está com um semblante sério, fitando o céu – Foram eles.
Percebo vários pontos luminosos surgindo no céu, expandindo cada vez mais, até vários pares de asas iluminarem o lugar. Vários anjos estão presentes, tendo armas em punhos enquanto olham em nossa direção.
- A legião...? – Ouço Klauss sussurrar com a voz arfada.
Ouvir isso me deixa tensa e me encolho ao ver tantos anjos ao redor. Se o Cara do Casaco sozinho já não era problema o bastante, ter vários membros da legião nos rodeando torna as coisas ainda piores.
Mal conseguimos enfrentar a Cria do Abismo, como lidar com tantos anjos?
Klauss não sabe disso, mas não consigo mais voar. Mesmo tendo praticado escondida tantas vezes, minhas asas não tem mais a força de antes, elas já não me levam mais aos céus, e por esse motivo, não temos como fugir daqui.
O homem à minha frente esboça um sorriso – Vocês que estão por trás disso?
Não sei com quem ele está falando, mas logo me dou conta que existem duas figuras atrás dele. Figuras essas que, mesmo após tantos anos ainda os reconheço, principalmente pelas suas graças extremamente reluzentes de tão fortes, e pelos dois pares de asas que cada um possui.
Os arcanjos da alta esfera.
So'Riel e Ka'Ruel.
O Cara do Casaco vira-se a eles, sem ter desmanchado seu sorriso. Já os arcanjos estão sérios, mesmo desarmados, eles parecem prontos para iniciar um intenso conflito.
So'Riel avança em passos cautelosos, levando suas mãos às costas – Perdão por interrompermos dessa maneira, viemos levar o anjo Ka'Su de volta ao paraíso.
- Ka'Su? Aquele anjo ali? – O Cara do Casaco diz, olhando a nós – Achei que o nome dele era Klauss.
- Este é o nome que ele escolheu para caminhar entre os humanos, mas o nome real dele é Ka'Su... – Sussurro com cautela, e com a sobrancelha erguida o Cara do Casaco nos olha.
- Viemos dar um basta neste conflito de hoje, visto que perdura-lo não faz qualquer sentido. – So'Riel insiste, erguendo uma de suas mãos – Por gentileza, insisto que nos entregue Ka'Su.
- Por que... – Ouço Klauss dizer com bastante esforço – Por que... Estão aqui...?
- O senhor Rel'El esteve acompanhando todo o desenrolar da operação, e assistiu o triste desfecho. – So'Riel explica com aparente pesar – Ao prever o iminente conflito, ele nos enviou para buscá-los. Porém, não desejo que tal conflito se estenda ainda mais.
- Isso é um desperdício de tempo. – Ka'Ruel rosna e avança em passos pesados – Devemos erradicar esse tolo humano. Nossos números são o bastante para conter uma Cria do Abismo. EU sou o bastante!
- Quer tentar a sorte? – O Cara do Casaco solta em um tom completamente descontraído.
- Não Ka'Ruel! – So'Riel contém o avanço do arcanjo, o segurando pelo ombro – Não viemos aqui para isso! Sabe as ordens do senhor Rel'El!
Irritado, o arcanjo se desvencilha e, com um olhar brutal, ele observa a Cria do Abismo, que sequer se abala com tal olhar, ele apenas continua sorrindo de maneira indiferente. O que aconteceria se o Arcanjo líder da esfera da legião, uma das forças de batalha mais assustadoras em todo o Paraíso, entrasse em um conflito direto com alguém?
So'Riel, ainda com a mão erguida, a direciona a Klauss, e de um instante ao outro, ele desaparece de perto de mim e ressurge ao lado dos arcanjos.
- O que? Não, devolvam ele! – Digo me colocando de pé num ímpeto, mas paralisando meu corpo assim que recebo um olhar selvagem de Ka'Ruel.
- Levarão apenas ele? – O Cara do Casaco pergunta, olhando a mim de soslaio – Até onde vejo, ela também é um anjo.
Os dois arcanjos me encaram por alguns segundos, e nesse instante meu corpo treme, mesmo assim fecho os punhos e arrisco mais um passo, o que faz Ka'Ruel manter a agressividade em seu semblante, e novamente paro de andar. Meu olhar vai a Klauss, que mal consegue se mover devido a prisão imposta pelos arcanjos. Mesmo assim, ele ergue seu olhar a mim e, com muita dificuldade, faz que não com a cabeça. Não devo me arriscar a enfrentar eles.
- Ela é uma caída que se arrastou para as profundezas do submundo. Não é uma de nós. – Ka'Ruel diz friamente, o que me atinge como uma faca diretamente em meu peito – Mi'Ka não representa nada agora, por isso, faça o que bem entender com ela.
- Como você se atreve?! – Digo com raiva, tornando a avançar, mas os anjos abrem suas asas num movimento avassalador, onde uma forte corrente de vento se manifesta e me empurra para trás, a ponto de me fazer perder o equilíbrio.
Me recomponho rápido e olho ao alto, onde os anjos se encontram. Ka'Ruel mantém seus braços cruzados e me encara com desdém, já So'Riel não esboça qualquer feição clara, já que ele não me olha.
- Sinto muito Mi'Ka. – Ouço o arcanjo dizer, sua voz soou pesadamente.
- Não! Não! Me devolvam o Klauss! – Grito para eles, flexionando as pernas e abrindo minhas asas que se incendeiam em selvagens chamas, saltando o mais alto e batendo minhas asas com toda a força que possuo.
Uma onda de fogo se espalha ao meu redor com o bater de minhas asas e seu brilho dourado reluz em toda sua intensidade, mas sequer consigo deixar o chão mais do que alguns metros antes de cair novamente, acertando o corpo inteiro na neve em uma queda fria e abafada.
Ergo meu olhar aos anjos, que cada vez mais distantes de mim. Suas formas já não podem ser vistas, e tudo que posso notar é o brilho de suas graças, que agora se assemelham às várias estrelas que ilustram o belo e assombroso céu noturno deste lugar frio. – Klauss!
Meu grito sofrido é em vão, ecoando solitário pela noite congelada. Minhas palavras já não podem alcançar ele daqui, assim como distante de minhas mãos. Ele está fora do meu alcance.
Me ajoelho sobre a neve, fechando meus punhos com toda a força e desferindo um único golpe na neve, tendo toda a raiva queimando eu meu peito, a frustração faz com que lágrimas enfurecidas corram pelo meu rosto, em um soluçar silencioso, e lentamente envolvo a mim mesma em um abraço solitário.
Estou sozinha neste lugar deserto. Como as coisas chegaram a esse ponto?
Por que isso está acontecendo?
Ouço passos lentos sobre a neve logo atrás de mim, e lembro-me de quem também está neste lugar. – Seu nome é Mika, não é? Sinto muito por tudo isso...
- Fique quieto... – Digo irritada, apertando meus punhos no chão gelado e o encarando sobre o ombro, decidida a pôr um fim nisso – Eu não quero ouvir você ou receber sua pena...Tudo isso aconteceu por sua culpa!
Ele não me responde. O homem apenas me observa em silêncio, enquanto me levanto e envolvo meu corpo inteiro em chamas, que correm violentamente sobre a neve e espalha-se em labaredas pelo ar, simbolizando toda a minha fúria. Não ligo se ele é uma Cria do Abismo ou se é muito mais poderoso do que eu. Isso não importa, tudo aconteceu por culpa dele, e o farei pagar!
- Você vai se arrepender por tudo que causou, Cara do Casaco ou seja lá qual for seu nome! – Digo erguendo o indicador a ele.
Ele esboça um sorriso – Muito bem Mika... Venha e tente!
Esse olhar dele, esse sorriso despreocupado. Quanto atrevimento, ele não está me levando a sério, e isso só me enfurece ainda mais.
Elevando as chamas ao mais extremo que meu corpo suporta, vazando labaredas através da minha pele, ao ponto que fortes dores recaem em mim tamanha força que estou empurrando, em um grito de raiva me lanço contra ele em um ataque direto, decidida a dar um fim a tudo isso.
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