Capítulo 1
O autocarro parou com um solavanco junto à paragem. De pé, Astra cambaleou para a frente, o corpo magro e leve balançando de forma abrupta. Praguejou em alto e bom som, amaldiçoado o motorista por ter parado daquela maneira, recebendo um olhar feio como resposta. A ranger os dentes, saiu o veículo, deitando a língua de fora para o motorista quando ele arrancou, deixando-a para trás.
Tudo estava na mesma. À medida que caminhava adiante, Astra não podia deixar de reparar quão limpa aquela cidade era. Não havia lixo no chão, fezes de cão, folhas caídas, sequer uma pedra da calçada fora do sítio. Perfeita. Era essa a palavra que definia a forma como cada casa estava localizada, cada árvore perfeitamente podada, cada milímetro do passeio e da estrada limpo.
A loira parou defronte para a casa onde crescera. Estava exatamente igual ao que se lembrava, com as suas cores discretas, flores cuidados nos vasos à entrada, a porta de madeira escura encarando-a de volta. Soltou um suspiro, erguendo a mão trémula para bater, o som agoniando-a.
Tinham-se passado anos desde que vira os pais. Ao início, eles visitavam-na, certificando-se que a filha estava bem cuidada e alimentada. O tio Carl, como Astra carinhosamente lhe chamava, recebera a prima em segundo grau de braços abertos, dando-lhe tudo o que ela precisava: amor, puxões de orelhas quando precisava, sermões longos, cuidados... Ela amava-o e estava grata aos pais por a terem mandado para junto dele. Ao ver a filha tão bem, o casal Wells acabara por se distanciar, as visitas menos frequentes até deixarem de existir, as cartas dispersas, apenas um postal no Natal e no aniversário chegava.
A porta abriu-se e a figura familiar de Dean Wells recebeu-a, com um sorriso educado no seu rosto.
- Bom dia, posso ajudá-la?
Astra sentiu o estômago revirar-se, atraiçoando-a. Gostava de fingir que a sua relação com os pais não a magoavam, que eles não a quererem por perto não significasse que não a amavam, tinha até esperanças que eles a recebessem com algum amor fraterno para dar... Enganara-se. O pai não a via há tanto tempo que não a reconhecera de primeira, os olhos azuis arregalando-se ao aperceber-se finalmente quem estava à sua frente.
- Astra?! Oh, o que estás aqui a fazer? Pensei que tivéssemos concordado que não era boa ideia vires...
- É muito bom ver-te também, papá. - respondeu a loira, irónica- Eu lembro-me vagamente dessa conversa sim... A mãe até mencionou que não valia a pena eu vir porque que a Addison está no acampamento da claque, não foi? - estalou a língua, abanando a cabeça com falsa inocência- Que cabeça a minha, eu decidi vir na mesma. Não papá, não pretendo entrar. - disse, vendo o mais velho fazer menção de se afastar para a deixar passar, os olhos arregalados tentando ver se os vizinhos os encaravam - Tenho um quarto alugado no Hotel de Seabrook. Só passei por aqui para dizer olá, a Addy chega amanhã mas pensei em... - vir ver-vos, pensou, mordendo a língua - Vim só dizer olá. Mais nada.
Recuou um passo, esboçando um sorriso falso. Mentira com quantos dentes tinha na boca, já que não tinha nenhum quarto para ficar e não viera ali dizer olá coisa nenhuma. Ela fora ali para passar um tempo com a sua família, sentindo a dor estilhaçá-la ao aperceber-se que não era bem-vinda. Manteve a postura, recusando-se a dar parte fraca enquanto dizia:
- Eu passo aqui amanhã para ver a Addy, papá. Diz à mamã que eu disse olá, está bem?
- Claro, claro... Foi bom ver-te, Astra. - respondeu o pai, com um sorriso singelo no rosto enquanto fechava a porta, sem esperar que ela se afastasse.
A menina dos cabelos loiros fechou os olhos, soltando um suspiro. De malas na mão, teve que pensar no que faria a seguir. Não tinha sítio onde dormir, não tinha dinheiro com ela para alugar um quarto, não tinha amigos em Seabrook...
Uma ideia assolou-a. Com a sombra de um sorriso no rosto, afastou-se dali, indo para o lugar onde as pessoas a acolheriam nem que fosse por solidariedade para com a sua diferença.
Astra decidiu ir até Zombietown.
Addison escrevia-lhe cartas com frequência. As duas irmãs tinham mantido o contacto ao longo dos anos, principalmente por insistência da mais nova, que achava a sua partida uma injustiça tremenda e não iria deixar de a amar mesmo que vivessem a quilómetros de distância. As suas cartas sempre traziam a alegria contagiante que lhe era característica, deixando o mundo de Astra um pouco mais colorido. Ficava sempre ansiosa por ter notícias da irmã, tendo guardado cada uma das suas cartas numa caixa especial.
As últimas cartas de Addison contavam-lhe como Seabrook mudara. Os zombies tinham finalmente sido aceites na comunidade, a barreira que os separava dos humanos estava agora aberta e todas as leis anti-monstros tinham sido removidas. Parecia uma cidade aberta a aceitar a diferença, algo que despertara de imediato a curiosidade de Astra.
Talvez fosse por isso que ela tomara a decisão de contrariar os pais e regressar a Seabrook. Talvez a ideia de se integrar naquele lugar a tivesse feito pedir transferência para a mesma escola de Addison. Talvez ela tivesse apenas umas terríveis saudades da irmã e tivesse tomado uma decisão impulsiva levada por essas emoções.
Ou talvez não fosse por nenhuma destas razões e Astra tivesse apenas a arranjar desculpas para esconder a verdade.
Zombietown estava muito mais bonita do que se recordava. Ficara muito tempo a observar a comunidade zombie quando era pequena e se esgueirava de casa para ir até à cerca. Gostava do estilo arrojados dos zombies, das luzes penduradas que exibiam nas suas casas para as deixar mais bonitas, da maneira como viviam tão felizes mesmo com tantas limitações.
Com seis anos, Astra não se importava nada de ser uma zombie. Agora, com dezoito, ainda menos. Pelo menos faria parte de alguma coisa, em vez de ser cada dia mais diferente de tudo o que conhecia.
De malas na mão, trança no cabelo a desfazer-se e as roupas suadas pela viagem e pelo stress, Astra bufou, irritada. Em que estava a pensar quando decidira mudar-se sozinha para uma cidade que não conhecia e onde nunca se sentira confortável? Partira demasiado cedo de Seabrook, não se lembrava de nada daquela terra e agora estava em Zombietown, um lugar onde nunca pusera os pés. Ela sabia quem estava à procura mas não fazia ideia de onde a encontrar, para além do seu sentido de orientação ser terrível.
- Bom dia, minha filha. Posso ajudá-la? - perguntou uma velhota, aproximando-se da humana com um sorriso no rosto.
Astra virou-se para encarar quem a abordava. Os cabelos verdes da senhora destacavam-se na sua pele branca como osso, características da comunidade zombie. Com um suspiro de alívio por ter alguém que a pudesse ajudar, a loira assentiu, aceitando a mão que a velhota lhe estendera, num gesto amigável e carinhoso.
- Sim, creio que sim. Estou à procura de uma pessoa... O nome dela é Eliza. Eu... Eu não sei o último nome dela...
- Eliza Zambi? Oh, sim sim, sei quem é. Se não te importares que uma velha como eu te faça companhia, eu guio-te até à casa da menina Zambi.
Os ombros de Astra descaíram, visivelmente aliviada.
- Não me importo nada, minha senhora...
- Mira. Chama-me Mira, querida.
A senhora Mira era uma simpatia e Astra não pode deixar de ser grata por tê-la encontrado. Tinha colmatado um pouco a dor que sentia por ter sido tão mal recebida em Seabrook, na medida em que quisera saber um pouco sobre si, sobre o que fazia, o que gostava... Como tinha dito, fizera-lhe companhia nos poucos metros que se encontravam da casa de Eliza. Quando se despediram, a habitualmente distante Astra debruçou-se para abraçar a senhora, prometendo visitá-la assim que pudesse.
Astra não tinha amigos em Seabrook, isso era verdade. As únicas pessoas com quem se dava era a irmã e o primo (que não fazia questão nenhuma de ver). Para além deles, costumava conversar com alguns miúdos zombie através da barreira...
Uma dessas crianças era Eliza.
Recordava-se bem de Eliza porque eram muito parecidas: rebeldes, brutalmente sinceras, sarcásticas... As duas gostavam de conversar sobre como iriam mudar o mundo quando crescessem, acabando com as injustiças, organizando manifestações. Seriam incansáveis na luta pelo que está certo.
A loira não pode deixar de sorrir ao pensar na zombie. Não tinham ficado em contacto porque Astra se fora embora logo a seguir a receber a notícia dos pais, sem ter tempo de contar a quem quer que fosse. Também seria difícil escrever cartas para Eliza, já que a comunidade zombie tinha a sua correspondência bastante limitada e vigiada.
Sentido-se ligeiramente nervosa, bateu na sua segunda porta em poucas horas. Esta demorou um pouco mais a abrir que a da casa dos Wells, já que os pais tinham a mania de achar que deviam ser bons anfitriões e por isso estavam sempre à espreita, a ver se tinham visitas, para poderem recebê-las de forma apropriada.
Que ironia, pensou Astra, rindo sozinha.
A porta abriu-se e uma adolescente de ar desconfiado surgiu. Os cabelos verdes encaracolados da rapariga estavam firmemente presos num rabo-de-cavalo, deixando-lhe o rosto pálido a descoberto. Poderiam ter-se passado anos mas Astra reconheceria sempre muito bem os olhos castanhos bem vivos do rosto da zombie, com a mesma garra que tinha quando era miúda. A loira sorriu, incerta se Eliza a reconhecia.
A zombie franziu o sobrolho. Depois, arregalou os olhos, numa mistura de choque e admiração.
- Astra?! És tu?!
- Em carne, osso e muita beleza. - respondeu Astra, baloiçando a trança num gesto dramático - Sabia que ias te lembrar de mim, sou memorável.
- Não há muita gente com tanto cabelo loiro e olhos roxos lindos de morrer, pois não? - questionou Eliza, num tom de brincadeira - Estás mais alta que eu. Não gosto disso.
- Vais ter de aprender a viver com isso. - retorquiu Astra, sorrindo - Olha, eu... Eu sei que mal nos conhecemos...
- Do que estás a falar? Éramos amigas, ainda somos. É muito bom ver-te, Astra. - a zombie levou os braços aos céus, entusiasmada - Finalmente alguém que me vai acompanhar nas minhas lutas!
- Lutas?
- Oh sim, vou pôr-te a par de tudo...
Os olhos de Eliza focaram-se nas malas que Astra pousara no chão. A zombie ergueu uma sobrancelha, questionando a humana em silêncio. A loira tinha razão, claro. As duas não se conheciam muito bem, conversavam quando eram crianças mas Eliza não sabia nada sobre a família de Astra e vice-versa. Ainda assim, gostava dela e percebeu na forma como Astra prensara os lábios que ela não tinha para onde ir.
- Estás com sorte, estou um bocadinho mais tolerante com os humanos do que antigamente. - resmungou Eliza, abrindo a porta - Nem sei se isto é permitido mas... Bem-vinda à tua nova casa, Astra.
- São só algumas noites, até eu...
- São as noites que precisares. Mas tem uma condição...
Eliza esboçou um sorriso maquiavélico.
- Vens comigo para a Central Elétrica de Seabrook.
Eliza não lhe fizera muitas perguntas e Astra estava muito contente com isso. A zombie oferecera-lhe a cave para ela ficar, com um colchão pousado no chão, alguns cobertores e pouco mais. Para Astra, era mais do que suficiente.
A tarde ia a meio quando Eliza bateu no teto, equivalente ao chão de Astra, numa forma de pedir para entrar. A loira gritou um estridente "Entre!", vendo o alçapão abrir e a cabeça verde da zombie espreitar, os olhos castanhos analisando o espaço que ela arrumara.
- Não é muito grande mas acho que...
- É ótimo. Obrigada, Eli. - a humana esboçou um sorriso cansado, sentando-se de pernas cruzadas no colchão - Então, Seabrook está bastante diferente, não é,
Eliza assentiu, sentando-se ao lado dela.
- Sim mas... Não o suficiente. - soltou um suspiro - As pessoas fingem que nos aceitam na comunidade deles mas ao mesmo tempo querem destruir a Central Elétrica, o berço dos zombies. Isso é um pouco desrespeitoso para connosco mas ninguém parece querer saber...
- Eu quero. Mas diz-me uma coisa... A minha irmã contou-me que a barreira caiu e agora não há leis anti-monstros, recolheres obrigatórios, não há nada disso... - Astra franziu o sobrolho, abanando a cabeça- Mas porquê? O que aconteceu? Ela nunca me contou pormenores...
- Bem, tudo começou quando o Zed...
- Zed? O Zed? Aquele rapazinho que...
- Conversava connosco na barreira? Yap. Esse Zed.
Quando era criança, Astra frequentemente ia até à barreira para conversar com os zombies. Eliza era uma dessas crianças e estava sempre acompanhada por dois rapazes: Bonzo e Zed. A humana recordava-se vagamente de Zed por ele ser o mais engraçado dos três, com as suas piadas, caretas e a mania de fazer de conta que estava num jogo de futebol, atirando bolas imaginárias para o ar e gritando "Touchdown!" para quem o quisesse ouvir.
- Então o Zed apaixonou-se por uma humana e entrou para a equipa de futebol e...
- Uma humana?
Eliza assentiu, torcendo o nariz.
- Ao princípio não gostava dela, aliás eu nunca gostei de humanos... Exceto tu, claro. - disse, vendo a cara de indignação de Astra - Mas a Addison...
O rosto de Astra alterou-se de imediato.
- Addison? A minha Addison?
- Tua?
- Addison Wells?!
- Bom, sim... A Addison, a namorada do Zed...
- NAMORADA?! A minha irmã NAMORA?! E NÃO ME DISSE NADA?!
Eliza engoliu em seco, vendo o rosto ruborizado da loira.
- Addison é tua irmã? Eu não sabia...
- Eu vou matá-la. - resmungou Astra, pondo-se de pé- A minha irmãzinha está a namorar e não me disse nada?! Ela não tem idade para namorar! Quer dizer, até tem... Mas eu quero conhecê-lo! Dizer-lhe das boas! Ai desse Zed que lhe faça mal! Argh, porque é que ela não me contou?! Eu vou matá-la!
Quando a fúria de Astra Wells era invocada, significava que Addison Wells estava em muito maus lençóis.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro