6- Morador de Favela
ÁRVORE GENEALÓGICA DA HISTÓRIA
CAPÍTULO SEIS
"Morador de Favela"
♦ ♦ ♦
"Ok. Com os olhos já enxugados, tento novamente a continuar o meu texto. Espero que com ele eu consiga me entender melhor.
Talvez escrevendo seja mais fácil contar para alguém o que estou sentindo. Mas... E o medo do que vão dizer? Esta é uma opção que não quero ter que tomar. Já ouvi tantos comentários sobre o que estou vivendo que prefiro poupar minha mente.
Não é possível que não estejam enxergando que algo em mim está errado! Eu não rendo mais como rendia. Minha rotina tem sido acordar cedo, ir para o Batalhão, voltar, ir pra faculdade e partir pra casa.
O Batalhão...
Impressionante como eu sempre quis estar ali. Desde criança, meu sonho era ser militar. Quando atingi a maioridade, queria fazer concurso para se tornar oficial de carreira do Exército. Não consegui de primeira, mas tive a oportunidade de fazer o NPOR. Lá, os vinte jovens fazem diversas provas e apenas os primeiros colocados podem ser militares da ativa, mas apenas por oito anos, diferentemente de quem faz concurso.
Enfim, de qualquer forma, era um sonho sendo realizado. Estava vestindo a farda camuflada! Eu poderia ser o que realmente sonhei! Ficaria em uma posição de destaque. Comandaria pessoas em prol da defesa do meu país!
Os primeiros dias são os mais difíceis. Passei pelo internato, o período em que eu devia ficar no quartel por um mês sem sair de lá. A pressão psicológica era intensa e não tinha hora para acabar. Cheguei a ficar pagando até a madrugada.
O tenente Smith era o Comandante do NPOR, ele está no seu último ano e pegou a função de Instrutor Chefe. Não tenho muito o que falar dele. Ele é responsável e sempre faz suas coisas bem feito.
Tudo era questão profissional. Eu entendo essa disciplina rígida. Pois ela será muito importante na hora de um combate real.
Mas enfim, não quero falar sobre o Exército. Quero falar sobre mim.
Como eu defenderei meu país se não consigo defender a mim mesmo?
À noite, enquanto eu olhava para o teto do meu alojamento, durante o internato, eu percebia meu corpo inquieto. E eu sabia o que era. Minha rotina mudou, eu sei. Mas não era só isso. Meu corpo ansiava por algo que não fazia tempo. Algo que me saciava momentaneamente, uma válvula de escape de todos os meus problemas e traumas. E depois de consumir, eu queria sempre mais.
Eu precisava de mais uma porção da Cannabis.
Não entendo ainda como ninguém estranhou meu comportamento naquele período. Eu subia na minha cama, cobria-me com uma manta e chorava praticamente todos os dias! Não acredito que ninguém ouvia. Mas nunca vieram falar comigo!
Eu me isolava das outras pessoas. Falava sozinho enquanto dormia. Quando eu dormia. Ficava inquieto... Não. Acho que perceberam, mas ignoraram. Ou não sabiam que aquilo era sintoma de abstinência. Talvez achava que era outra coisa...
De qualquer forma, não houve uma alma sequer para me ajudar. Muito pelo contrário. Cansei de ouvir comentários me chamando de maluco ou de gay, como se isso significasse alguma coisa. Talvez, estivessem mais preocupados com outro fato sobre mim.
Algumas semanas após a morte da minha querida mãe, eu me vi perdido e desnorteado. Ela era a pessoa que eu mais me importava. A única. E eu havia perdido.
Minha cabeça delirou. Passei dias de insônia. Crises e mais crises de choro. Eu queria acabar com aquele sofrimento. Ou pelo menos, esquecê-lo por uns instantes.
Meu irmão imediatamente me acolheu em seu apartamento que fica a cem metros da casa de meu tio, de frente para ela. Mas ainda assim não conseguia suprir a falta da minha genitora. E um dia depois de muito chorar, simplesmente vesti uma roupa e fui à rua correr. Sem destino.
Andei, andei e andei. Não posso dizer quantos quilômetros. Mas foi por muito tempo. Até que parei no meio de alguns jovens... Eles falaram comigo. Ofereceram-me a droga. E eu aceitei.
O que eu tinha na cabeça? Onde fui me meter? Não sei. Na hora, fazia sentido eu usar para tirar aquele trauma da minha mente. Mas agora já foi feito. Foi assim que passei a ser usuário.
Senti a abstinência na própria pele. Foi um sofrimento angustiante. Era proibido utilizar a droga em área militar. Sendo passível de prisão. Nunca desobedeci a essa regra.
Talvez eu devesse estar em internato por mais tempo. Pois quando pensei que estava livre da droga, enganei-me. Entrei em crise de novo e voltei a me drogar de diversas formas.
Mas dessa vez, o motivo não era apenas a morte da minha mãe. Ou o retorno do meu antigo padrasto.
Estou criando forças ainda para contar logo isso, mas sei que vou conseguir. Já fiz coisas mais difíceis. Dizer isso não deve ser tão complicado. Enfim, vamos lá..."
♦ ♦ ♦
TRÊS SEMANAS PARA "O DIA"
Logo todos estavam sentados em seus devidos locais. A mesa poderia ser ocupada por seis pessoas, então havia um lugar vago. A empregada, a jovem Astrid, cortou um pedaço de lasanha para cada um, colocou um pouco de salada e serviu o suco natural de limão para os anfitriões e convidados.
— Astrid — Leandro falou, arqueando as sobrancelhas — Por que você só colocou cinco pratos? Venha, sente-se conosco.
A jovem ergueu-se e arregalou os olhos.
— Oh, desculpe! Pensei que não seria conveniente comer junto do...
— Deixa disso, menina! Venha! Eu faço questão! — O homem informou, rindo.
Carmen ouvia aquilo calada, mostrou-se neutra a situação. Sua expressão parecia pesada.
Rapidamente, obedecendo às ordens de seu patrão, a jovem sentou-se na mesa e juntou-se na conversa de seus patrões.
— Astrid? Que nome exótico, né? — Alan comentou, inclinando a cabeça.
— Isso porque você não conhece o sobrenome! — Leandro brincou.
— Obrigada! — Ela falou, rindo — É Astrid Hoegen. Muitos confundem, mas se pronuncia "Rêigan". Vim de uma família russa.
— Isso explica muita coisa. — Joyce disse — E o que levou você a vir aqui, para o Brasil?
— Meu pai é Primeiro-Sargento do Exército, servia no Rio Grande do Sul e, em uma viagem que ele fez para a Rússia, conheceu minha mãe. Após algum tempo ele foi transferido para o Rio. Faz cinco anos que foi reformado depois de perder os movimentos da perna.
— Sério? Não sabia dessa história — Carmen se pronunciou, finalmente.
— Mas por que você está trabalhando aqui? — A estudante de medicina questionou.
— Meu pai me ajuda financeiramente, mas gosto de ter minha independência. Por isso, trabalho com alguns bicos para ajudar no material da faculdade e sustentar um projeto que participo na minha igreja.
— Você é evangélica? — Isaque perguntou.
— Sou. Por quê?
— Nossa... Com o que ganho, eu pego tudo e compro roupa, comida, bebida, e... — Isaque falou, parando antes que revelasse algo comprometedor.
— Faço isso por amor. Para mim, é gratificante alimentar meu espírito.
— Muito bom, então — O jovem assentiu, balançando a cabeça.
— Zack — O militar antigo chamou o mais moderno pelo seu apelido — Eu sei que disse para não falarmos sobre trabalho e tal, mas... Fiquei curioso com o Steiberg. Sabe de algo dele?
— Ele é um dos últimos, tio — Respondeu, secamente — Não quer muito saber de Exército, sabe? Taca o zaralho no alojamento, dá alteração para o instrutor, entre outras coisas... Mas não tenho nada contra ele. Nunca me fez mal algum.
Isaque evitava fazer contato visual com o tio. Sua antipatia por certas coisas em sua personalidade o obrigavam a isso. Ao olhar para seu Comandante, o militar lembrava de momentos ruins de sua vida. Principalmente quando citou Steinberg. Tudo o que disse era verdade. O rapaz era um dos poucos que não havia lhe feito mal algum. No entanto, nunca mostrou ser seu amigo.
— Entendi... Mas e você? Como está sua relação com os outros alunos?
O rapaz engoliu a seco. Franziu os músculos da testa. Não queria transparecer, mas sentia que aquela refeição começava a ficar cada vez mais desagradável.
— Está bem, tio. Por quê?
— Ah, nada... Só ouvi certas coisas que, bem... Deixa pra lá.
Joyce e Alan viraram a cabeça para Leandro, e em seguida para Zack.
— Como assim? — Joyce perguntou, arregalando os olhos.
— Nada, Joyce! Nada! — Zack falou, com os olhos fixos nos dela.
A moça, então, assentiu, ficando quieta. E então, durou um silêncio perturbador por alguns segundos.
— Alan, conte-nos! — O homem dizia, tentando ser simpático — Como está a vida amorosa?
— Ah, tio... Você sabe! No momento estou solteiro e pretendo continuar assim por um tempo. Mas é claro, sozinho nunca! — Ele respondeu, sorrindo.
— Muito bom, meu sobrinho! E você, Isaque? — Ele falou, cerrando os olhos para o rapaz.
— Nada de novo, tio. Solteiro e sozinho. — Respondeu, atacando sua comida como forma de reduzir seu estresse com aquele diálogo.
— Ah, pare! — Joyce o empurrou de leve com o ombro, em brincadeira —Duvido que não tenha muitas pretendentes!
— Não. Não tenho nada que me interesse. Feliz?
— Bem, eu posso dizer que não estou sozinha e, muito menos, solteira! — A bela moça anunciou para todos.
— Hum, agora sim uma surpresa! — Leandro exclamou, curioso, enquanto acrescentava suco no seu copo. — Conte-nos mais sobre seu namorado, Joyce! Quero conhecê-lo!
— Ah, para! — Carmen também se mostrou interessada no assunto, entrelaçou os dedos da mão e participou da conversa com um sorriso no rosto — Como você não me conta isso, linda? É um colega seu da faculdade?
— Ah, tia! Faz pouco tempo. E não, não é da faculdade.
— Hum, mas é médico, né? — Ela questionou, curiosa.
— Não, tia. Não é... — A continuação daquelas adivinhações se tornou constrangedora demais para Joyce, que encolheu seus ombros, selecionando, em sua mente, com meticulosidade, as palavras certas para dar a notícia sem que houvesse nenhum escândalo. — Na verdade, acho que vocês o conhecem.
— Ora, então diga! — Alan atiçou.
— Seu nome é Vicente Souza.
Os integrantes daquela mesa se entreolharam, confusos. Alan Nunes recuou, erguendo a cabeça e fitando sua prima com as sobrancelhas arqueadas.
— Soldado Vicente Souza? — Ele questionou, batendo na mesa.
— Ele mesmo.
— Joyce, você só pode estar de brincadeira com a nossa cara, né? Diz que é! — Carmen colocou as mãos sobre a cabeça.
Imediatamente, Alan apanhou seu celular do bolso e executou algumas operações nele. Em poucos instantes, ele estava com uma foto de Vicente na tela. Um rapaz alto, negro e forte, fardado com o uniforme camuflado.
— É ele sim! Ele é do meu pelotão. Ele diz que está namorando há, pelo menos, sete meses! Joyce, há quanto tempo vocês estão namorando?
— Sete meses, Alan! — A jovem suspirou.
Leandro terminou sua última garfada antes de recostar-se na sua cadeira, cruzar os braços e penetrar um olhar reprovador em sua sobrinha.
— Você namora um soldado há sete meses e só nos conta agora? — Ele disse, perplexo — Seus pais sabem disso?
— Não! E prefiro que continue assim. Eles são muito preconceituosos.
— Eles são preocupados com você, Joyce! — Carmen levantou os braços, em indignação. — Como você não vê o perigo que está correndo?
— Perigo de quê, tia? Do que você está falando?
— Só toma cuidado, Joyce — Leandro orientou, calmo e sereno — Ele sabe que você é minha sobrinha, é estudante de medicina e tem dinheiro. Você já é bem grandinha pra saber dessas coisas...
— Ah, Joyce... Não sei. Ele não me parece um cara bom para você... — Carmen comentou.
— O Vicente já provou seu amor por mim diversas vezes! Não entendo o porquê desse espanto todo! Vocês nem o conhecem direito!
— E nem quero! Deve ser morador de favela! — A mulher do militar pôs a mão na cintura, irritada.
— Como assim, Carmen? — O Tenente-Coronel protestou.
— Leandro, você acha mesmo que um jovem desses vai querer alguma coisa séria com a Joyce?
— Acho que quem tem que saber disso é a Joyce.
Astrid e Isaque observavam a discussão calados, apenas acompanhando com os olhos quando cada um se manifestava.
— Joyce, alguma vez ele violou o seu corpo? — Seu primo mais novo resolveu falar, em tom baixo, para a jovem.
— Não! Ele sempre me respeitou! — A universitária respirou fundo — Eu sei o que está acontecendo aqui. Vocês só dizem isso porque ele é negro!
— Racista? Logo eu? Tá de brincadeira, né? — A mulher reclamou, revirando os olhos.
— É sim. E muito! Eu duvido que diriam a mesma coisa se o Zack estivesse namorando a Astrid!
O rapaz arregalou os olhos com tal menção e corou.
— Astrid é uma boa moça — Leandro observou.
— Chega! — A universitária exclamou — Eu vou namorar o Vicente vocês querendo ou não!
— Mas eu não vou deixar um cara dessa laia pisar aqui! — Carmen informou.
— Você está maluca, Carmem? — O comandante do 10º BPE perguntou, cruzando os braços.
— Como é?
— Essa casa é sua, por acaso? Está esquecendo de nada não?
Carmen respirou fundo, fechando os olhos, criando um silêncio perturbador na mesa. Sem conseguir se conter, levantou-se e se retirou do local, sem ter terminado sua lasanha.
— O que aconteceu, tio? — Isaque perguntou, abrindo as mãos.
— Já era para falar isso com vocês, mas lá vai... Eu e a Carmen vamos nos divorciar.
Astrid tomava seu suco quando o militar anunciou a notícia, e quase cuspiu seu conteúdo, devido ao susto. O mesmo aconteceu com Alan.
Os quatro arregalaram seus olhos e cerraram seus punhos.
— Como assim? — A jovem morena disse, levantando-se de sua cadeira também.
— Não dava para aguentar mais! Ela estava me enlouquecendo! Eu quero viver meu sonho de produzir HQs! Quero estar com alguém que amo! Quero ver o meu filho!
— Filho? — O tenente questionou.
— Há dezoito anos, eu me relacionei com uma moça e, recentemente, descobri que tenho um filho com ela.
— É o quê? — Joyce pôs uma mão na boca e outra no coração.
— Deus do Céu! — Zack passava a mão na cabeça constantemente.
— É isso mesmo! Eu tenho. E é o Steinberg.
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