VII. Deixo Tudo Para Trás
A chaleira elétrica desliga automaticamente com um estalo quando a água entra em ebulição. Observo o turbilhão de bolhas, esperando até que o líquido translúcido se acalme antes de o verter nas canecas com as saquetas pendentes. Ia aquecer água para o saco, mas agora aproveito e bebo também um chá. Estamos ambas a precisar.
Coloco um par de canecas no tabuleiro, onde o frasco de mel, as colheres e um cadinho branco repousam. Acrescento uns guardanapos ao conjunto e, com o tabuleiro na mão, avanço pé ante pé até à sala. Pouso tudo na mesa de centro, entre a televisão e o sofá. Adiciono mel na caneca azul de ar vintage, misturando antes de virar a asa na sua direção. Repito o processo para a caneca de um mostarda sujo, recolhendo-a com cuidado antes de me sentar no chão à sua frente, do outro lado da mesa de centro.
— O Kazu está um texugo.
Como que invocado pela menção do seu nome, Kazu mia ao entrar na sala. O volumoso gato preto e branco aproxima-se da Eva a trote, oferecendo pequenas turrinhas quando passa pelas suas pernas.
Ela inclina-se para recolher a sua caneca. Eu dou um gole no conteúdo da minha.
— Podes não falar mal do meu gato, por favor? Ele não está gordo, ele é naturalmente grande — rebato.
A sua mão afunda brevemente no pelo malhado do Kazu, massageando-o antes de se endireitar. O felino, minimamente satisfeito, dirige-se ao parapeito da janela para observar a comoção gerada pelos vizinhos lá em baixo.
— Ele rouba a comida do Lao, não rouba? Olha para ele, está tão magrinho que quase lhe sinto as costelas.
Estreito o olhar para ela quando faz a acusação, a mão livre a afagar o meu gato preto deitado no seu colo. Tinha demorado mais de 20 minutos para o Lao sair de cima da minha cama ao ouvir a Eva chamá-lo, entrar na sala e ultrapassar a sua desconfiança para se deitar no colo dela.
Kazu é, de longe, o mais sociável dos dois, sempre disposto a cumprimentar as visitas e receber atenção. Contudo, Lao é o mais sensível do par. Pode sentir-se inibido pela presença de estranhos ou de pessoas com tem menos contacto, mas consegue sempre identificar quem tem o pior humor na divisão e quem precisa do seu conforto.
A Eva ficou visivelmente mais calma depois do Lao se deitar no seu colo, como se aquele fosse o seu lugar predestinado, e ela agora diverte-se a percorrer a coluna do felino com os dedos. Se uma infeção não lhe tivesse corroído a cauda, obrigando à sua amputação, o prazer que o bichano está a sentir com o carinho seria muito mais evidente do que o lento oscilar do pequeno coto que lhe sobrou.
— Se tivesses uma gata, chamavas-lhe Lana ou Monsley? — pergunta, saboreando o gole de chá com mel que acabou de sorver.
Sorrio na sua direção.
— Tera.
Eva revira os olhos.
— Tu escolhes sempre os nomes das personagens secundárias.
— Admite que Kazu é melhor do que Conan!
Aproximo-me da mesa de centro para depositar a saqueta de chá no cadinho branco quando acho que o sabor está concentrado o suficiente. Eva interrompe as festas do Lao para fazer o mesmo.
— Verdade. Mas sabes que o nome dele supostamente é Kuzu e não Kazu, certo? A dobragem portuguesa é que lhe meteu o "a", felizmente.
— Felizmente!
Ambas rimos. O ambiente fica mais leve e deixamos que o silêncio preencha a divisão.
Eva dedica a sua atenção às carícias que faz ao Lao, bebendo ocasionalmente. Eu estudo-a. As suas feições brandas denunciam uma distância momentânea ao pânico que tinha sentido há pouco.
— Avisaste a mãe que vieste para aqui?
— Sim.
— E já decidiste o que fazer? — pergunto, com cautela, a minha voz num tom manso, como um fio de seda que percorre a sala.
Eva estremece. A mão que acaricia as costas de Lao, e que se encontra mais perto do seu estômago, tem um pequeno espasmo que trai a sua disposição.
— Não... Não quero ter de decidir! Porque é que isto tinha de me acontecer?
Levanto-me para lhe retirar a caneca das mãos antes que a sua agitação crescente derrame o pouco chá que sobra no tecido do sofá.
— Quem anda à chuva, molha-se, Eva — sibilo entredentes ao ajeitar a loiça no centro do tabuleiro.
Não é do meu feitio alfinetá-la, mas não consegui conter-me. Qual menina mimada, a Eva tem tendência para se esquivar das suas responsabilidades e da sua culpa nas matérias. Sempre fui para ela e para a Denise tudo o que elas precisaram de mim, incluindo alguém para partilhar o fardo das responsabilidades. Porém, este não é meu para carregar e não posso deixar que ela lave as mãos do ónus desta gravidez, indesejada, mas fruto de uma relação consentida, por muita pena ou simpatia que tenha por ela. A situação é demasiado séria para permitir que ela a empurre para debaixo do tapete e tente virar costas às consequências dos seus atos.
Eva range os dentes antes de levar as mãos à cabeça, agarrando os caracóis miúdos pelas raízes.
— Mas nós tivemos sempre cuidado, Sam! Eu tive sempre cuidado!
O meu coração contorce-se com a dor na voz dela. Instintivamente, tenho de lutar contra a vontade de lhe dizer as palavras que sei que ela quer ouvir, mas que, no fundo, não seriam verdadeiras.
— Sabes que os contraceptivos não são infalíveis...
— Mas eu sempre tive atenção a tudo! — guincha, o nível de histerismo a subir lentamente de tom. — À pílula, aos preservativos... Sempre fiz tudo o que devia!
As lágrimas tomam forma nos seus olhos novamente e as suas mãos largam as raízes do seu cabelo para as tentar apanhar. Agachada ao seu lado, esfrego a mão aberta nas suas costas em movimentos grandes, tentando transmitir algum apoio. No seu colo, Lao remexe-se. Está a ficar incomodado com o transtorno dela, mas ainda não é suficiente para se afastar.
— Só se... Ó céus, só pode...! Ele estava bêbedo. Estávamos os dois bêbedos... Ele disse que ia ser rápido... E-eu disse-lhe para n-não terminar c-cá dentro, para o t-tirar antes de a-acabar, mas e-ele não me q-queria dar o-ouvidos.... P-p-pensei que o t-t-t-tinha empurrado a t-tempo...
Os soluços da Eva são tais que me vejo obrigada a soerguer-me e abraçá-la. Perturbado, Lao salta do seu colo quando a minha irmã se vira na minha direção, agarrando a minha camisola como se de uma boia salva-vidas se tratasse.
— P-pensei que... N-n-não sei... E e-eu devo-me-me t-t-ter esquecido.... Sam...! Ó, céus...! SamSam, n-não quero ser m-mãe aos 24! Não p-p-posso...!
O meu rabo assenta na beira do sofá, as minhas pernas e joelhos em ângulos estranhos para amparar a totalidade do meu peso e parte do dela. Eva chora desafogadamente, o ranho, a baba e as lágrimas a encharcarem-me os ombros da camisola sem pudor. Eu tento embalá-la, para trás e para a frente, as mãos a desenhar círculos nas suas costas como lhe fazia quando era pequena e vinha ter à minha cama depois de ter um pesadelo.
Eu estou quase a fazer 29 anos, mas a Eva só fez os 24 há pouco tempo. Terminou o mestrado em Ciências da Comunicação pela vertente de Jornalismo no início do ano e agora está à procura de um estágio ou de um primeiro emprego. Tem a vida toda pela frente, o destino ainda por traçar. Para alguém cheio de sonhos e planos, uma gravidez inesperada pode realmente parecer o fim do mundo.
Nos meus braços, ela desfaz-se num pranto copioso, as mãos em punho a vincar-me o tecido nas costas da camisola, as suas lágrimas a pintar da cor do ferro as fibras habitualmente claras. Não lhe ofereço palavras de encorajamento, porque sei que não as precisa de ouvir. Este é o seu momento de fazer as pazes com a realidade e só me resta esperar.
Lentamente, o seu aperto na minha roupa afrouxa. As suas lágrimas ainda correm livremente e o seu corpo ainda é sacudido por soluços, mas a maior parte da histeria já se dissipou, deixando apenas uma reminiscência do pranto para trás.
Eu levanto-me para ir à cozinha buscar um copo de água, imaginando que depois de toda aquela desidratação, a sua garganta estaria mais seca que um deserto. Quando regresso, Lao amassa o pão de novo nas pernas da Eva, retornado da sua inspeção da janela onde o Kazu esteve sentado até decidir fazer uma sesta numa das cadeiras da minúscula mesa de jardim que tenho num canto da sala para o teletrabalho e as refeições. Eu e a Matilde nunca chegámos a comprar uma mesa decente para a sala, promovendo a mesa de exterior temporária a permanente com a nossa inação.
Entrego-lhe o copo, que ela esvazia em meia dúzia de goles. Lao termina a sua massagem ao decidir que é melhor deitar-se no sofá ao lado da Eva, com a lombeira encostada às pernas dela, do que no seu colo.
— Queres mais água?
A sua cabeça nega em movimentos curtos.
Suspiro. Afasto o saco de água quente que ficou esquecido entre as almofadas e no qual quase me sentei há pouco antes de me afundar no sofá. Mal as minhas coxas entram em contacto com a estrutura do móvel, os meus joelhos agradecem silenciosamente a folga.
— Tens três opções, Eva.
O seu olhar dispara na minha direção, os olhos arregalados, a respiração ainda descompensada do choro copioso. Vendo-a assim, sinto que acabei de fazer estalar um chicote junto a um animal de circo enjaulado. Seguro uma das suas mãos entre as minhas, tentando transmitir alguma segurança.
— Uma: podes ter a criança e criá-la tu. Ficas para sempre ligada ao Bruno, mas enfim, a criança não tem culpa da classe de ser humano que tem como pai....
Ela funga, enxugando o ranho e as lágrimas com um dos guardanapos que catou do tabuleiro na mesa de centro, entretanto.
— Não quero ter este bebé sozinha... — murmura, a voz rouca e arranhada a diminuí-la na minha sala modesta.
Sorrio-lhe antes de apanhar as lágrimas que lhe fugiram depois da sua mão livre tornar a encontrar o caminho até ao pelo do Lao.
— Não estás sozinha. Tens-me a mim, aos pais, à Denise, aos tios, aos primos... Família para te apoiar e para criar esse bebé não irá faltar.
Ela exala sonoramente, nervosa.
— Não sei quanto à mãe, mas o pai vai me matar quando souber— diz, os afagos no pelo negro do felino subitamente mais tensos.
— A mãe tem sempre os braços abertos, independentemente do tamanho da asneira que faças. Quanto ao pai, és a menina dos seus olhos. Ele é incapaz de te tocar com um dedo — tranquilizo. — Já o pulha do Bruno...
Nelson, o homem a que chamo de pai, sempre me viu e me tratou como uma filha, mesmo sem partilhar comigo uma única gota de sangue. Porém, a Denise e a Eva têm lugares especiais no seu coração, com os quais não quero nem nunca poderei competir. A Denise foi o bebé milagre, que surgiu numa tardia gravidez de risco à qual poucos esperavam que sobrevivesse e a Eva foi o primeiro fruto do amor que ele partilha com a minha mãe. A Eva, em especial, por ter sido a novidade, cresceu como "a menina do papá".
Quando ela apresentou o Bruno à família, eu tive de ajudar a mãe a mantê-lo sob controlo. Se eu nunca fui com a pinta do traste, o nosso pai muito menos. Quando soube que iam viver juntos, quase trepou as paredes. Imagino que será necessário um milagre para o impedir de fazer alguma ilegalidade quando descobrir que o miserável lhe engravidou a filha e fugiu para as colinas mal soube.
— É melhor que não apareça à nossa frente, mesmo — sentencia, meio a rir com pouca vontade, meio enfurecida. — Acreditas que nem veio no avião comigo? Saiu a correr mal lhe contei e nunca mais lhe pus a vista em cima. Tanto quanto sei, ainda está algures em Itália.
— E por lá pode ficar, que não faz cá falta.
Eva assente. Lao vira-se ao contrário no sofá para brincar com os dados que ela agita sobre o seu corpo. Eu sou afligida por uma nova onda de desconforto, mas não deixo que esta transpareça na minha postura.
— Segunda opção: tens a criança e abdicas da sua guarda, ou para algum parente ou para uma instituição — continuo. — Não sei como é que isto se processaria, teríamos de falar com um assistente social e eventualmente com um advogado, mas a família do Bruno, ou o próprio, se ele mudar de ideias entretanto, poderiam eventualmente pedir a guarda da criança. Não que não possa acontecer se decidires ser tu a criá-lo, mas ficam como potenciais guardiões da criança visto que são parentes de sangue.
Os olhos dela continuam fixos no Lao e no movimento das suas patas com unhas a precisar de ser cortadas. O felino, ignorante da nossa conversa, agarra o seu braço nu com as patas dianteiras e desfere coices na sua pele com as patas de trás. Eva estremece ao receber os arranhões, mas não faz por parar a brincadeira.
— Terceira opção: desde que não passes das 10 semanas, podes abortar.
Eva continua sem reação, como se não me tivesse ouvido. Contudo, posso ver quando engole em seco com as minhas últimas palavras, os ombros descaídos com o pesar.
— O que é que tu farias?
— Não interessa o que eu faria, Eva. A decisão é tua. O corpo é teu e o filho também. Só tu podes decidir.
Ela olha-me de relance quando o Lao a solta do seu aperto e do seu ataque de "canguru".
— Vou reformular: o que é que pensas sobre o aborto?
Eva aperta as minhas mãos com aquela que nunca saiu de entre os meus dedos.
— Pessoalmente, sou a favor.
As suas íris amadeiradas enfrentam as minhas, o brilho da sua dúvida e angústia a tornar a sua tonalidade mais exótica.
— Mesmo em casos como o meu? Numa gravidez aparentemente saudável de um parceiro fixo?
Hesito por uns instantes, a ponderar as minhas palavras. Não quero que a minha opinião pessoal influencie as suas escolhas.
— Sou a favor do aborto quando é a melhor solução na situação em causa, quando todas as outras opções seriam trágicas ou traumáticas, para a criança ou para a mãe. Contudo, acho que é uma ferramenta de último recurso, que não deve ser utilizada de ânimo leve. Serve para evitar vidas miseráveis, tanto de quem gera como de quem nasce, mas não deve ser banalizado ou utilizado só porque se encontra à disposição.
Eva assente, os lábios reduzidos a uma linha fina pela tensão que exerce neles.
— Pensa bem nas tuas opções. Acho que deves escolher aquilo que a tua consciência te mandar, porque és tu que vais ter de conseguir dormir bem à noite depois. Não precisas de decidir neste instante, até porque é uma decisão importante, mas também não a podes adiar ad aeternum.
Ela funga. Eu aperto-lhe a mão uma última vez antes de me levantar.
— E tenta falar com o Bruno quando estiverem ambos mais calmos, está bem? Vocês são ambos novos, não estavam a pensar ter filhos tão cedo. Não foi correto deixar-te sozinha, mas se calhar ele está só assustado e há de voltar quando passar o choque da notícia — digo, não acreditando nas minhas próprias palavras. Mas Deus queira que esteja errada. Engolirei as minhas desconfianças de bom grado.
Ela assente tão levemente, apenas para me dizer que me ouviu, que quase nem noto.
— Entretanto, podes cá passar a noite. Eu faço-te a cama no quarto que era da Matilde — ofereço. Olho sobre o ombro, para o relógio de aros metálicos negros contra a parede branca. — Tens fome? Já passaram as 8h do meu comprimido e não posso tomar o analgésico de estômago vazio.
— Eu ajudo.
Eu recolho o tabuleiro do chá. Ao se equilibrar no sofá para se levantar, os olhos dela encontram o saco de água quente, agora fria, sobre as almofadas.
— Não tomas a pílula, pois não? Se o fizesses, se calhar tinhas menos dores, não? Com a regulação das hormonas e assim.
Os seus passos seguem-me até à cozinha, a porta ao lado da sala no pequeno corredor do meu apartamento.
— Sinceramente, não sei. É provável. Mas as minhas dores não são regulares e o comprimido não teria mais nenhuma utilidade no meu organismo, então mais vale tomar só os analgésicos.
Pouso o tabuleiro na bancada. Ela entra momentos depois e, enquanto me dirijo ao frigorífico, vejo pelo canto do olho a sua reação confusa à minha declaração. Contudo, não lhe satisfaço a curiosidade. Amanhã ficará a saber, como o resto da família.
— O que é que te apetece lanchar? Tenho de ir às compras, então não tenho muita variedade.
Enfio a cabeça no frigorífico para retirar o fiambre e o queijo para uma sandes, quando a ouço a abrir os meus armários.
— Tens patê e tostas? E presunto, talvez? Está-me a apetecer.
Não evito sorrir quando devolvo o fiambre e o queijo à gaveta do frigorífico, para retirar o último pacote de presunto e um de queijo fresco.
— No armário de cima ao pé da janela.
Ela saltita até ao outro lado da diminuta cozinha, que nem espaço tem para uma mesa de refeições, antes de recolher os ingredientes. Juntamos a loiça necessária no tabuleiro e sentamo-nos em frente à mesa de centro da sala, com a televisão ligada, entretidas a comer e a ver reality shows americanos e britânicos tão absurdos que uma pessoa até duvida da sanidade de quem os inventou.
Ao jantar, aproveito um pacote de massas aberto e os restos de legumes perdidos no frigorífico para fazer um prato rápido e leve, salteando tudo. Vemos um filme de baixo orçamento depois da nossa refeição, depois do qual a ajudo a fazer a cama no quarto vago do apartamento. Quando a vejo instalada, preparo-me para dormir.
A noite vai alta quando desperto de repente no meu quarto mergulhado no breu. O relógio da cabeceira diz-me serem 3 da manhã e apuro a audição para perceber que traquinices poderão os meus gatos estar a fazer. O tranquilizador peso do Lao continua entre as minhas pernas abertas, pelo que o culpado deverá ser o Kazu.
Contudo, ouço passos humanos sobre o soalho de madeira do meu quarto.
— SamSam...?
— Hm? — grunho, ensonada.
Ela aproxima-se, usando a claridade natural da fresta do estore que eu nunca fecho ao dormir para se guiar até à beira da minha cama, onde se senta. Ainda de barriga para baixo, viro a cabeça na sua direção. Sob a luz noturna que adentra a divisão, ela parece indecisa, e eu bato com a mão no colchão, instigando-a a deitar-se. Ela apressa-se a abrir as finas cobertas e a deitar-se ao meu lado.
— O que foi, Eva?
O seu corpo tenta aninhar-se no meu e vejo-me obrigada a puxar as pernas para cima, contornando um Lao adormecido desajeitadamente, para me deitar de lado, de frente para ela. Sentindo que há mais espaço entre nós, Eva aconchega-se mais.
— Acho.... Não, eu quero ter este bebé — sussurra.
O meu cérebro acorda com aquela afirmação.
— Não precisas de decidir já. Se ainda tens dúvidas, podes pensar mais um pouco.
As suas pernas entrelaçam-se com as minhas.
— Não sei se vou ser capaz de o criar, mas sei que... Que quero que ele nasça.
Com um braço direito por cima do seu corpo, puxo-a contra mim. Ela repousa o pescoço sobre o meu braço esquerdo e acabo a afagar o seu cabelo com a minha mão livre.
— Tens mesmo a certeza?
— Tenho — afirma, assentindo. De ambas as mãos que tem encolhidas junto ao peito, uma desce de forma protetora para o abdómen. — Mesmo que isto me vire a vida de pantanas e que a minha relação com o Bruno vá pelo cano e que todos me julguem, algo de bom deve sair disto tudo, pelo menos. Para que o que vivi de bom com ele não tenha sido em vão.
Pondero as palavras dela. Não sei se seria a minha escolha e certamente não seriam as minhas razões para escolher dar à luz uma criança, mas o filho é dela. Se foi à decisão que chegou e se se sente segura com ela, então só tenho de a apoiar. Mas talvez deva estar atenta, pelo menos até ao fim das 10 semanas, não vá ela mudar de ideias. E falar com outra pessoa sobre o assunto, a mãe ou mesmo em acompanhamento especializado, não deve ser má ideia.
— Está bem — sussurro, resignada com o facto de que não posso fazer nada neste instante sobre o assunto. — Nesse caso, parabéns, futura mamã.
Ela arrepia-se. Sentindo o calor dela contra mim, reconfortante apesar das temperaturas amenas do fim do verão, fecho os olhos, pronta a adormecer de novo. Porém, antes que a minha consciência aproveite os minutos de silêncio para se eclipsar, a minha irmã chama de novo por mim pela minha alcunha de infância.
— SamSam?
— Sim? — grunho baixinho.
— Ajudas-me a contar a toda a gente? Por favor?
A sua voz parece insegura, como se tivesse voltado a ter 12 anos e estivesse a ser obrigada a participar no concurso de leitura do agrupamento de escolas pelo professor de Português, mesmo com o pânico que lhe suscita a ideia de estar num palco a ler um texto em frente a uma pequena multidão. Mesmo que tenha feito a sua escolha e sinta algum grau de confiança na mesma, admiti-lo à família ainda é um passo demasiado longo para as suas pernas inexperientes em dar a cara em situações tão sérias.
— Claro. — Beijo a sua testa brevemente antes de me acomodar. — Boa noite, Eva.
— Boa noite, Sam.
E abraçadas uma à outra, adormecemos.
︵‿︵‿︵‿︵
NOTA: Os nomes de gatos discutidos neste capítulo são os nomes das personagens de um anime de 1978 chamado Mirai shounen Conan, ou na dublagem portuguesa dos anos 80, Conan: o rapaz do futuro. É uma série de sci-fi de 26 episódios que passou na televisão nacional portuguesa ainda antes do meu tempo, mas que fez parte da minha infância. O programa teve também direção de um dos meus realizadores japoneses favoritos, Hayao Miyazaki.
Dezembro 2024
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