3 - Velho, Triste e Amargurado
CAPÍTULO TRÊS
"Velho, Triste e Amargurado"
♦ ♦ ♦
DEZOITO ANOS E OITO MESES PARA "O DIA"
Estela quase perdeu o ar com aquilo. Seu coração batia aceleradamente. Não conseguia conter a euforia que se aflorava dentro de si. Pôs as mãos sobre o rosto, admirada.
— Leandro, eu... — Ela disse, olhando para o namorado enquanto esboçava um sorriso largo na face.
Ela não percebia, mas o estômago do rapaz estava embrulhado. Suava frio. Aquela não era uma situação confortável para ele.
Delicadamente, ela apanhou a caixa e a trouxe para mais perto de si, sentindo que aquele era o momento mais especial de toda a sua vida. E então, abriu, revelando seu conteúdo.
Um belo par de brincos de rubis.
De repente, a expressão da mulher mudou por completo. O sorriso estampado no rosto deu lugar a olhos arregalados, pupilas encolhidas e instantes de paralisia.
— Eu não sei o que dizer — Estela falou, fechando a caixa. Passou a mão pelos cabelos volumosos, inquieta.
— Como eu disse, eu te trouxe aqui porque quero te falar uma coisa — Ele a fitou com seriedade. Seus olhares se cruzaram. A atriz fez um bico. Já não conseguia mais esconder sua ansiedade nem segurar o choro que queria sair.
— O que isso significa, Leandro? — Perguntou, sem se conter. Lágrimas começavam a rolar de seus olhos.
O militar suspirou. Virou seu rosto para várias direções, tentando evitar aquele momento. Mas precisava encarar sua namorada de frente. Ela merecia uma explicação.
— Olha, saiba de uma coisa: eu te amo, Estela! Nunca deixei de te amar! Porém, eu tive que tomar uma decisão muito difícil nessas últimas semanas — Anunciou, e ela logo entendeu o recado.
— Como assim? O que aconteceu contigo, Leandro? Está mesmo terminando comigo? O que houve? — Um arrepio passou pelo seu corpo, olhando fixamente para ele.
— Bem... Primeiramente, eu não estou interessado em outra! Não foi nada que você fez. Desde que começamos a namorar, tivemos a dificuldade do contato. Você sabe. Nossa relação era muito mais virtual do que qualquer outra coisa. Nossas famílias são tão diferentes, e...
Enquanto ele falava, Estela arqueou as sobrancelhas. Não acreditava no que ouvia e aquelas palavras a deixavam ainda mais nervosa.
— Vá direto ao ponto! — Exclamou, impondo um pouco mais a voz. Ele a encarou por alguns segundos, perplexo.
— Está bem. — Ele suspirou, relutando em contar a verdade — Meus pais não estão satisfeitos com nosso relacionamento. Pronto!
— Como é? — Ela questionou, incrédula. Seus punhos se fecharam e sua musculatura se enrijeceu.
— Você sabe... Em breve me tornarei um oficial do Exército. Meu pai é um empresário ambicioso com alta influência política. É gerente de uma das fábricas de laticínios mais conceituadas do Rio de Janeiro. Volta e meia a ascensão de nossa família está saindo nos noticiários. Minha irmã está prestes a se candidatar deputada federal. E, com isso, a situação lá em casa está ficando cada vez mais complicada em relação a nós.
Estela ouvia aquilo muito atenta. Não era a primeira vez que sofria discriminação. Porém, não podia acreditar que aquilo saía das palavras de uma das pessoas que ela mais amava na vida.
— Espera... Deixa eu ver se eu entendi — Ela fechou os olhos e suspirou. — Você está terminando comigo porque eu sou negra e pobre?
— Não é bem isso, Estela... — Ele implorou, tocando nos seus braços. Após esse gesto, ela rapidamente o afastou.
— Não me encoste! Como assim não é? Você não pode continuar namorando uma preta favelada, né? Ou uma iludida que não vai ter sucesso na sua profissão.
— Eles acham que você provavelmente não alcançará lugares muito altos...
— Eles sempre me trataram bem. Diziam que me admiravam. Por que mudaram assim? Tão de repente?
— Por favor, entenda... Eles não falariam isso na sua frente.
— Quer saber? Foi bom, mesmo! A última coisa que eu quero nessa vida é conviver com gente racista! Eu ainda não acredito como não percebi isso antes!
Ela se levantou da mesa. Sua vontade era de fazer um escândalo, mas não daria esse gosto para ele. Aproximou-se e começou a falar seriamente.
— Se você achou que eu fiquei com você por causa do dinheiro, ou por causa da sua farda, saiba que eu não me importo nem um pouco com isso! Logo você, que também sonha com uma profissão "não convencional"¸ vir com esse papo pra mim é o cúmulo! Agora, não venha me procurar quando estiver velho, triste e amargurado.
— Estela... Não precisa ser assim. — Ele dizia, deixando algumas lágrimas caírem também.
Ela observou a caixa na mesa. Irou-se com aquela estratégia barata de acalmar o seu coração. Pegou o objeto e a segurou firme, na frente do rapaz.
— Quanto a isto, enfie no seu... — interrompeu-se. Pensou melhor no que ia falar. Não iria se rebaixar ao nível dele. — Que se dane!
Largou a joia lá. Virou-se e caminhou para retornar a saída.
— Mas, Estela... O que você queria me contar? — Ele perguntou, sem saber como agir.
Ela parou no meio do caminho e ficou estática.
— Ia dizer que te amava — Respondeu, sem nem mesmo virar o rosto para ele.
♦ ♦ ♦
A jovem continuou seu caminho rumo ao exterior do restaurante, mantendo sua postura séria. Pegou o ônibus, que lhe deixou na frente de sua casa. Assim que saltou do veículo, entrou em sua residência com pressa.
Ao fechar a porta, permitiu-se desabar aos prantos. Estava em sua casa. Deixou as lágrimas caírem sem medo de segurá-las. Caiu sobre seu sofá e não teve problema algum em expressar tudo o que sentia com gemidos e gritos. Seu coração sofria e precisava desabafar.
Passaram-se vinte minutos de choro constante. Enfim, decidiu se levantar, enxugar as lágrimas e ir ao banheiro.
Olhou-se no espelho. Sua maquiagem estava totalmente borrada. Sua feição era abatida. Seus cabelos se encontravam muito bagunçados e o rosto muito molhado, devido ao choro.
Abriu uma das gavetas da pia e apanhou um objeto cilíndrico.
Já tinha olhado aquilo na manhã daquele dia, mas quando olhou pela segunda vez, a crise de choro voltou. Passou a mão direita pela barriga. No lugar do útero. Com a esquerda, colocou seu teste de gravidez sobre a pia.
Ajoelhou-se no chão, voltando a chorar, angustiada com o resultado positivo.
♦ ♦ ♦
CINCO MESES PARA "O DIA"
Natan abriu os olhos vagarosamente. Sua visão ainda estava turva, mas foi ficando melhor gradativamente. Estava deitado sobre uma cama. Confuso, observou o seu redor. O ar estava úmido. Porém, permanecia em um local fechado. Em uma das barracas.
Sua cabeça ainda doía bastante.
— Guerreiro! — Uma voz feminina falou ao seu lado. Virou sua cabeça em direção ao som.
A Terceiro-Sargento Jéssica era conhecida por todos do Batalhão. Afinal, era uma das pouquíssimas mulheres que lá trabalhavam. Vestia a farda normal. A única diferença estava na manga de seu braço esquerdo, onde tinha anexado um círculo branco com uma cruz vermelha no centro, indicando ser do serviço de Saúde. Seus cabelos castanho-claros estavam presos em um coque, conforme o padrão das militares do segmento feminino.
— Sargento! — Ele respondeu, ficando sentado e ainda meio desnorteado.
— Calma, deite-se novamente! — Ela falou, sentando-se ao lado da cama do rapaz e cruzou os braços — Sente alguma dor?
— Sim, senhora. Meu corpo todo dói... Principalmente minhas pernas.
— É normal o desconforto no primeiro campo. Eu também passei por isso. No entanto, seu estado era preocupante. Devia ter avisado alguém...
— Não queria baixar.
— Você atentou contra a sua segurança. Está muito febril, chegando ao ponto de desmaiar... É só isso que sente?
Ele pensou por uns instantes.
— Sinto uma pontada de dor nas minhas costas — Afirmou.
A militar suspirou, colocando a mão no queixo.
— Está bem. Tire a camisa para eu analisar — Ela ordenou, levantando-se.
O rapaz assentiu e assim o fez. Retirou sua vestimenta e expôs seu tórax com alguns arranhões leves. Virou suas costas para a Sargento.
— Meu Deus! — Ela exclamou — É aqui que o incomoda? — Ela questionou, tocando uma região inflamada e vermelha nas costas dele.
— Sim, senhora!
— Está explicado. Algum animal deve ter te picado. Isso pode ter sido uma crise alérgica. Vou preparar um soro para você. Mas enquanto isso, permaneça deitado. Estará dispensado de todas as instruções até estar em condições. Enquanto isso, pode ir torar.
— Brasil, sargento! — Ele confirmou, recolocou sua blusa e se deitou, deixando o sono vir.
Quarenta minutos se passaram quando outra pessoa entrou no recinto, pegando Jéssica de surpresa.
— Oh, senhor Comandante! — Ela exclamou, em baixo tom, enquanto guardava o celular que utilizava durante aquele tempo. Ele fez um sinal com a mão de que estava tudo bem.
O homem fardado apenas fitava o rapaz dormindo profundamente enquanto uma dose de soro era injetada nas veias dele. Seus olhos azuis se dilataram ao ver tal cena.
O Tenente-Coronel Magno aproximou-se ainda mais do rapaz e tocou-lhe na testa, fazendo-lhe um carinho rápido. Observou todos os traços dele, comparando-o com os seus. De verdade, alguns detalhes eram parecidos. O nariz, a boca, as orelhas, entre outros.
— Jéssica — Ele disse para a mulher, sem virar-lhe o olhar — Vá ao rancho e peça uma garrafa de chocolate quente para mim. E alguns biscoitos.
— Sim, senhor! — Ela falou e, sem contrariar, retirou-se do local para obedecer às ordens do seu superior hierárquico.
Os olhos do homem permaneceram fixos no rapaz. Seu coração batia forte. Suas mãos suavam frio. Nos dois minutos seguintes, ficou apenas aproveitando a presença do Aluno dormindo.
— Coronel? — A mulher tinha chegado, com uma garrafa térmica e um pote de biscoitos, assim como lhe fora mandado. Ele se virou para ela e fez um sinal para que colocasse os alimentos em uma pequena mesa ao lado da cama do jovem doente.
— Deixe-nos a sós, por gentileza — Ele disse, com uma voz mansa que não era usual. Jéssica não ponderou, apenas assentiu e se afastou da Seção de Saúde.
Magno voltou a fitar Natan. Com delicadeza, tocou as pernas dele e balançou de leve.
— Ei! — Com delicadeza, agitou-lhe um pouco mais forte — Steinberg!
Meio sem jeito, os olhos do militar começaram a se abrir, sentindo um peso enorme sobre suas pálpebras. Arqueou as sobrancelhas quando percebeu que se tratava do Comandante do Batalhão. Engoliu em seco e mordeu os lábios com a tenebrosa presença da mais alta autoridade daquele quartel.
— Calma. Está tudo bem! — Leandro tentou amenizar o nervoso do rapaz. Afinal, a imagem do oficial era bastante temida por boa parte de seus subordinados. Principalmente os praças.
O militar mais antigo pegou a garrafa de achocolatado e encheu um copo descartável com a bebida. O cheiro e o calor do líquido propuseram água na boca no mais moderno.
— Tome! — Ele falou, entregando para o jovem. Arrastou, também, o recipiente com as guloseimas para perto dele.
Por alguns instantes, Natan observou o seu redor, pensou que aquilo não poderia ser real. Enquanto todos os seus companheiros estavam tendo atividades difíceis, desagradáveis e exaustivas, ele bebia chocolate quente, deitado em uma cama confortável e sendo bem cuidado pelo Comandante do Batalhão.
Alguma coisa estava errada.
— Obrigado! — Ele falou, aceitando o gesto e degustando o alimento e a bebida que foram oferecidos.
Para a surpresa dele, o Tenente-Coronel não se retirou do local. Mas permaneceu lá. Fazendo companhia para o rapaz.
— Senhor? — Ele perguntou, confuso com a atitude dele. O homem deu um suspiro.
— Sua mãe nunca falou nada sobre mim? — Ele disse, sendo direto.
Natan franziu o cenho. Aquilo já estava estranho demais para ele. Percebeu, então, que o olhar de seu superior era mais que pena ou interesse. Era um olhar amoroso.
— Não entendi a pergunta, senhor — Ele respondeu, quase que gaguejando.
— Não precisa me chamar de "senhor" enquanto estivermos assim — Ele o corrigiu, e voltou com sua questão — Natan, você sabe quem é seu pai?
Ele inclinou o rosto. Não sabia aonde o outro queria chegar. Estava ele em um devaneio criado pela sua própria mente? Não saberia dizer.
— Não sei e não preciso saber, Comandante. Ele me abandonou quando criança — Falou, lembrando-se das palavras de sua mãe a respeito do ex-namorado que teve no passado. O mesmo que a dispensou quando estava grávida.
— Não! Isso não é verdade! — As pupilas de Magno estavam dilatadas e seus olhos já davam sinal de que queriam chorar. Sua respiração estava pesada.
— Se me permite a pergunta, Comandante... Como sabe? E por que a curiosidade?
— Natan... — Ele tocou no rosto do rapaz, que ficou sem reação com aquilo. Suas sobrancelhas se elevaram e suas pálpebras ficaram bem abertas — Sempre quis tanto ter você!
— Do que o senhor está falando?
— Eu já fiz muitas decisões ruins na minha vida. Mas deixar sua mãe sozinha com você realmente foi a pior de todas! Por favor, perdoe seu pai, se não eu nunca vou poder me perdoar!
Os olhos do menino se arregalaram. O coração disparou. Os membros ficaram trêmulos.
— Não é possível! — Ele exclamou, querendo negar aquela informação.
A emoção foi tão forte que Leandro não conseguiu mais segurar suas lágrimas, deixando correr uma delas sobre seu rosto. Chorar era algo ele não fazia há anos. Mas naquele momento, evitar o choro seria tortura demais.
Em um instante, todas as referências que Estela fazia sobre seu antigo namorado vieram a mente do rapaz. Todas eram negativas. Lembrou-se de que ela dizia o quanto foi magoada e humilhada por ele. Sendo que o motivo para aquilo era puro racismo e falta de firmeza perante a família. Por isso, Natan nunca havia pensado em querer encontrar o pai. Pelo contrário. Queria distância!
Fitou o homem emocionado ao seu lado, e lhe lançou um olhar furioso.
— Pois então que morra de amargura! — Falou, sem temer as consequências que aquelas palavras poderiam causar.
Leandro entrou em choque. Fazia tempo que não se sentia assim. Sem palavras.
— Por favor, não faça isso... — O homem implorou, entrelaçando os dedos e comprimindo os lábios.
— Fazer o quê? Te abandonar? Assim como abandonou minha mãe? Me poupe! Ou vai dizer que é mentira?
— Por favor, perdoe-me, estou muito arrependido! Eu não sabia que ela esperava um filho meu! Você não sabe o sofrimento que tem sido passar todos esses anos com as consequências dessa péssima decisão!
— E o sofrimento que minha mãe passou? Tendo que se desdobrar para criar um filho sozinha? Precisando se esforçar ainda mais? Acha que tudo vai ser esquecido com uns biscoitos e um achocolatado? Nem pensar! Isso não tem perdão!
Sem perceber, o rosto do oficial já estava coberto por lágrimas e seus olhos avermelhados. Não sabia mais o que dizer, afinal, Natan tinha seus motivos para não querer vê-lo. Respirou fundo.
— Está bem. Você tem razão em me odiar — Admitiu, de cabeça baixa — Mas não vou desistir de você assim tão fácil, Natan. Não vou cometer esse erro de novo, filho! Ainda tenho a esperança de a gente poder ser, finalmente, uma família!
O rapaz ficou em silêncio, enquanto via seu superior partir em retirada da enfermaria.
Ficou observando o vazio, enquanto processava cada palavra que foi proferida naquele rápido diálogo. Poucos instantes se passaram e Natan já estava aos prantos quando a Sargento Jéssica chegou.
—Steinberg — ela o chamou — Vou lhe dar mais uma dose de soro. O médico já está vindo para analisar melhor o seu caso e identificar o que te picou. Mas por enquanto, aconselho ir dormir...
— Ah, sim. Claro — Ele disse, sem graça — E como está o pessoal?
— O Isaque sofreu um acidente na pista de cordas. Eu estava prestando o apoio médico a ele na ambulância. Em breve ele virá para cá.
— Então, o Dantas é o novo xerife — Ele comentou e, então, deu um longo suspiro e se acomodou novamente na cama, voltando a dormir rapidamente.
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