Capítulo 18
5738 Palavras
Passo meus olhos atentos pela página do meu livro, me permitindo desfrutar dessa história que tem me entretido bem mais do que havia imaginado. Não é comum que eu leia de forma tão lenta, mas essa história tem sido tão agradável que não tenho vontade de apressar seu final.
Meus olhos erguem-se as luzes da cidade, que neste instante repousa tranquilamente em meio a essa noite fria de hoje. Tudo tem estado bem calmo, e isso é agradável.
Respiro fundo fechando o livro ao chegar ao final de mais um capítulo, e caminho de volta para dentro da casa, encostando a porta da cozinha atrás de mim devagar, não causando muito ruído.
Observo a caixa de pizza e a garrafa de refrigerante, ambas vazias, junto de um par de pratos e copos sobre a mesa da cozinha, formando uma pequena bagunça tão incomum nesse lugar.
Atravesso a cozinha em passos leves e entrando na sala, vejo seu pequeno corpo deitado no sofá, bem enrolado no pesado cobertor que trouxe.
Aproximo-me devagar, observando Mika mergulhada em um sono tranquilo.
Escuto o ressoar baixo de sua respiração suave, e o semblante tão leve que está presente em seu rosto. Me espanto como um ser do submundo consegue ter um sono tão sereno.
Por alguns instantes, permaneço a observando, atento a algo que nem eu mesmo sei. E olhando agora, é difícil acreditar que Mika seja do submundo... Ousaria dizer que ela é um anjo.
Com cuidado para não acordá-la, abaixo-me ao seu lado e passo os braços por baixo de seu pequeno corpo, a erguendo devagar e faço meu caminho até a escada, subindo em passos silenciosos até um dos quartos.
Ao chegar ao andar superior, atravesso o corredor até o segundo quarto, onde entro devagar no cômodo escuro e sigo até a cama, deitando Mika com certo cuidado.
Assim que a deixo sobre a cama, observo Mika se ajeitando devagar, virando de lado na cama e se mantendo bem encolhida. Pego a coberta e ajeito bem em torno de seu corpo, de forma que tenho certeza de que ela não terá problemas com frio durante a noite.
Me permito analisar os traços de seu rosto nesse curto instante, e isso me faz recordar de como estava seu olhar mais cedo. Era pouco, mas pareciam diferentes de quando a vi antes.
Seu olhar estava mais afiado, e até mesmo um pouco mais selvagem. Sua forma de falar até me aparentou estar mais carregada do que das duas primeiras vezes que a vi.
Sem falar que seu cabelo, antes dourado, agora apresenta algumas pequenas mechas em tons de cobre. Uma diferença pequena, mas para mim, perceptível.
Ainda assim, decido deixar esse detalhe de lado, somente por esse momento, e com isso permaneço abaixado ao lado da cama, observando seu rosto e cada pequeno detalhe.
Levanto e me afasto devagar, encostando no batente da porta, cruzo meus braços e torno a olhá-la. Minha atenção continua sendo atraída a ela, e não tenho total certeza do porquê disso.
Lembro-me de ontem à tarde, quando ouvi comentários sobre alguém dirigindo um carro esportivo de forma incomum pela cidade, e isso chamou minha atenção.
Já estava disposto a averiguar o que estava havendo para impedir quaisquer problemas maiores, e quando ouvi se tratar de uma jovem conduzindo tal carro, estranhamente sabia que era Mika, e assim que encontrei o tal carro, tudo que precisei fazer era esperar que ela aparecesse, o que não demorou a acontecer.
Era visível como ela estava cansada, e também com fome. E como não sabia quais suas motivações para voltar, prontamente a chamei para vir para cá.
Dessa forma, posso manter meus olhos nela e ter certeza se veio apenas a lazer, como me disse mais cedo, ou se está aqui para cumprir com algum trabalho do submundo.
Mesmo que Mika venha de um local tão antagônico ao meu e possa ser considerada uma inimiga em quase todas as circunstâncias, é difícil para mim não me encantar com ela.
Nunca vi alguém desfrutar do sabor de uma pizza como Mika fez, com tamanho brilho no olhar quando a viu pela primeira vez, e esse comportamento já se repetiu antes. Até seu jeito de agir transmite uma curiosidade e inocência sem igual.
Me surpreende o quão genuínas são suas reações, e acredito que gosto de tamanha sinceridade que Mika demonstra em cada uma de suas ações.
Talvez os outros anjos da legião, e até mesmo os arcanjos desaprovem, mas acho Mika divertida. Gosto do seu jeito e de sua curiosidade... A considero verdadeiramente interessante.
Outra coisa que me deixou intrigado, foi justamente a forma como Mika olhou para minhas asas.
Aquilo foi diferente. Aquele olhar foi diferente.
Não foi um simples olhar e curiosidade, nem mesmo de nojo como esperava receber dos demônios do submundo, mas sim algo mais profundo, intenso, e repleto com um simbolismo que não fui capaz de desvendar, e ainda agora é um olhar que me deixa repleto das mais diversas dúvidas. Era como uma admiração tão intensa que não poderia ser expressa em palavras.
Em toda a minha existência, já estive frente a incontáveis seres enviados pelo submundo. Todos me encaravam como um inimigo a ser derrubado, um oponente implacável pertencente a legião, que era merecedor de um olhar de nojo e do mais puro desprezo.
Mas nenhum deles me olhou da mesma forma que Mika. Nenhum deles me observou com tanta atenção, nem com tamanha admiração. Apenas Mika o fez, o que me faz ter cada vez mais certezas de que ela é alguém muito diferente daqueles que vieram antes.
Ao mesmo tempo que tenho certezas, Mika me instiga dúvidas profundas.
"Esqueci que os anjos não sentem frio"... O que foram aquelas palavras?
Como ela sabia que anjos não sentem frio? Ela já tinha tal conhecimento antes, ou será que alguém contou a ela? Esse tipo de informação circula pelo submundo?
Desencosto do batente e lentamente fecho a porta, olhando para a jovem que continua dormindo suavemente por uma última vez.
Enquanto caminho pelo corredor de volta a sala, pensamentos envolvendo a intrigante e tão diferente garota ecoam em minha mente.
Um ser do submundo com uma curiosidade tão profunda pelo mundo humano, e carregando consigo um jeito e inocência que nunca vi em minha existência.
E agora, seus sorrisos, reações tão sinceras, sua curiosidade e tamanha inocência não deixam meus pensamentos nem por um segundo.
Quem é você Mika?
*****
Sinto o agradável aroma do café pela cozinha, enquanto observo o bolo dentro do forno que já cresceu o suficiente.
Retiro a modesta forma de dentro do forno e a deixo sobre uma tábua para que o bolo esfrie, e retorno minha atenção ao café, que certifico já estar pronto.
Sobre a mesa, um par de pratos e xícaras para o café da manhã. Estranho minha própria atitude, já que normalmente não tomo café da manhã, e quando decido ter um café da manhã, nunca é em casa.
Mas hoje em particular, senti vontade de preparar tudo eu mesmo, ainda mais nessa manhã fria. Por não precisar comer, não costumo guardar mantimentos nessa casa e posso contar nos dedos as vezes que decidi fazer algo eu mesmo, então fui na mercearia aqui perto para comprar algumas coisas e preparar agora cedo.
Separo uma faca e começo a cortar algumas fatias do bolo, as colocando cuidadosamente sobre um prato separado, e o levo a mesa. E por fim, transfiro o café para uma garrafa, e a levo para a mesa, junto a uma caixa de leite.
Assim que termino de posicionar tudo na mesa, vejo sua figura não tão miúda entrando na cozinha em passos arrastado, o rosto amassado e levemente marcado pelo travesseiro, e os olhos um pouco inchados.
Estranho, mesmo nessas condições, Mika ainda me parece muito bela.
- Bom dia. – Digo sem muita cerimônia, observando Mika parando ao lado da mesa e olhando o que deixei pronto com um misto de curiosidade de desconfiança – Cogitei que você estaria com fome. Preparei bolo e café para o café da manhã.
- Você preparou? – Ela pergunta com a voz ainda carregada de sono, e me olha com ambas as sobrancelhas erguidas.
- Sim, preparei. – Respondo a observando.
- Mesmo? – Ela pergunta de forma provocativa, e aperto os olhos levemente – Será que não pediu para entregar, igual fez com a pizza ontem à noite?
Permanecemos mantendo nossos olhares focados um no outro por alguns segundos, quando por fim apoio ambas as mãos no encosto de uma das cadeiras – Não, eu não pedi para entregar. Decidi preparar eu mesmo... Experimente.
Ela continua me olhando, mantendo uma sobrancelha erguida, lentamente se aproximando para pegar um pedaço de bolo. Ela o aproxima da boca, mas não o morde, apenas continua me olhando da mesma forma.
- Eu não acredito. – Ela diz cantarolando cada palavra, tendo um sorriso atrevido no rosto – Terei que ver você fazendo para acreditar...
Ela por fim da uma mordida e se permite saborear o bolo, e enquanto assisto sua reação de completo deleite ao que suponho ser seu primeiro pedaço de bolo na vida, acho tudo isso divertido. Mika está realmente desconfiada de que fui eu quem preparou o bolo?
- Está muito bom. – A ouço suspirando com metade do pedaço do bolo em mãos, e a outra metade na boca – É quentinho, tão macio, e um doce tão gostoso...
Puxo a cadeira para mim, e me sento, juntando as mãos a minha frente. Mika olha para a cadeira ao seu lado, e então a mim, e entendendo o que ela quer dizer apenas em seu olhar, ergo uma mão em um gesto para que ela se sente também.
Assisto Mika terminar de comer seu primeiro pedaço, aproveitando para observar cada uma de suas reações, me surpreendendo em como tenho tamanho interesse nisso.
- E você Klauss? Não vai comer? – Ela pergunta, já pegando um segundo pedaço.
- Não, estou bem. – Respondo erguendo uma mão levemente.
- Ah é, os anjos não sentem fome... Esqueci. – Ela diz e logo em seguida dá uma mordida em seu segundo pedaço. Acho bastante curioso como ela falou de uma forma tão natural. – Você não sabe o que está perdendo.
Olho para Mika fixamente, e logo em seguida observo o prato com o bolo. Sei que não preciso comer, afinal não tenho fome, mesmo assim sinto que estou curioso com o sabor.
Alcanço um pedaço do bolo e o analiso, girando lentamente entre meus dedos, quando por fim torno a olhá-la – Está tão bom assim?
- Não sei... – Mika diz e ergue seus ombros de um jeito brincalhão, sem deixar de sorrir nem por um momento. – Veja você mesmo.
Torno a olhar o bolo e dou uma mordida, aproveitando o sabor e a maciez do bolo. Percebo como Mika me olha com expectativas – Concordo com você. Está mesmo muito bom.
Ela sorri satisfeita, prestes a morder mais um pedaço – Eu te falei.
Alcanço a garrafa e sirvo um pouco de café nas duas xícaras. – Fiz um pouco de café também. Ficou pronto junto com o bolo.
- Você quem fez o café? – Ela pergunta com as sobrancelhas erguidas.
- Você também não acredita que fui eu quem fez o café? – Questiono a olhando fixamente.
Mika me responde balançando a cabeça, com um olhar e sorriso de atrevimento divertido.
Deixo a garrafa de volta sobre a mesa, e alcanço a caixa de leite – Você pode não acreditar que fui eu quem fez o bolo e o café, mas...
- Mas? – Ela pergunta.
Coloco um pouco de leite nas duas xícaras e devolvo a caixa a mesa, tendo cada gesto meu sendo acompanhado por seus olhos atentos e repletos de curiosidade – Mas acabei de fazer café com leite, bem na sua frente.
O semblante de Mika é tomado pela surpresa, e ela fica boquiaberta.
- Acho que dessa vez, terá que acreditar que fui eu quem fez. – Devolvo suas provocações, e a careta emburrada que Mika faz é impagável, e ela desconta em mais um pedaço de bolo.
- Tá, você me convenceu dessa vez. – Ela responde com um leve bico e desviando o olhar ao lado sem desmanchar a careta, e mesmo que não entenda muito bem o porquê e a estranha sensação que isso me causa, sei que cada vez mais aprecio ver suas reações, e sempre anseio pela próxima reação de Mika.
Gosto de seu jeito, atrai minha atenção.
- Eu ainda não acredito! – Mika diz de repente, o que me causa certo espanto por sua reação tão inesperada. Ela me encara no fundo dos olhos, apertando os seus, e ergue o indicador a mim – Quero ver você preparando algo do começo...
- Dessa forma, você irá acreditar que fui eu quem preparou tudo? – Questiono, me permitindo tomar um gole do café com leite.
- Sim, irei acreditar! – responde.
Baixo meu olhar por um instante, refletindo sobre não ter nada nos armários, quando algo me surge em mente.
- Muito bem Mika. Vamos resolver isso. – Digo, já sabendo o que farei – Irei preparar algo na sua frente, e assim não terá dúvidas de que fui eu quem preparou.
- Assim espero ver. – Responde risonha.
- Depois que terminarmos aqui, iremos sair. – Digo deixando a xícara de volta na mesa – Preciso comprar algumas coisas para preparar algo para o almoço.
- Por mim, tudo bem. – Ela responde, experimentando seu café com leite enquanto seus olhos se perdem em algo que não sei o que é.
Aproveito deste momento para observá-la, refletindo que mesmo tendo vindo do submundo, Mika não parece ser alguém ruim... Na verdade, cada vez mais acredito que ela esteja longe disso.
*****
- É aqui. – Digo olhando as grades do supermercado, e um estacionamento bem cheio. – Entre naquele portão bem ali.
- Certo... – Mika diz com certo nervosismo, e percebo ela segurando o volante com bastante firmeza devido ao seu nervosismo.
- Solte um pouco as mãos. – Instruo olhando pela janela.
Mika não me responde nada, mas posso ouvir ela bufando, e então entra com o carro devagar no estacionamento. Quando disse que estávamos para sair, Mika fez questão de dizer que queria dirigir, e eu apenas concordei. Estava interessado em ver como ela se sairia.
A primeira coisa que ela fez foi pegar sua mochila do banco do passageiro, junto de alguns papeis e levar para a sala, enquanto que eu observava sem me pronunciar.
Fizemos boa parte do caminho sem trocar palavras. Entretanto, estive atento a ela a todo instante. Pelo que vi, Mika sabe dirigir, só não tem prática.
- Onde eu paro? – Ela pergunta um pouco aflita.
- Naquela vaga bem ali. – indico apontando, e olho para Mika – Entra devagar, e pisa no freio com calma.
Mika concorda com a cabeça – Tá bem, vou tentar...
A princípio Mika entra muito bem com o carro, mas ela pisa no freio com tanta força que o carro para bruscamente e nós dois acabamos dando um pulo para frente.
Observo a garota firma tanto suas mãos, a ponto de eu imaginar que ela conseguirá esmagar o volante com tamanha pressão.
Ela vira seu olhar a mim, dando um meio sorriso. Olho ao redor por um momento, e então volto minha atenção a ela – Você foi bem. Só precisa praticar melhor essa parada.
A garota solta o volante e, num suspiro, ela apenas assente com a cabeça.
- Vamos? Temos coisas a pegar. – Abro a porta e deixo o carro, e observo Mika saindo logo depois.
Enquanto caminho, faço questão de prestar atenção em Mika, e posso ouvir ela suspirando um "Uau" assim que colocamos nossos pés no supermercado. Sei que ela não conhece muitas coisas do mundo humano, e estava esperando para saber como ela reagiria com um local como esse.
- Tá bem... – Mika diz, caminhando repleta de animação a minha frente, girando sobre a ponta dos pés e olhando a tudo com muita curiosidade – O que vamos pegar aqui?
- Você verá. – Digo mantendo segredo, e ela faz uma careta emburrada – Vamos.
- Tá bem... – Mika diz, fazendo uma longa pausa – Por que esse lugar é tão grande?
- Em certos períodos do ano, acontecem alguns festivais na cidade. – Começo a explicar, enquanto seguimos por um dos corredores principais – E nesses períodos a cidade fica repleta de turistas, todos querendo coisas diferentes, o que não havia nos mercados menores.
Lanço um olhar furtivo a Mika, reparando como ela dedica toda sua atenção ao que falo, ou quase toda. Várias coisas atraem seu olhar curioso, a mantendo boquiaberta quase a todo instante, e na verdade não me incomodo se ela realmente não estiver prestando atenção.
- Então, uma grande rede de mercados comprou esse espaço, e construíram esse supermercado com diversas opções para os moradores e os visitantes. – Termino minha explicação, enquanto seguimos na direção da padaria do supermercado – E hoje, esse é o maior supermercado que tem na região, e até pessoas de cidades vizinhas vem comprar aqui.
Não recebo resposta a princípio, e imagino que Mika está deslumbrada com todas as coisas do mercado.
Esse silêncio me deixa curioso, já que ela não faz novas perguntas – Mika? – A chamo, e não tenho resposta, o que me faz parar e olhar para trás, não a vendo em lugar algum.
Estranho isso, apertando os olhos, os passo de um lado ao outro, buscando qualquer sinal dela, e não encontrando, começo o caminho inverso, a procurando nos corredores pelos quais passei.
Refaço boa parte do caminho pelo qual passamos, desde o momento que entramos no mercado, espiando corredores aleatórios na expectativa de encontrar Mika, mas não encontro nada.
Enquanto caminho, alcanço uma parte aberta do mercado, onde sobre um grande tapete de grama sintética, estão expostos bastante variedade de equipamentos esportivos como esteiras, bolas de pilates, pequenos halteres, anilhas, bancos e roupas, e outras muitas coisas para academia, além de logo ao lado também ter equipamentos focados em acampamento, sendo esses bicicletas, barracas, mochilas, garrafas, sacos de dormir, e um monte de utensílios que parecem ser de uma cozinha miniatura.
Percebo que algo acabou de se mover dentro de uma das barracas, o que me faz imaginar que alguma criança entrou ali pra brincar.
Me aproximo e, parando bem à frente da barraca me abaixo devagar, sendo surpreendido por encontrar não uma criança, mas sim Mika sentada no meio da barraca, olhando tudo com sua natural curiosidade.
- Mika? – chamo, a fazendo olhar diretamente para mim – O que está fazendo?
- Olha o que achei Klauss! – Ela diz rindo, esticando seus braços, com um sorriso animado e brilho nos olhos, e apoiando as mãos sobre os joelhos, ela olha ao redor sem parar – É pequena, mas eu gostei... Para que serve isso?
- Se chama barraca. As pessoas usam para acampar. – Explico olhando em volta, me certificando que não tem nenhum funcionário próximo vindo nos dar uma bronca. – Não pode ficar aí dentro Mika.
- O que quer dizer com "acampar"? – Ela pergunta, ignorando meu aviso.
Acho isso divertido, e solto um curto riso.
- Quero dizer que os humanos usam para ficar mais próximos da natureza. – Estendo a mão a ela, para que se apoie ao levantar e sair da barraca – Em outras palavras, usam para descansar quando estão longe de casa, ou quando querem esquecer dos problemas por algum tempo.
Mika olha para minha mão fixamente. Ela não diz uma palavra, mas é notável sua hesitação.
- Algum problema? – Pergunto, vendo sua relutância.
- Não, nenhum... – Ela responde, e lentamente ela segura minha mão e se ergue para fora da barraca.
- Vamos, temos que comprar as coisas para o almoço. – Digo já andando, percebendo ela me acompanhando, com seus olhos fixos na barraca.
Em nosso caminho até a parte do açougue, Mika acabou se distraindo com praticamente todos os corredores. Praticamente em cada um que passávamos, Mika seguia sua curiosidade para olhar absolutamente tudo que fosse possível.
Seja no corredor dos doces, de temperos, de grãos, de sucos, de artigos de limpeza... Absolutamente todos, e em cada um, seus olhos brilhavam continuamente, e me enchia de perguntas sobre o porquê haver tantos diferentes, de tantos tamanhos e cores.
Até tentei explicar a ela, mas acho que Mika não deu ouvidos, já que imediatamente olhava a próxima coisa com a mesma curiosidade. E entusiasmo da anterior. Entramos em tantos corredores, que acabei vendo coisas que eu nem tinha ideia que vendiam aqui, o que foi uma descoberta e tanto.
Como resultado desse passeio não programado, agora conheço todo o supermercado da cidade.
E peguei boa parte do que irei precisar.
Finalmente alcançamos a padaria, e Mika observa a opções de salgados da vitrine com bastante interesse, inclinando-se para frente com as mãos apoiadas nos joelhos – Será que são bons?
- Acredito que sim. – Respondo de forma a instigar mais de sua curiosidade.
Ela apoia um dedo frente a boca – Não sei o que você vai pegar pra preparar, porque até agora só vi coisas prontas... Estou achando que você não vai me convencer.
- É o que veremos. – Respondo, voltando minha atenção ao rapaz bem jovem que aguarda o pedido. – Vou querer quatrocentos de mussarela e também de presunto, por gentileza.
Ele assente e prontamente separa as devidas quantidades, me entregando em pacotes muito bem envelopados.
- Bom, temos os temperos, a massa. – olho tudo em minhas mãos – Podemos ir Mika.
Me dou conta que Mika está virada, e sua atenção está voltada a algumas pessoas passando perto de nós. Os acompanho com o olhar, mas não vejo nada que que pareça interessante o bastante a ponto de atrair sua atenção.
Ela vira novamente, parecendo refletir sobre algo, e então me olha- Desculpa, me distraí um pouco... O que você disse mesmo?
- Que temos tudo que será necessário. – Respondo, tendo seu olhar minucioso correndo pelas várias coisas que seguro.
- Tudo isso? – Assinto com a cabeça, enquanto caminhamos em direção aos caixas – E o que você vai fazer, que não me contou até agora?
- Vou manter em segredo. – Respondo.
- Estou é achando que você ainda não decidiu, e está tentando me enrolar. – Mika diz em seu olhar apertado.
- Tenha certeza que já tenho algo em mente, e também tudo que preciso bem aqui. – Respondo, e noto seu olhar curioso analisando todas as coisas que peguei, na tentativa de desvendar o que irei preparar, e como não consegue, ela faz uma careta emburrada.
Desse momento em diante, Mika se manteve calada. Ela olhava fixamente para as pessoas que passavam por nós, concentrando bastante de sua atenção como se estivesse prestando atenção no que falam, da mesma forma que antes.
Acho isso no mínimo estranho, e passo a me manter atento nela, percebendo que esse comportamento se repetiu por várias vezes até chegarmos aos caixas.
Passo todas as coisas que pegamos e deixamos o mercado, e me sinto um pouco incomodado com esse silêncio, vendo como Mika perguntou tantas coisas desde que chegamos.
- Ei Klauss... – Ela finalmente fala algo, quando já estamos bem perto de seu carro. – Você... Conhece alguma coisa sobre assuntos espirituais?
- Como é? – Questiono ao não entender sua pergunta tão específica, e paramos ao lado de seu carro.
- É que... – Ela para de falar, aparentemente escolhendo suas palavras – Eu... Ouvi algumas pessoas falando sobre isso hoje... E fiquei curiosa a respeito.
Paro por um momento refletindo sobre sua pergunta, a achando no mínimo estranha por ser tão repentina.
Presto atenção na garota, que me observa com um semblante de que aguarda que eu diga algo com alguma expectativa em seus olhos intensos, e até um pouco agressivos.
- É um assunto amplo... – Começo, questionando a mim mesmo tudo que sei sobre isso – Sei que o espírito é um dos três pilares de alguns seres.
-Três pilares? – Mika pergunta.
- Corpo, mente, e espírito. – Explico – Esses pilares regem os principais campos da vida, cada um com suas próprias características. O corpo é o que nos permite ter contato com o mundo, a mente é aquilo que nos permite compreender o mundo, e o espírito, o mais abstrato dos três, é onde habitam as virtudes e desvirtudes da alma... E claro, também existe a parte mística, onde conhecimentos, feitos e criaturas podem ser alcançados.
- Entendi... – Ela diz, um pouco pensativa, torcendo a boca de lado. – Achei bastante interessante... Acho que gostaria de aprender mais disso... Sabe se tem algum lugar onde posso aprender mais?
- Sim, o terceiro distrito tem muitas coisas abordando essa temática. – Respondo a olhando – As lojas esotéricas, livrarias e artesanatos carregam muito da essência espiritual.
Se bem que, lembro-me muito bem que anos atrás aquele distrito já teve incidentes complicados envolvendo ocultismo e feitiçaria. O mais recente sendo a quatro anos atrás, mas prefiro não comentar essa parte para Mika.
- Podemos ir lá amanhã? – Ela pergunta com certa animação.
- Por mim, tudo bem. Podemos sim – Respondo achando sua animação no mínimo curiosa de tão repentina, e então, ergo as sacolas. – Pode abrir o porta-malas?
- Claro, ah... – Ela para um instante – Como eu faço isso?
- Tem um botão, ali perto do volante. – Digo, e ela dá um meio sorriso.
Mika entra em seu carro sem demora, e através do vidro assisto ela procurando o botão por alguns segundos, até por fim encontrar e destravar o porta malas.
- Consegui? – A ouço perguntar de dentro do carro.
- Sim, conseguiu. – Respondo abrindo a tampa e deixando as sacolas no porta-malas.
Quando estou para voltar ao carro, sinto um repentino vento passar por mim, me causando certo desconforto, e com isso paro por um momento, virando-me e erguendo o olhar ao céu.
Esse vento... Ele é estranho... Conturbado e irregular.
Ele parece carregar algo diferente em seu interior, quase como um alerta escondido dentro de seu sopro instável.
Tenho a sensação de que alguma coisa está se aproximando.
*****
- Vamos lá Klauss! Me conta o que é! – Mika insiste por mais uma vez, me observando deixar as coisas sobre a mesa da cozinha. – Não estou me aguentando de curiosidade!
No caminho de volta, Mika me perguntou algumas vezes o que eu planejo fazer, e decidido a mantê-la curiosa, não disse nada por nenhuma vez.
E agora, vendo ela cruzando os braços, virar o rosto e fazer bico diante do meu silêncio, decido finalmente revelar. – Escolhi preparar uma lasanha.
Sua expressão se alivia, e seu olhar se ilumina. Percebo também que Mika está se mantendo firme sem olhar para mim diretamente, tentando mostrar que não tem mais interesse algum, mas é nítido como seu olhar diz o contrário.
A garota me observa de canto de olho por alguns segundos, e logo então os desvia na mesma direção de antes – Lasanha, é?
- Você já experimentou? – Questiono, me divertindo com as reações dela.
Seus olhos ainda não focam em mim – É claro que já... Comi muitas vezes...
- Mesmo? – Questiono novamente, higienizando minhas mãos utilizando minha graça e indo buscar uma panela.
- Tá bom! Eu desisto, nunca comi lasanha... – Ela responde finalmente. Ela apoia suas mãos na mesa e me olha fixamente com a testa franzida e sem desmanchar seu bico – Seu chato... Satisfeito?
- Talvez. – Respondo deixando a panela sobre a mesa e a olho de volta. Sua expressão se suaviza e por segundos, tudo que fazemos é sustentar nosso olhar. – Vou começar a preparar. Irá me acompanhar?
- Eu irei assistir. – Ela responde, e vejo Mika puxando uma cadeira e se sentando, apoiando seu queixo sobre as mãos e me olhando com expectativa.
Já imaginando essa resposta, separo a carne, o molho de tomate alguns temperos, iniciando o preparo da lasanha sem muita pressa.
Pico alguns dentes de alho e cebola, e começo a refoga-los junto da carne moída em fogo médio, não demorando muito a acrescentar o molho de tomate, e deixo cozinhar, e cronometrando o tempo de cozimento mentalmente.
Enquanto vai cozinhando, escolho uma forma de vidro e a deixo sobre uma tábua de madeira sobre a mesa, tendo certeza que farei muitas camadas.
Retorno ao molho e, tendo noção que cozinhou já por tempo o bastante, desligo o fogo, deixo o forno iniciando seu pré aquecimento, e levo a panela até onde todo o restante dos ingredientes estão.
Dou um olhar furtivo a Mika, que está concentrada em tudo que estou fazendo sem nem ao menos piscar.
Pego uma colher e vou despejando parte do molho na travessa, espalhando em uma boa quantidade, coloco a massa de lasanha, seguido do presunto e então o queijo, repetindo o processo por algumas vezes com bastante calma.
Toda vez que terminava uma camada, Mika olhava surpresa pelo fato de eu iniciar mais uma, até por fim, finalizar a preparação da lasanha com um total de sete camadas de altura.
Despejo um pouco de queijo ralado sobre a lasanha, e levo ao forno para a última etapa.
- E agora Klauss? – Mika me olha fixamente.
- Agora é só esperar. – Digo ao fechar a tampa do forno, acionando o temporizador do forno.
- E precisamos esperar quanto tempo? – Mika pergunta.
- Uma hora, no máximo. – Respondo, separando as coisas e deixando na pia, decidido a lavá-las somente depois. – Por enquanto, terminei aqui.
Sigo para a sala, buscando o livro da minha leitura atual, sento-me na poltrona e início minha leitura calmamente.
Percebo Mika entrando na sala pouco depois, e a acompanho com o olhar por um momento. Ao que me parece, ela está um pouco perdida sobre o que fazer nesse tempo de espera.
A garota passa por mim e vai até a estante, e ali permanece olhando os vários livros, enquanto me concentro em minha própria leitura. Não consigo ver seu rosto, mas imagino sua feição de curiosidade neste momento.
- Por que tantos livros? – Ela pergunta num sussurro, que peço silêncio, deu para ouvir claramente.
- São ótimos para aprender coisas novas, ou então, para se entreter com as histórias escritas. – Digo, percorrendo os olhos pelas palavras, mas não conseguindo me concentrar completamente.
- Então... – Ela começa – Se todos esses livros contarem apenas histórias... Cada um deles terá uma história diferente?
- De certo modo, sim. – Respondo, percebendo que Mika ainda está parada em frente a estante, olhando os livros.
Quando ela finalmente se afasta, imagino que ela irá iniciar sua própria leitura. Mas para meu completo espanto, a garota senta-se sobre o braço da poltrona, e inclinando-se na minha direção, vejo que seus olhos estão voltados ao livro que tenho em mãos.
- Esse que está lendo... Qual a história contada nele? – Ela pergunta curiosa.
- É sobre um mundo distópico, onde os humanos foram reduzidos a precisam viver dentro de uma grande cidade cercada por muros e grades. – Digo, lembrando tudo que entendi da história até agora – Existem cinco grandes grupos criados com base em cinco traços de personalidade, e os humanos são divididos entre eles... Ao total, são três livros, e já passei da metade deste segundo.
Mika ergue seus olhos a mim, com um semblante interessado – Já teve algum livro que leu e gostou mais que os outros?
- Sim, já teve alguns. – Respondo pensativo – Inclusive, alguns deles estão naquela estante.
- Mesmo? – Mika para por um segundo, levando o indicador ao queixo – Você pode me contar as histórias de alguns deles?
- Tem certeza? – Pergunto, gostando do rumo que isso está tomando.
- Temos tempo, né? – Ela pergunta de volta, e não tenho como discordar disso.
Assentindo com a cabeça, vejo Mika se levantando num pulo empolgado e indo até a estante. Ela passa seus olhos pelos livros, e então pega alguns deles, os levando até o sofá.
Assisto tudo isso levemente intrigado.
- Prontinho... – Ela diz, deixando os livros sobre o sofá e então, torna a me olhar – Quero que me conte a história desses livros aqui.
Fecho meu próprio livro, o deixando sobre a mesa de centro, e com isso me mudo ao sofá, tanto para ver quais livros Mika escolheu, e por algum motivo que desconheço, ficar mais próximo dela.
- Quer começar por qual? – Pergunto ao me sentar.
- Eu quero... – Ela diz, olhando os livros de forma analítica, e então aponta para um – Esse aqui. Pode ser?
- Claro, pode sim. – Digo pegando o livro, e vejo Mika se ajeitando no sofá, abraçando uma das almofadas e me olhando com total atenção – Certo... Vamos lá...
*****
Termino de lavar a travessa da lasanha e os pratos do jantar, e os deixo de lado para escorrer. Alcanço um pano e seco minhas mãos, enquanto sigo para a varanda em passos lentos, e vejo seu corpo deitado na rede, já mergulhado em um sono profundo.
Solto um riso nasal e, cruzando os braços, me encosto no batente da porta e sigo olhando a garota por longos momentos.
Ela gostou da lasanha, bem mais do que imaginei que gostaria, a ponto de repetir o prato tanto no almoço quanto no jantar, se deleitando em cada nova garfada.
Enquanto me aproximo da rede para olhá-la melhor, acho inacreditável como gostei de observá-la, não somente nesse momento, mas no dia todo.
Suas reações com uma refeição, sua empolgação no mercado, seu interesse pelos livros, tudo sempre envolto de sua curiosidade verdadeira.
E mesmo agora, que vejo Mika adormecida e ressoando baixinho com seu semblante tão sereno, gosto de observá-la, de me distrair observando seus traços leves. Realmente gosto.
Talvez seja isso que explique o porquê de eu não desviar meus olhos dela, e também explique o porquê esse discreto sorriso está presente em meu rosto.
Ah Mika... O que é essa coisa estranha que sinto quando olho para você?
Acho melhor levá-la para o quarto e deixá-la descansar na cama. Deixar Mika exposta a essa friagem noturna pode não ser muito bom.
Com cuidado, ergo seu corpo da rede lentamente para não acordá-la, e assim que a seguro com firmeza, e observo seu rosto por alguns segundos... Quase que em uma admiração.
Devagar, começo a caminhar de volta para casa, quando algo repentino chama minha atenção, me fazendo parar de andar e retornar meu olhar para a cidade.
Novamente o vento parece completamente irregular, e muito instável. Entre as sombras da noite, tenho a sensação de que algo está emergindo, semelhante a uma energia muito forte, causado por algo que nunca vi antes.
É algo estranho para mim, e faz meu corpo inteiro tremer. Nunca senti nada como isso antes.
Tenho o pressentimento de que algo muito grande está presente na cidade.
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