Conflito: O homem contra si
"Não sei como devo iniciar esta carta, sequer acredito que Vossa Alteza realmente a receberá.
Se isso aconteceu, imagino que esteja surpreso, afinal, sou a única além de ti que sabe o que está escrito aqui, em um alfabeto ainda desconhecido pelo resto do mundo. É por este motivo que estou escrevendo, para que ninguém além de Vossa Alteza entenda o que desejo lhe falar.
Para facilitar nossa comunicação, me apresento como Gong So Ji. Não venho da família Gong, porém, adotei o sobrenome pelo profundo significado que este transmite.
Sem mais delongas, peço-lhe que me ajude. Um grupo de homens me levou, contra minha vontade, para um lugar que desconheço e estão planejando me vender para uma casa de gisaengs. Há muitas pessoas presas aqui e elas sofrem, imagino que suas esperanças já se foram, pois nenhuma delas deseja lutar pela liberdade. Não sou escrava e nem uma serva, sequer faço parte desta nação e recentemente descobri que esta situação por si só se torna um dos piores crimes que se pode cometer. Pude escrever esta carta porque subornei um dos homens que guardam meu cativeiro.
A verdade é que nem mesmo eu acredito estar aqui, pois esta é uma época muito distante de minha realidade. Se eu realmente, de alguma forma que ainda não sei, me transportei até Joseon e Vossa Alteza esteja lendo esta carta agora, então significa que vossa existência é real e que eu sou de um futuro muito distante, onde a escravidão tornou-se proibida e a monarquia é apenas história.
Esta carta é a prova de minha verdade. Por favor, Vossa Alteza, mesmo que não tenhamos nenhuma conexão além deste alfabeto, peço-lhe que me salve deste lugar horrível e me ajude a encontrar um meio de voltar para o meu tempo.
Você é minha única esperança, Príncipe Chungnyeong."
O jovem de apenas 21 anos estava atônito, lendo e relendo a carta várias vezes, tentando encontrar algum sentido em toda aquela situação.
Quase seis horas após a escrita da carta, o fio de esperança que Amélia segurava com força em seu coração finalmente chegara às mãos do príncipe. Não acostumada com este tipo de comunicação, que poderia demorar de horas a dias apenas por uma resposta, ela pensava que ele nem mesmo havia recebido seu apelo.
- Já descobriu quem enviou estas cartas? - o príncipe pergunta a Baek Ho, seu melhor amigo e fiel protetor, que o acompanha desde que tinham sete anos, enquanto queimava o papel fino em uma vela ao lado da mesa.
- Mandei dois homens o seguirem secretamente, teremos respostas ao anoitecer. Não pude ver seu rosto, pois ele estava com trajes de luto. Peço desculpas. - Baek Ho se curva - Aliás, Vossa Alteza, o senhor se sente bem? Continua tendo sonhos estranhos?
- Pode me chamar pelo nome quando estivermos sozinhos, sabe disso, Baek Ho. - Chungnyeong sorri brevemente, puxando do envelope a segunda carta, esta escrita em caracteres chineses - Estranhamente, esta noite foi serena, dormi muito bem.
Os sonhos do jovem começaram há dois dias, quando, repentinamente, se viu dentro de uma residência estranha. Ele sabia que era uma residência por conta de seus móveis, mas o ambiente era completamente diferente do que estava habituado. Olhando pela abertura na parede, que refletia o cenário exterior como a superfície lisa de um lago calmo, ele viu o céu noturno, repleto de estrelas, mas os edifícios estranhos e iluminados o horrorizavam, como monstros em seus pesadelos.
O vibrar de um objeto o assusta, trazendo sua atenção a uma sombra que se mexe na cama, ao lado de uma pequena luz que se acendeu em meio aos tecidos estendidos. Ao se aproximar da sombra, o jovem encosta em uma caixa estranha, que cai no chão com um baque, ecoando o barulho pelo cômodo e fazendo a pessoa deitada se mexer ainda mais.
"- Quem me trouxe aqui? Foi você?" Ele perguntou, mas não obteve respostas.
"- Quem é você?" Uma voz feminina respondeu, mas não de um jeito que ele entendia, o que o fez ficar furioso.
"Um idioma estrangeiro? Bebi de mais e fui sequestrado após o jantar do Ministro dos Ritos? Aquele desgraçado me pagará com sua vida!" Ele pensa, empunhando sua espada imediatamente, com a intenção de eliminar a pessoa em sua frente e sair o mais rápido possível daquele lugar peculiar.
"- Não faz isso! Eu... Eu te dou dinheiro! Quanto você quer? Só não me mata, por favor!!" Uma parte do rosto de uma mulher é iluminado pela luz exterior, mostrando longas mechas escuras, enroladas e bagunçadas sobre os ombros da figura.
Ela parecia tão assustada quanto ele. Se fosse uma pessoa perigosa, estaria o encarando com arma em mãos, ao invés de estar fugindo de sua espada. Por um momento, empatia e culpa invadiram seu coração.
"- Quem é você?" Ele pergunta, dando um passo em direção à garota, mas sua visão é coberta por um tecido jogado sobre o mesmo.
Tentando se desvencilhar do pano pesado, o príncipe sente algo acertar sua cabeça e acaba tropeçando em um objeto no chão, caindo de costas sobre sua própria espada.
A dor agonizante do metal perfurando suas costelas o fez acordar em gritos, sendo socorrido pelo eunuco chefe responsável por seu palácio e por dezenas de guardas, que pensaram que os aposentos do príncipe estavam sendo invadidos.
- Você não se lembra de mais nada? Não conseguiu ver o rosto dela?
- Não, estava muito escuro.
"Estamos com sua noiva, nos encontre antes do pôr do Sol no grande poço seco. Traga cinquenta lingotes de ouro, venha sozinho."
- Ei, Baek Ho, parece que terei uma segunda consorte. - ele mostra a segunda carta ao amigo.
- Sua Majestade, o Rei, não emitiu nenhum comunicado sobre um segundo casamento. Ele parece estar contente em ter Lady Shim como nora.
- São apenas acordos políticos e, graças às bajulações de Shim On, ele está prestes a se tornar o Primeiro Ministro e eu tenho certeza que Park Eun ficará furioso por perder seu posto.
- O que faremos?
- Não podemos deixar minha noiva em apuros, pegue os cavalos e traga dois homens. Algo me diz que isso vai ser muito interessante... - ele sorri, se levantando e indo até o cômodo secreto atrás do quarto, se preparando para sair.
Enquanto isso, no mesmo momento, Amélia era levada por dois homens pela floresta, em direção ao velho poço. Sentia fome, sede e seus pés doíam, mas seus raptores não tinham nenhuma compaixão, fazendo-a seguir os cavalos a pé, sendo puxada por uma corda presa em seus pulsos.
- Quero água... Me dê minha bolsa...
- Isso? Isso não é mais seu. - um deles balança a bolsa, pendurada em seu ombro esquerdo - Seja lá o que estiver aqui, iremos vender e ganhar um bom dinheiro, quando soubermos como abrir.
- Não tem nada de valor aí, e o que é valioso pra mim, não é pra vocês. Não irão ganhar dinheiro com coisas que não funcionam aqui.
- Isso não é da sua conta. Agora cale-se, ou faremos os cavalos correrem!
- É melhor não levarmos ela com muitos ferimentos, não quero que eles fiquem tão irritados assim. - o homem, que antes negociara o envio da carta com Amélia, dizia com um certo medo em seu tom de voz.
- Foi você quem armou isso, sem o chefe saber, e agora está andando para trás? Estamos na metade do caminho! Acho bom você dividir bem o ouro comigo. Sinto que estou traindo a confiança do chefe...
- Isso é traição, de qualquer forma. - Amélia murmura, tropeçando em uma raíz exposta.
O trajeto levou algumas horas e não demorou muito para que chegassem ao ponto de troca. Enquanto os dois comiam bolinhos de arroz e carne seca, Amélia pensava apenas se todo aquele plano daria certo. As chances dela realmente ser salva, ao invés de condenada, eram muito pequenas, tão quanto suas esperanças de sair dali viva.
- Quanto vocês vão receber por mim, posso saber?
- Muito mais do que receberíamos se você fosse pra casa das gisaengs.
- Ah... Entendi... Então, podem soltar minhas mãos?
- E deixar você fugir?
- Pra onde eu iria? Estou tão faminta, que sinto que vou desmaiar a qualquer momento. Vocês estão a cavalo e, da última vez que tentei fugir, vocês me acertaram com uma pedra!
- Tudo bem... - o negociante deixa os restos de alimento de lado e vai até a jovem, cortando suas cordas com uma pequena faca.
- Ei, Nam Tae! Você é servo dela, pra fazer tudo o que ela mandar? Idiota! - o outro homem reclama, já perdendo a paciência - Já basta estarmos aqui, sem saber se o que ela disse é verdade, isso não é o suficiente?
- Ah... Seu nome é Nam Tae... E o dele? - Amélia pergunta baixo, vendo o mesmo se levantar e encarar o parceiro.
- Mi...
Antes que pudessem discutir sobre aquela situação, os capangas são surpreendidos por dois homens, que saem dos arbustos e os rendem no mesmo instante.
- Quem são vocês? - Nam Tae desembainha sua espada, tomando uma posição defensiva.
- Estamos aqui em nome do Grande Príncipe Chungnyeong, para buscar sua noiva e nossa futura princesa. Aceitem a recompensa e a deixem conosco! - Chungnyeong diz com um tom autoritário, recebendo um olhar desconfiado de Baek Ho.
- Como saberemos que vocês são do palácio mesmo?
- Vocês não precisam saber, basta aceitarem o ouro. Há dez lingotes a mais do que pediram, agora peguem e vão embora! - o príncipe joga o saco de ouro aos pés dos capangas, desviando seu olhar para a mulher sentada na raíz grossa de uma árvore, se perguntando como alguém assim poderia saber um de seus segredos mais profundos.
- Ei... Ei, Mi Ran, são trinta pra cada, hum? - Nam Tae pega o saco de pano e conta os lingotes, rindo feito alguém que acaba de ganhar algo grandioso.
- É sério?
- Sim! Veja! Vamos voltar. Falamos pro chefe que ela fugiu e talvez ele não nos puna tão gravemente, hum?
- Você ainda quer voltar? Ha! Pode ir sozinho, irei para bem longe. Quem sabe você não me veja entre os Yangban* um dia, uh? Haha! Então... Podem ficar com ela! - Mi Ran pega sua metade de dentro do saco e guarda os lingotes em uma pequena bolsa pendurada em sua cintura, se curvando para os dois que haviam chegado e saindo.
- Bom, também vou indo. Boa sorte, estrangeira. - Nam Tae acena para Amélia e sai andando.
- Ei, devolva a minha bolsa e meu anel! - a jovem grita, se levantando rapidamente e perdendo totalmente o equilíbrio, por conta da repentina queda de pressão que a atinge.
- Não se preocupe, eles não irão muito longe. - assim que a frase do príncipe termina, o som de galhos de quebrando e gritos altos é ouvido não muito distante - Baek Ho, ordene aos homens que descubram aonde é o cativeiro e libertem os servos. Mate os sequestradores, se for preciso. Não se esqueça de trazer os pertences que foram roubados.
- Sim, senhor. - o leal amigo se curva e corre floresta adentro, deixando apenas os dois a sós.
Chungnyeong se aproxima e estende sua mão para Amélia se levantar, aproveitando a oportunidade para observar seus traços faciais e descobrir qualquer tipo de falha que podesse mostrar que aquilo era uma mentira feita para pegá-lo mas, pelo contrário, ele viu uma expressão de medo e desconfiança, naqueles grandes e redondos olhos castanhos que o observava, também com tamanha curiosidade.
- Você vai me denunciar?
- E perder todo o trabalho que tive para te resgatar?
- O Terceiro Príncipe não está irritado, por fazer parte de tamanha mentira?
- Ele não sabe sobre você, sua carta foi interceptada antes de chegar no palácio do príncipe.
- Então, como vocês sabiam sobre mim?
- Junto com a carta, havia um pedido de resgate. Eles mencionaram sua posição e este local para a troca.
- E qual é o seu nome?
- Do.
- Do de quê?
- Como assim?
- Nome de família.
- Apenas Do. E você?
- So Ji.
- Apenas So Ji?
- Sim, apenas So Ji.
- Acredito que este não seja seu nome verdadeiro, mas não irei questioná-la sobre isso. Quero que diga somente duas coisas: de onde você é e porque está aqui?
- Não está surpreso por ver uma estrangeira? As pessoas daqui parecem ficar sempre em choque, antes de pensarem em me matar ou me denunciar.
- Vi dois dos seus pendurados ontem. Já estou acostumado.
- A ver estrangeiros mortos? Você também não parecia desconfortável, pedindo ao seu capanga pra matar meus sequestradores... - ela cruza os braços, ignorando completamente a espada ainda na mão de Chungnyeong.
- Você está irritada?
- É claro! Que tipo de pessoa acha normal ver gente ser morta por qualquer motivo? - os olhos grandes de Amélia ficam ainda maiores - Uau... Vocês realmente eram cruéis, não é a toa que quase ninguém passava dos 40.
- O que quer dizer com isso?
- Nada! Esquece!
- Por que está brigando comigo, se eu te salvei?
- Ah, obrigada! Mas isso não tira meu direito de ficar brava!
- Ha! Vocês estrangeiros são cheios de si, não acha? Não podem ver um lugar diferente, que já chegam invadindo!
- Ah, cale a boca! Você não sabe o que é ter um país invadido e ver seu povo ser dizimado de verdade! Não quero diminuir seu sofrimento, mas pelo menos agradeça por conseguirem manter as tradições e a homogeneidade de vocês!
- Do que está falando?
- Esquece!
- Você ainda não respondeu às perguntas que fiz!
- Também não vou responder! Não é da sua conta!
- Ingrata!
- Insensível!
- Senhor, o que está acontecendo? Devo interferir? - Baek Ho retorna e vê a cena inacreditável da estrangeira discutindo com o príncipe, como se fossem velhos conhecidos que discordavam sobre o resultado de um jogo de apostas.
- Não! - ambos respondem, deixando o guerreiro em choque.
- O céu escurecendo, devemos retornar antes do toque de recolher.
- Vamos mesmo. Não quero passar mais tempo na presença de alguém tão desagradável, tsc... - o príncipe guarda sua espada e pega o saco de ouro da mão de Baek Ho, seguindo em frente no caminho até onde seus cavalos estavam presos.
- Olha quem fala, aquele que sai discriminando qualquer um, sem saber de nada!
- Seus pertences, senhorita. - Baek Ho estende a bolsa e um pedaço de tecido enrolado, com o anel dentro, olhando apreensivo para a mulher irritada que os seguia em passos firmes.
- Obrigada, pelo menos você é educado, diferente de alguém aqui. - Amélia diz em voz alta, apenas para irritar mais o jovem que desamarrava o cavalo da árvore.
De certa forma, a cena era deveras cômica. O príncipe não costumava permitir que mulheres e seus subordinados falassem naquele tom com ele, mas com Amélia era estranhamente diferente. Ele não estava realmente tão irritado assim, sentia como se estivesse discutindo com seus irmãos mais novos por coisas triviais. Já Amélia, com seu pavio curto e sem papas na língua, simplesmente falava o que tinha na cabeça, sem se importar se a pessoa em sua frente era importante ou não; poderia ser até mesmo o Papa, que ela continuaria sendo a mesma pessoa. Ela não aceitava desrespeito a ela e a ninguém, preferia estar do lado certo e defender até o fim, mesmo que isso significasse risco a si mesma, ao invés de apoiar causas falsas e maldosas.
Embora ambos tivessem personalidades não muito diferentes, aprenderiam muito um com o outro e, aos poucos, consertariam cada ponto fraco e cada preconceito que tinham um contra o outro, mesmo que este processo fosse o mais difícil de todos.
O Destino, olhando de longe, sabia muito bem o que aconteceria a partir daquele momento, mas não podia interferir. Não mais. Precisava aguardar, com perseverança, o trajeto de toda essa história chegar ao fim, para que pudesse, pouco a pouco, se redimir do crime que cometeu e que acarretou toda essa desgraça na vida de quem foi afetado por seu ato.
•••• ** Glossário e explicações ** ••••
Sobre a homogeneidade: Amélia quer dizer que se sente decepcionada pelo número de nativos que hoje existem no Brasil, ao contrário da Coreia, que conseguiu superar as invasões e permaneceu com seu sangue nativo, sem grandes mudanças. Ela não é contra a miscigenação, e sim contra a invasão forçada (como a dos portugueses etc).
Banggat (방갓): Chapéu de palha utilizado em período de luto. Era muito utilizado por pessoas que queriam se esconder, já que ninguém ousaria tirar o chapéu de um enlutado.
Yangban (양반): Classe mais alta da sociedade, abaixo apenas da realeza. Eram apenas 10% da população e tinham muito mais privilégios que as outras classes. Em outras palavras: os burgueses da dinastia Joseon.
Shim On: Primeiro Ministro e sogro do rei Sejong, pai da rainha Soheon, mais conhecida como Lady Shim. Foi torturado e executado entre o final de 1418 e o início de 1419 por traição; toda sua família foi condenada, exceto a rainha, que foi protegida pelo rei e por Taejong, que na época já havia abdicado o trono para Sejong, embora ainda tivesse grande influência.
Gong (恭): respeitoso, reverente.
Ouro: 1 lingote de ouro de 300g equivale a 60 mil reais, considerando o preço por grama atualizado, sem considerar o valor histórico. Eles receberiam o pagamento de R$3.600.000, com 60 lingotes de ouro.
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