Capítulo 38
Avanço pelo corredor largo e iluminado com os olhos presos no chão. De vez em quando, ergo a cabeça num movimento rápido para perscrutar os nomes presentes nas pequenas placas digitais que antecedem cada porta por que passo.
O refeitório está quase na sua hora de funcionamento, por isso não são muitos os rostos que passam por mim. E eu, para dizer a verdade, tento não me fixar em nenhum por mais tempo do que o necessário. Procuro um único rosto e até agora nada. Receio que não a vá encontrar a estas horas no quarto, mas ainda assim tenho que tentar.
Detenho-me junto à porta que procurava.
Não sei como me vai receber. São tão poucas as pessoas com que tenho falado ultimamente. Consigo contá-las pelos dedos das mãos.
Respiro fundo como se fosse entrar numa zona onde o oxigénio é escasso. Sei que não o é, mesmo que nunca antes tenha passado para além desta porta. Nunca me passou pela cabeça que algum dia o fosse fazer. É uma daquelas coisas que sabemos serem possíveis, mas não muito prováveis.
Sem perder mais tempo, bato à porta.
− Entre – ouço numa voz abafada pelo metal frio da porta, alguns segundos depois.
Entro num quarto muito semelhante ao dos meus avós. Deitada sobre a cama consigo vislumbrar a Sr.ª Prazeres, que fita o teto sem se preocupar com a minha presença. Por momentos, penso se com a idade se aguçam sentidos que nos permitem ver e saber de coisas que de outro modo seriam impossíveis. Saberá ela que sou eu, a Aurora, a intrusa que lhe acaba de invadir o seu espaço mais privado?
− Peço desculpa se estiver a incomodar... − sussurro quebrando o silêncio sagrado que imagino ter sido a sua única companhia durante longos minutos, quem sabe horas, até eu chegar. Não acho que seja o silêncio para ela o mais valioso, mas antes o que este permite. Voltar a ver pessoas, locais que já mais poderá voltar a ver, senão nas suas preciosas memórias, que só a abandonarão na hora da sua morte.
− Aurora?! – Atónita vira o seu rosto para mim. Apesar da pouca luz no quarto, as rugas que cobrem a pele da sua face tornam-se visíveis, fazendo-me recordar que é a pessoa com mais idade na nave.
− Sim, sou eu. – Sinto a pele ruborizar-se-me de vergonha. Sinto-me tão mal por estar a incomodá-la. É claro que ninguém na comunidade ficaria contente se lhes entrasse pelo quarto adentro. Não agora, depois de tudo... Só pensei que com a Sr.ª Prazeres fosse ser diferente.
− Senta-te aqui, minha querida − pede-me gentilmente, pousando a sua mão enrugada sobre um pequeno espaço na cama.
Confusa, sem saber muito bem o que pensar, limito-me a acenar afirmativamente com a cabeça e obedeço ao seu simples pedido. Talvez não pense como os outros, concluo.
− Confesso que não esperava que um dia me viesses procurar. – Estou sentada com as pernas entrecruzadas uma na outra, e o meu joelho direito raspa ao de leve as cobertas que cobrem o pequeno corpo da Sr.ª Prazeres. − Suponho que alguma coisa tenha mudado... − acrescenta, procurando nos meus olhos vestígios da mudança de que fala.
De facto, à medida que o tempo passa, tudo parece mudar cada vez mais. Não aqui, neste espaço e tempo em que nos encontramos, onde tudo permanece exatamente igual. É o nosso passado, ou aquilo que eu julgava ser o nosso passado, que se vai transformando à medida que vou avançando pelas páginas escritas pela minha bisavó.
Foram tantas as coisas que aprendi nestes últimos dias... Tanta informação num tão curto espaço de tempo. Parece que a minha vida avançou, que eu própria me vou tornando numa pessoa diferente, sem ter de fazer nada para isso, além de ler.
Nunca antes havia pensado que para estarmos hoje, aqui, tinha sido necessário resolver tantos problemas. Muitas vezes, a minha bisavó pensou estar num beco sem saída, a ponto de desistir, mas nunca o fez. Ela e a equipa que formou tiveram que arranjar solução, primeiramente, para todas as questões inerentes ao desenho de um protótipo de uma nave mais rápida e mais segura do que qualquer nave desenhada até à altura, resistente a possíveis colisões com corpos celestes e com um nível de oxigénio constante, independentemente do número de pessoas a bordo. E ainda formas de armazenamento e geração de energia. Esses, entre outros problemas, eventualmente acabaram por ser resolvidos. No final das contas, acabaram por demorar cerca de 5 anos só para fazer e testar um protótipo que fosse 99% fiável. Se era possível que algo desse errado? Era, mas a probabilidade era muito pequena.
Agora, também sei quem eram as outras dez pessoas que formaram o Conselho (designado assim pela minha bisavó), mas apenas reconheci o nome de dois dos integrantes. Miguel Serrano, o inicial 1º Comandante da nave, o tal engenheiro mecânico que havia trabalhado na NASA e que acabou por se tornar num dos melhores e mais próximos amigos da minha bisavó. E António Caetano, atual 2º Comandante, um dos dez melhores físicos atómicos do Planeta Terra e o principal responsável pelo facto de, hoje, não nos faltar oxigénio. Não sei ainda o que terá acontecido aos outros elementos.
− Eu mudei − confesso-lhe, confiante como nunca nessa verdade.
− Então estás aqui porque...
– A Sr.ª Prazeres, − interrompo-a, não conseguindo conter a minha urgência de saber mais, − não era só uma conhecida da minha bisavó. Era melhor amiga dela.
Todas as amigas da minha bisavó lhe viraram as costas quando esta lhes confidenciou o grande segredo em que estava envolvida. Não acreditaram nela e não quiseram embarcar nem, muito menos, compactuar com aquilo que designaram de loucura. Todas, menos uma.
− Tinha eu seis anos quando a conheci. – Vislumbro-lhe uma lágrima suspensa no olhar. Não sei se de tristeza, se de saudade, se de ambas. – Era quatro anos mais velha do que eu, mas isso não nos impediu de travar uma amizade. Tornámo-nos inseparáveis... − hesita, permitindo por fim soltar a lágrima que parecia não ter força suficiente para se separar dos seus olhos castanhos. Atrás dela vêm outras, num deslizar suave, sem pressa. São olhos experientes, que já viram demais, que já choraram demais. – Sempre quis ser como ela, forte, corajosa e lutadora. Mas nunca o fui.
− Todas lhe viraram as costas, menos a senhora.
− Então tu sabes... − conclui sem um pingo de surpresa na voz. É apenas a confirmação de algo que já desconfiava. – Claro, ela era a minha melhor amiga. Mas não serei hipócrita. Eu tinha os meus motivos. No fundo, acho que queria tanto isto quanto ela. Uma nova oportunidade de vida era tudo o que eu mais desejava.
− Então porque é que eram raras as vezes em que as via juntas? Quer dizer, se eram assim tão amigas... Não faz sentido.
− Fiquei magoada com ela por uma estupidez. Depois quem a magoou fui eu, ao virar-lhe as costas tal como todas as nossas outras amigas o tinham feito. Mostrei que não era assim tão diferente delas.
− Não consigo pensar em nada de tão grave que pudesse separar uma amizade tão forte e duradoura como a vossa... − explico confusa. A amizade delas faz lembrar-me a que tenho com a Analu. Somos como irmãs, mas elas também o eram, os relatos da minha bisavó assim o provam. Sempre pensei que a nossa amizade fosse inabalável e isto tudo faz-me pensar que não existem amizades à prova de fogo.
− Isso agora não importa. É passado e não o posso alterar. Pelo menos, antes... − a sua voz vacila e vejo a dificuldade que tem em continuar aquele pensamento. A agonia transparece no seu rosto. − Antes da morte dela, − continua ao recuperar o autocontrolo, − disse-lhe tudo o que queria dizer e perdoámo-nos mutuamente.
− Lamento... − O que mais poderia eu dizer? Vim à procura de respostas e acabei por causar sofrimento em alguém. Vim abrir uma ferida, que talvez já tivesse sido fechada há muito. Fui egoísta. A minha curiosidade mais uma vez levou a melhor.
− Não − apressa-se a dizer. A sua mão meiga pousa no meu joelho. As calças que trago vestidas impedem-me de sentir a textura da sua pele. Contudo, o calor e peso da sua mão surtem o efeito desejado e uma serenidade relaxante invade todo o meu corpo. – Não te sintas mal por mim, Aurora. Gostei muito da tua visita. E pode não parecer, mas fizeste-me muito bem.
− Se assim é, poderei vir mais vezes. Fazer-lhe um pouco de companhia, se quiser − sugiro ao perceber o quanto se deve sentir sozinha. Sem ter marido, nem filhos. Sem qualquer família para a apoiar. Sem ter com quem partilhar as suas histórias, as suas alegrias, mas também as suas tristezas.
− És muito jovem e eu sou uma pobre velha amargurada. Sei que agora pode ser difícil, mas tens que voltar a sorrir. Voltar a viver o presente, sem te prenderes a um passado que nem sequer te pertence. E eu só servirei para te afastar ainda mais do aqui e agora.
− Acontece que a comunidade inteira não estava a gostar da forma como eu estava a viver o meu presente.
− Estás a seguir o mesmo caminho que a tua bisavó. Os tempos são outros, mas as causas não são assim tão diferentes. Não desistas agora. Já te disse antes, tens a coragem da Celeste, e se não te perderes pelo caminho, irás conseguir mudar o mundo, tal como ela o fez.
Não consigo articular qualquer resposta. Limito-me a anuir. Uma parte de mim grita para sair dali e voltar para o conforto do meu quarto, onde nada, nem ninguém exige nada de mim. Onde nada, nem ninguém espera nada de mim. Não obstante, o peso das suas palavras impede-me de me levantar.
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