Epílogo
O som inconfundível de gargalhadas, mesclado numa confusão indistinguível de vozes, apanhou-me de surpresa num primeiro momento. Por segundos, não percebi que realidade era aquela. Estranhei. Estranhei porque me julguei presa num passado que, durante toda a minha vida, pensei ser tão indestrutível como estas paredes seguras que me protegem do vácuo lá fora. Mas esse passado era tudo menos seguro, apenas era baço como as paredes e escondia verdades terríveis. Verdades que mataram. Verdades que trouxeram dor e sofrimento. Porém, o passado é isso mesmo, passado. Conseguimos dar a volta por cima, conseguimos vencer a guerra.
Acho que o ser humano acaba por se habituar muito rapidamente às coisas boas, mas nunca esquece as coisas verdadeiramente más. Talvez isso justifique as minhas viagens constantes ao passado. Talvez até seja importante que todos nós nos recordemos desses tempos. Ingenuamente, agarro-me à crença de que, se o fizermos, não iremos replicar os erros que testemunhámos. Não nos prenderemos a vinganças, rancores, mágoas. Sim, gosto de acreditar nisso. Gosto de acreditar que a sociedade que somos hoje, e aquela que seremos amanhã, será sempre melhor do que a de ontem.
Sorrio. A melodia que me chega aos ouvidos é de pura felicidade. Nem a porta que me separa da sala central é capaz de a camuflar ou deturpar. Sem hesitações ou receios de qualquer tipo, abro-a, ainda com um sorriso bem largo estampado no rosto.
A sala está recheada de uma multidão animada que vai circulando pelo grande espaço hexagonal, detendo-se, aqui e ali, numa banca que lhes chame mais a atenção. Consigo perceber rapidamente que, hoje, a que parece estar a ter mais sucesso é a da mãe do Salvador, que trouxe pela primeira vez algumas das refeições experimentais que está a produzir em colaboração com o laboratório. Os acenos positivos de cabeça das pessoas, ao provarem uma colherada, são inegáveis indicadores de que serão um verdadeiro sucesso. Pelo menos, até chegarmos ao novo planeta. Lá, a nossa alimentação deixará, com toda a certeza, de ser um problema.
Um vibrato angelical arrepia-me a pele dos braços e volto-me na direção do palco. A voz impressionantemente afinada da Elisa prende inúmeros pares de olhos que se reuniram em torno do palco, completamente absortos nas suas palavras tão cheias de significado. O tom alegre da música dissimula a mensagem pesada que ela partilha com aquelas pessoas. A letra, um reflexo dos anos que viveu presa numa sala oculta, privada de tudo, principalmente da vida. O engenho dela em ter transformado algo tão triste em algo tão melodiosamente alegre deixa-me mais surpreendida do que as suas capacidades vocais. No entanto, é inegável o êxito que ela faz, sempre que sobe naquele palco. Toda ela parece brilhar. Para esta prestação ela optou por um vestido rosa cintilante sem alças e bem justo ao corpo que a parece destacar ainda mais. Os músicos atrás dela, que produzem com a voz os acordes que fazem parte da harmonia, são completamente eclipsados com a presença impactante da jovem cantora. Os seus cabelos cacheados, já suficientemente longos, dançam ao som da música que ela nos traz, e isso é tão belo de se ver. Como ela ficou feliz quando deixou de os ter de cortar rentes, penso, ao lembrar-me da expressão "de menina" dela no momento em que se deu conta dessa tão singela mudança na sua vida. Na verdade, foi apenas uma entre muitas outras mudanças maravilhosas que a receberam de braços abertos.
Bem no centro da fila da frente da audiência, alinhado com a estrela em cima do palco, avisto o Matias, completamente embevecido. A troca de olhares que existe entre os dois é bem explicita, e apenas um cego não conseguiria enxergar o clima de romance que paira no ar. Fico genuinamente feliz pelos dois. Sei que o Matias ainda tem muito que aprender, mas ele mostrou que está apto para essa árdua tarefa. Durante anos a fio, deixou-se levar pelas pessoas erradas, melhor dizendo, pela pessoa errada. Porém, ainda está muito a tempo de conseguir seguir um verdadeiro exemplo de conduta. E a Elisa parece-me a pessoa perfeita para isso. Acho que os dois poderão crescer muito, estando juntos.
As gargalhadas sonoras de várias crianças interrompem os meus pensamentos. Não muito distante de mim, um aglomerado de seres humanos de reduzidas dimensões se delicia com as experimentações científicas, seguras e controladas, que a Analu preparou para eles. Por muito que a minha amiga diga que não gosta de crianças, está bastante claro que o seu jeito frontal, divertido e espontâneo encanta os mais pequenos. Não consigo pensar numa pessoa mais indicada do que ela para transmitir o bichinho da ciência às gerações mais novas.
Quando ouço a minha amiga pedir um voluntário para ser seu colaborador na próxima atividade, não me surpreendo ao ver o enérgico Gabriel a saltitar para detrás da banca. O seu cabelo louro vibra em antecipação. A Rita e o Afonso, bem camuflados no meio daquele aglomerado, sorriem comigo com a iniciativa ousada, mas previsível, do amigo.
Avanço, por fim, pelo grande corredor central ladeado por inúmeras bancas, cada uma mais original e atrativa do que a anterior.
Os meus olhos detêm-se, por alguns minutos, naquela que considero a minha maior e mais especial vitória até agora. Por muito difícil que tenha sido, parece que, finalmente, a minha insistência deu frutos.
A Sra. Prazeres abana a cabeça ao ver-me especada a olhar para ela. Acho que nem mesmo ela acredita que está, aqui, a celebrar junto com os outros. Mais, a partilhar esperança com os outros. Ela e a Ângela dinamizam uma roda de cadeiras bastante peculiar, onde partilham histórias sobre o planeta Terra com quem as quiser ouvir. Contam as coisas boas, mas também as menos boas. O que importa é contar a verdade e fazer com que os ouvintes se agarrem à esperança de um futuro melhor. A ideia, na verdade, foi da Ângela, que conduziu as outras duas sessões anteriores sozinha. Porém, quando a abordei sobre a possibilidade de vir a ter uma colaboradora, ela nem pestanejou. Aceitou de imediato. Apesar da parceria ter demorado a arrancar, pelas inúmeras barreiras que a Sra. Prazeres construiu à sua volta, impedindo-se de ser feliz, parece que esta tem tudo para dar certo. A roda não tem nem uma única cadeira vazia.
− A apreciar a tua genialidade? – O Salvador sussurra-me ao ouvido. Um calafrio percorre todo o meu corpo na antecipação do seu toque que não chega.
Volto-me para trás e jogo os meus braços em torno do pescoço dele. Os meus lábios reclamam os dele, sem qualquer tipo de pudor ou constrangimento.
– Aurora, já te disse que esta foi a melhor ideia que já tiveste até agora?
− O quê? Beijar-te? – retruco de forma travessa.
− É justo. Então, a segunda melhor ideia que já tiveste − emenda, entrando na brincadeira.
− Acho que só faz sentido ser assim, sabes? – O meu tom de voz assume uma posição mais séria. − Uma reunião semanal onde todos têm algo a dizer, onde verdadeiramente se partilham conhecimentos, histórias, feitos, talentos... − Os meus olhos varrem o espaço à nossa volta. − Deveria ter sido assim desde o início.
Com algum pesar, contemplo o Leandro e a Olívia, de cara trancada, num dos cantos da sala. Percebo que tentam dissimular o seu interesse por tudo isto. Os braços cruzados sobre o peito a realçar o quanto querem se manter afastados de uma sociedade em que dizem não se rever. Ao Leandro, certamente que o incomoda a dissolução da hierarquia social da nave. O fato de não estar acima de ninguém mexe com o seu ego exacerbado. Mas à Olívia, não. Ela pouco se importa com o tipo de sociedade em que vive. Não, o que a deixa realmente inconformada é a forma como toda a comunidade me passou a reverenciar depois de tudo o que fiz para conseguir trazer a verdade ao de cima.
O Salvador segue o meu olhar e suspira pesadamente.
− Eles não vão mudar nunca − diz, deslizando o meu queixo para que volte a fitá-lo. – Já foram corroídos pela presunção e inveja.
Anuo tristemente. Essa constatação não se coaduna com a minha esperança de que toda a humanidade pode aprender e evoluir ao perceber os erros dos outros. Mas talvez assim faça mais sentido. Afinal de contas, isso comprova a repetição de erros crassos na história da humanidade, como a existência de mais do que uma guerra mundial.
− E confesso que gostei de ver o ataque que deu na Olívia quando percebeu que a esmagadora maioria votou em ti para 1ª Comandante. Parecia que ia enfartar. – O Salvador ri-se, mas eu não me junto a ele. Sim, deu até um certo gostinho, mas não vou admitir isso em voz alta.
− Mas eu não sou 1ª Comandante – contra-argumento.
− Já sei. Mas para mim o nome que dás ao cargo que ocupas é irrelevante.
Pode parecer irrelevante, mas não o é para mim. Foi essa a minha única condição para aceitar o lugar. Não seria uma comandante, não iria comandar nada, muito menos pessoas. Não seria uma chefe, mas antes uma líder. Não ia mandar em ninguém, mas antes orientar.
Guia, foi esse o termo que escolhi. Muitos continuam a ver-me como 1ª Comandante, porém com o tempo perceberão a diferença e esse título figurará apenas em registos antigos. Uma simples memória do passado.
− Completamente irrelevante – reforça o Salvador, antes mesmo de eu abrir a boca para explicar mais uma vez a importância da nomenclatura.
Começo a achar que só o faz para me espicaçar. O olhar de malandro que me lança confirma as minhas suspeitas. Belisco o braço do meu namorado, contudo o máximo que lhe consigo arrancar é um ataque de riso. Inevitavelmente, junto-me a ele.
− Vamos? – questiona-me ao puxar o meu corpo para mais junto do dele. – Tenho uma coisa para te mostrar – murmura docemente, fazendo-me estremecer de antecipação.
Agarro a mão dele e deixo-o guiar-me dali para fora. Porque na nossa relação não existe apenas um guia, somos dois a desempenhar com afinco essa função. E, sinceramente, na comunidade essa verdade também se aplica. Tenho dois assessores bem competentes que guiam tanto ou mais do que eu.
− Aquilo é o que eu estou a pensar que é? – A minha voz sai quase esganiçada, tamanha é a emoção.
Corro para o painel para analisar as características do objeto esférico que aparece no horizonte.
"Diâmetro médio de aproximadamente 12 742 km".
"Existência de um satélite natural com 27% do diâmetro do planeta".
Juntando esses dados concretos, aos cálculos executados minuciosamente pelo processador do painel relativamente ao movimento de translação e rotação do corpo celeste, tudo indica que estamos perante um planeta bastante idêntico à Terra.
− O teu pai e a equipa de navegação mandaram para análise as substâncias que existem nesta zona do espaço. − Volto-me para o meu lado direito, encontrando o Salvador muito mais perto de mim do que esperava. Sinto um orgulho exacerbado encher o meu peito ao ouvir a referência ao meu pai. Os meus assessores só poderiam mesmo ser eles os dois. − E todos os testes deram positivos. – Sinto vontade de saltar para o colo do meu namorado, mas contenho a minha felicidade, que se manifesta através do maior sorriso que já coloriu alguma vez o meu rosto. − É mesmo o planeta que procuramos há tantos anos. É o planeta dos teus bisavós.
Eu sabia que este dia chegaria. Contudo, por mais que sonhemos, por mais que idealizemos sobre uma realidade futura, ela nunca é a realidade. É apenas uma mera aproximação. A sensação que doma, neste momento, o meu corpo por inteiro é completamente nova. Não existem sequer palavras que o consigam descrever. E, sim, os meus bisavós paternos ficariam radiantes pela prova concreta da existência do planeta com que tanto sonharam. Porém, eles foram apenas os nossos guias, o planeta não lhes pertence a eles.
− Não, é o planeta de todos nós – falo, por fim, sentindo a humidade a assomar-me aos olhos.
O Salvador coloca um braço em torno da minha cintura e puxa-me para ele. Aninho, confortavelmente, a minha cabeça sobre o seu peito quente, e fito o objeto escuro e inerte ao longe. Não é um simples objeto. E pode parecer escuro, mas terá certamente muita luz.
‒ Há muito que nos mantínhamos no escuro – reflito em voz alta. Todas as verdades assustadoras que se mantiveram ocultas, os atos desumanos que passaram incólumes, as regras descabidas e injustas que moldaram a forma de pensar e agir de toda uma sociedade... Praticamente meio século, não de neblina, mas de total obscuridade. Mas agora... − Isto é o nascer de um novo dia. Finalmente chegou a aurora.
A verdadeira aurora, concluo ao pensar no simbolismo que o meu bisavô atribuiu ao meu nome. O nascer do dia que ELE idealizou.
‒ Para mim, a Aurora já chegou há mais tempo ‒ A voz introspetiva do Salvador vibra quase impercetivelmente no meu rosto. Se não tivesse sentindo, talvez julgasse que não havia falado de todo.
Afasto a cabeça do calor do seu corpo e sou rapidamente recebida por um azul eletrizante que me deixa inebriada. Quando me afaga ternamente o rosto, percebo que se está a referir a mim. Que eu sou a "aurora" da vida dele.
Fecho os olhos e deixo-me envolver na sensação do toque dele. Os seus dedos passam sobre os meus lábios ligeiramente entreabertos e todo o meu corpo se manifesta, invejoso por apenas a minha boca receber tamanha atenção. Não vejo nada, mas isso não me impede de sentir.
O Salvador ensinou-me a sentir, muito antes de ser capaz de ver. Eu andava de um lado para o outro na nave, com os olhos bem abertos, mas nada via. Pior, eu simplesmente não sentia. O ritmo da minha vida acelerou com a entrada dele no meu mundo. Ele agitou-o, virou-o de cabeça para baixo, ousou modificar estruturas que eu calculara serem fortes e definitivas. Ele abalou todas as minhas certezas para colocar no lugar tantas, mas tantas dúvidas. Eu e ele, juntos, trilhamos um caminho que levou a comunidade até à luz. Mas muito antes de lá chegarmos, o Salvador levou-me a ser mais madura e segura de mim própria. Ele ajudou-me a ver e a sentir coisas que nunca ousara sequer imaginar, implantando apenas uma certeza em todo o meu ser.
Abro os olhos e sorrio com a imagem perfeita que recebo do homem magnifico que me acompanhou nesta inesquecível e tão marcante travessia. E quando ele me sorri de volta, a indubitável certeza agita-se dentro de mim. Sim, ele tem toda a razão. A MINHA "aurora" chegou muito antes...
Enquanto nos perdemos nos braços um do outro, a nave vai se aproximando do nosso destino. Uma nova casa nos aguarda. Não posso ser ingénua, agora. Sei que nos esperam muitas agradáveis surpresas, mas também bastantes desafios e, muito provavelmente, alguns perigos. O mundo não é feito apenas do lado bom da vida e talvez sejam justamente as coisas más que realcem o valor inestimável de cada segundo que passamos a sorrir. Ou, neste caso, a beijar a pessoa que amamos.
FIM
E assim chegamos ao fim. Muito obrigada a todos aqueles que não desistiram da história e continuaram até ao final. Esta foi a minha primeira obra completa e foi um processo bem longo de escrita. Com ela eu senti que evolui bastante como escritora e, só por isso, "Aurora" será sempre muito especial para mim.
Um especial agradecimento a @susan_me, que foi comentando e interagindo sempre em todos os capítulos. Isso fez com que eu me sentisse acompanhada nos meus devaneios literários kkkkkkk
Efetivamente, o que faz de uma obra literária um livro é precisamente os leitores, sem eles, existem apenas palavras abandonadas no papel. Um escritor é alguém que partilha os seus pensamentos, inquietações, um pedaço da sua imaginação ou da sua realidade. Por isso, esta partilha que faço com vocês. Mais uma vez, muito obrigada!
Para quem quiser continuar me acompanhando, tem um novo livro que estou a escrever no wattpad: "A Bela Redoma", que já está publicado até ao capítulo 16. Sendo consequente a "Aurora" está bem melhor desenvolvida e com um melhor nível de escrita. Já ganhou até um 2º lugar num concurso 👏❤
Então, espero vocês por lá.
Isto não é um adeus, mas um até já 😍
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