28- Ninguém Precisa Saber
CAPÍTULO VINTE E OITO
"Ninguém precisa saber"
"Com luz,
Sublime
Amor se exprime,
Se do alto me falas,
Todo roto por balas"
Canção da Infantaria
♦ ♦ ♦
Astrid se posicionou em frente à entrada da Vila dos Oficiais. Ao seu lado, ela conversava com um Soldado que lhe dava algumas informações sobre as vítimas.
Percebeu que Kelvin não ficou muito tempo na casa de Isaque. Na verdade, mal chegou a entrar lá. Após sua conversa com ela, a Sargento pareceu estar tão abalada que apenas se retirou do local sem dizer nada.
A garota sabia que era ordem do Tenente Smith que todos os envolvidos ficassem em condições de serem acionados e próximos do Batalhão. Provavelmente, ela não devia ter ido muito longe.
Olhou pela sexta vez o horário no seu relógio. Eram três e cinquenta da tarde.
— Onde a Sargento Jéssica mora mesmo? — Ela perguntou, voltando-se para o militar magro e simpático que auxiliava a garota em suas questões.
— Em Campo Grande — o jovem respondeu prontamente e a loira agradeceu.
— Então ela já deveria ter chega... — ela disse, mas se interrompeu propositalmente quando viu o carro preto se aproximar e abrir a janela.
A mulher alta vestia a mesma roupa que saíra do quartel. Porém, dessa vez, não dispensou a jaqueta e a colocou no banco de trás.
— Soldado — ela chamou o rapaz que imediatamente se aproximou da mulher e se agachou para ouvi-la melhor — Sabe dizer se o Tenente Smith está aí?
— Não, senhora. Ele saiu faz algumas horas...
— Merda — ela resmungou, virando-se para frente novamente, comprimindo os lábios — ele disse pra todo mundo ficar aqui por perto, para o caso de precisar chamar um de nós... Daí ele vai e some!
— Com licença — Astrid se intrometeu, aproximando-se do militar mais moderno e apresentando-se com um sorriso simpático para a mulher — Jéssica Santiago, certo? Eu gostaria de fazer umas perguntas pra senhora. É sobre o caso.
Ela franziu o cenho e levantou a sobrancelha esquerda. Observando-a com desconfiança.
— Você é detetive por acaso, jovem?
— Estou universitária e empregada doméstica, mas eu sou uma detetive.
— Quê? — Ela indagou, de forma sarcástica, inclinando o rosto e esticando a parte direita da bochecha.
Astrid suspirou, decepcionada.
— Tecnicamente, não.
— Eu tenho coisas pra fazer, garota. Por favor... — Ela disse, observando o retrovisor e, com a mão direita, trocando a marcha para fazer a ré.
— Posso facilitar sua vida se aceitar ter uma conversa comigo — ela disse, tentando convencer a mulher a mudar de ideia.
— Como? — Ela a encarou com cara de poucos amigos, impaciente.
— Ao invés de ter que esperar o Jean vir falar contigo, você já diz o que tem que dizer pra mim e eu apenas passo para ele. Estou avançando tanto nessa investigação e é bem capaz de conseguirmos acabar com isso antes do que imaginávamos.
A mulher ficou em silêncio durante alguns segundos, ponderando aquela proposta. Estava desconfortável, mas sabia que não se livraria da jovem tão cedo. Suspirou e revirou os olhos.
— Está certo. Entra no carro. Vamos para uma lanchonete aqui pois estou morrendo de fome! — Ela disse.
Astrid exibiu um sorriso vitorioso com a resposta. Apressadamente, abriu a porta do carona e colocou o cinto de segurança. Seu coração pulsava mais rápido. Só naquele dia, havia conversado sozinha com quatro possíveis assassinos. O perigo que corria era grande, mas mantinha a confiança de que ninguém faria nada com ela levando em conta aquele contexto.
Além disso, o chip que informava a sua localização realmente existia e foi compartilhado com Jean para que ele pudesse monitorá-la durante sua investigação.
— Muito obrigada! — Ela agradeceu, com sua voz doce.
— Por que está fazendo isso, hein? — Ela perguntou, olhando de relance para a garota enquanto dirigia até o local onde faria o que a garota pedira — Meter-se assim na investigação de um crime pode ser perigoso.
— Mais perigoso seria deixar um assassino à solta, não acha? — Ela perguntou, mas ficou sem resposta — Eu fiquei muito curiosa com tudo, sabe. Suspeita de alguém?
— Negativo. Não faço a mínima ideia!
— Foi você quem disse para o Isaque que ele tinha o vírus do HIV, foi? — Perguntou, tentando puxar um assunto que lhe era interessante.
— Não. Eu apenas fiz o teste e deu positivo. Coitado... O garoto tem, ainda, mais um peso para carregar... Não que fosse a coisa mais insuportável do mundo. Hoje em dia, um doente de AIDS pode ter uma vida perfeitamente normal. Quanto mais alguém que apenas tem o vírus no sangue.
— É lamentável... Ele é um dos suspeitos.
— Por quê?
— Não temos provas concretas, mas ele estava fora de casa nessa hora fazendo coisas suspeitas...
— Oh! Disso eu não sabia! — Ela exclamou, arregalando os olhos.
— Tem também o Subcomandante. Você acha que ele poderia...
— Não sei. Nunca troquei muitas palavras com ele. Apenas sigo suas ordens e pronto.
— Está certo... E sobre Arthur e Kelvin?
— Arthur já foi meu amigo... Hoje em dia, não sei se o considero mais. Virou um tremendo de um embuste depois que namorou a Kelvin. E essa aí consegue ser pior.
— E o Tenente Alan Nunes? Também suspeitamos bastante dele. Mas ainda falta investigarmos...
— O Alan... — Suas pupilas se contraíram assim que o nome do oficial foi pronunciado e ficaram rodeando o ambiente. Seu semblante mudou por completo. As batidas de seu coração se tornaram mais aceleradas e os seus lábios se comprimiram — Não! Ele, com certeza, não fez nada!
Era tudo o que Astrid queria.
— É mesmo? Por quê?
— Ora... Porque eu o conheço. Ele não faria isso.
Ela a estudou com os olhos. Havia captado com facilidade seus sinais.
— Quando começou seu flerte com ele?
Jéssica se virou para a garota visivelmente incomodada com as pálpebras bem abertas.
— Eu não...
— Ah, por favor! Está na sua cara! — Ela disse, fingindo seriedade — E eu ouvi umas histórias de vocês dois também... Você sabe, eu trabalhei com o tio dele.
— Está bem. Eu e ele nunca chegamos a ter nada sério. Foi apenas uma noite! Nós ficamos e pronto. Não gosto que ninguém saiba...
— Sério? Por quê?
— Porque já sou chamada de baixaria. Não quero ser chamada de vadia também.
Astrid esticou os lábios e inclinou a cabeça para o lado. Indignada.
— Você se considera vadia?
— Claro que não! — Ela falou, observando a estrada — Mas não quero me estressar com o preconceito dos outros. Prefiro que permaneça assim! Eu não sou uma vadia. Não sou! — Ela dizia aquilo com uma nítida amargura. Astrid ainda não sabia o motivo, mas tinha certeza de que, em sua mente, memórias traumatizantes vieram à tona.
— E como ele é?
— Como? — Ela se virou, ainda perdida no seu devaneio.
— O Alan. O que acha dele?
— Ele parecia ser um cara muito de boa e bacana quando nós ficamos. Só depois se mostrou ser um escroto!
— Por quê?
— Ora... Porque ele é!
— Não me venha com essa — Astrid lhe lançou um olhar provocador. A jovem não desistiria de saber a verdade — O que lhe fez pensar isso dele?
— Depois de uns dias... Ele me olhava diferente... Com malícia. Até no trabalho. Queria que eu cedesse...
— E você já chegou a ceder? — Aquela pergunta deixou a mulher ainda mais desconfortável. Seus olhos quase ficaram marejados só de lembrar.
— Algumas vezes. Quando eu via que não tinha escapatória.
— E quando foi a última vez que isso aconteceu?
— Ah... — Ela balançava a cabeça, em negativa. Na verdade, não conseguia pensar em uma resposta apropriada — Eu não sei! Faz um tempo...
Ficaram em silêncio durante alguns minutos. Astrid processava, em sua cabeça, todas aquelas informações. A garota gostava de considerar as pistas como peças de um quebra-cabeça. E naquele momento, estava começando a juntá-las para fazer sentido.
Mesmo sabendo que sua conversa estava se tornando um gatilho, ela precisava prosseguir. Se aquilo não levasse a solução do mistério, pelo menos, ela poderia entender melhor a militar e, futuramente, poderia ajudá-la utilizando seus conhecimentos.
Resolveu que era hora de mudar um pouco de assunto.
— Há outra coisa que me intriga... Você era a Comandante da Guarda, mas saiu à noite para fazer alguma coisa... Por quê? —
— Ah, garota... Não dá pra te explicar. O Exército funciona de uma forma bem complexa. Tem serviços, funções, hierarquia, cursos, transferências, normas, continências... Coisas que vocês, paisanos, não sabem como é... Então não tem como eu ficar te explicando sobre como é o meu serviço.
— Ah, mas pode deixar que isso eu sei! Meu pai era militar da ativa antes de fraturar a perna e ser reformado há um ano. Aprendi bastante coisa com ele.
— Como? — Ela questionou.
— Pois é. Eu sei como funciona o serviço de vocês. Mas ainda não entendi o porquê de você ter saído do Corpo da Guarda assim. Até onde vai o meu conhecimento, o Comandante da Guarda só sai da Guarda para as refeições. Não foi o seu caso, foi?
Jéssica engoliu em seco. Já estava próximo da lanchonete e, então, estacionou o carro na frente do estabelecimento. As duas saíram do veículo e se dirigiram à primeira mesa para prosseguir com a conversa. Enquanto isso, a mais velha pensava em mil maneiras de responder aquela pergunta sem que parecesse mentira. As duas se sentaram e se encararam novamente, criando um silêncio tenso. Ela não havia encontrado uma resposta.
— Não — disse, ainda sem jeito. Astrid ainda a observava do mesmo modo, esperando que ela continuasse a relatar os fatos — Eu fui para a Enfermaria. Local onde eu guardo os medicamentos. Faz tempos que eu sofro de insônia! Você não entenderia...
— Eu entendo sim. Geralmente, as pessoas têm insônia quando estão sujeitas a muito estresse, ficam muito cansadas, tem depressão... Sempre há um motivo que a levou a isso. Qual é o seu, senhorita Jéssica? — Ela perguntou, entrelaçando os dedos da mão, encarando-a no fundo dos olhos — O que está te tirando o sono?
— Ah, é... Essa... É que... — Ela gaguejava, controlando-se para não desabar em lágrimas ali mesmo.
Astrid percebeu seu estado e resolveu adotar uma nova postura. Uma mais acolhedora e livre de julgamentos. A mesma que fez com Isaque, Carmem e Kelvin anteriormente. Delicadamente, segurou as mãos finas da mulher e lhe esboçou um sorriso amigável.
— Sei que você não me conhece, mas pode contar pra mim. O que está te tirando o sono?
— Uma foto — ela disse, falhando logo em seguida na hora de prosseguir. Lágrimas brotaram de seus olhos e ela demorou um pouco para conseguir continuar. Enquanto isso, a psicóloga acariciou seus braços e tentou se mostrar o mais gentil possível — Uma foto que pode acabar com minha carreira. Com a minha vida.
— Uma foto sua sem roupas? — Astrid sussurrou, de acordo com sua dedução. A mulher a observou e assentiu com a cabeça, comprimindo os lábios e tentando resistir o choro. Sua pele branca se avermelhou de tanta vergonha. Logo, percebeu que os outros clientes da lanchonete notavam a tristeza da militar — E quem a tirou?
— Fui eu mesma. Mas do celular do Alan. Eu estava vestindo a gandola e mais nada. Era pra ser algo íntimo, pessoal... Por favor, não conte isso pra ninguém!
— Se isso for importante pro caso, vou precisar comunicar esse fato para o Jean. Essa foto ainda existe?
— Ah, não! — Ela levou as mãos ao rosto, enxugando as lágrimas que não paravam de cair — Eu não devia ter falado nada!
— Você não está errada, Jéssica! Se você não o autorizou a divulgar, não tem o que sentir vergonha! Pode ter certeza que, se depender de mim, essa imagem não será revelada para ninguém! E ninguém precisa saber da existência dessa foto!
— Obrigada — Ela respirou aliviada, voltando ao assunto — se ele cumprir com sua palavra, a foto já não existe mais.
— Cumprir com a palavra? Como assim? Ele disse que deletaria?
— Sim. Ontem. Ele disse que apagaria a foto se eu transasse com ele.
A mandíbula da jovem caiu ao ouvir aquelas palavras. Não esperava atitude tão abusiva e mau caráter vinda do irmão de Isaque, que parecia ser um sujeito bom.
— Espera... Então, você... Você prometeu a ele que...
— Eu fui para a Enfermaria transar com ele — Pronunciou a frase com muita dificuldade. No entanto, a angústia que sofria era tão grande que precisava desabafar. Astrid parecia ser uma pessoa que não estava ali para acusá-la. Era perfeita para aquela ocasião — Transar virtualmente.
— Nossa, isso foi que horas?
— Umas dez e meia... Logo assim que cheguei na Seção de Saúde, liguei a câmera e começamos. Eu estava muito mal com aquela foto, aquela pressão... Tudo! Eu sei que eu não deveria ter feito isso! Sei que foi errado. É pederastia. Mas aquilo estava tirando o meu sono!
— Ele fez chantagem com você, Jéssica! Ele está erradíssimo!
— Nossa opinião é indiferente, Astrid. Se souberem disso, vão me tachar de vadia para pior. Independentemente de quem está errado! E eu posso, inclusive, ser punida severamente! É crime militar!
A jovem suspirou. Mesmo discordando, entendia o sofrimento da mulher. Ela também era alvo de acusações envolvendo sua sexualidade, apesar de serem falsas na maioria das vezes.
Afinal, dificilmente Astrid sentia atração sexual. E quando isso acontecia, era por alguém com um vínculo afetivo muito forte. Mas isso não a livrava de comentários machistas e ofensivos.
— Você tem razão — ela falou, virando seu olhar para outro canto, tentando pensar em uma solução — Vou evitar dizer sobre os detalhes. Pode contar com isso. E vou fazer de tudo para que a justiça seja feita.
— Muito obrigada mesmo! — Ela falava, forçando um sorriso entre o choro — Por outro lado, estou aliviada em desabafar isso com você. Do jeito que estavam as investigações, iam descobrir uma hora ou outra. Era melhor que você saiba antes dos outros. Para evitar mais constrangimentos.
— Com certeza! — Ela disse, tentando deixá-la melhor — Por isso você não queria que suspeitássemos do Alan, né? Pois poderíamos descobrir isso.
— Exatamente! Por outro lado, agora estou mais aliviada em saber que não preciso esconder mais nada...
— Pois é! — A universitária falou, sorrindo docilmente para a mulher. Sentiu uma profunda compaixão por aquela pessoa. Algo que a faz querer cuidar, acolher e demonstrar o amor de quem cuidou dela desde que nascera. Seu Deus.
Astrid nutria um imenso amor por pessoas. Uma sede de almas que a fazia se sentir plena a medida que, do mesmo modo, aproximava-se da verdadeira essência de Cristo.
A conversa que teve com Jéssica se encerrou por ali, basicamente. Trocaram mais algumas palavras, mas nada que fosse muito relevante. Agora, ela estava concentrada em fazer a justiça dos homens que, apesar de ela mesma acreditar que não era a mais eficiente, servia como disciplina para quem não seguia a lei.
E ela estava bem perto de alcançar essa justiça.
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