27- Ser Bem Cruel
CAPÍTULO VINTE E SETE
"Ser bem cruel"
Estava camuflado mas do alto ela me viu
Com sua rajada ela matava mais de mil
Olha a dona MAG no terreno camuflada!
Pronta para ser a qualquer hora empregada
Olha o Seu morteiro atrás da cota escondido!
Pronto pra bater o avanço do inimigo
♦ ♦ ♦
— Como assim duas roupas? — Jean Smith perguntava mais para si mesmo do que para os seus dois auxiliares.
Os três estavam na Seção onde o Sargento Alvim trabalhava. Na frente do oficial, havia o conjunto de roupas pretas encontradas por Alvim. Em suas mãos, o homem segurava as que o Sargento Arthur achara.
Engoliu em seco.
Ficou alguns minutos com a mão direita no queixo. Sua mente processava essa informação e tentava associá-la às outras peças do quebra-cabeça.
Duas roupas.
Seriam dois assassinos? Um para cada vítima? Ou um dos dois matou e o outro foi apenas o cúmplice? Ou será que...
Muitas perguntas. Em breve, o tenente deveria ter todas as respostas para elas. Olhou seu relógio. Eram duas horas e trinta. Ainda não teve tempo sequer para almoçar.
Suspirou. Sua cabeça doía bastante, atrapalhando, inclusive, seus pensamentos. E consequentemente, a investigação. Não deixaria que aquilo continuasse.
— Dantas — chamou o rapaz, que lhe atendeu prontamente — Venha. Vamos comer alguma coisa.
— Tenente, acho que o Rancho já fechou — ele falou, comprimindo os lábios.
— Não vai ser no Rancho. Venha. Vou te levar pra comer num restaurante aqui perto. Depois a gente volta e descansa.
Sem questionar, Vinícius acompanhou o homem. Estava contente por, finalmente, ter um tempo, mesmo que seja pequeno, para recarregar as baterias. Aquela missão seria cumprida.
♦ ♦ ♦
Astrid observava meticulosamente a casa de seu falecido patrão. Uma moradia bela. De dois andares. Pintada de azul claro, com as janelas de branco. A entrada daquele lar era decorada com um jardim bem cuidado.
A jovem andava pelo perímetro da maior e mais bonita casa. Nos fundos, existia uma cerca que separava a casa do estacionamento utilizado por todos da Vila. Não tinham muitos carros lá. Um muro fazia a divisão entre essa área e o Batalhão. Não era muito alto. Cerca de um metro e sessenta. Se a garota se erguesse na ponta dos pés, era capaz de observar por completo o soldado que tirava serviço no mesmo local que Vitor tirou. Em frente ao Banco.
"Certamente, se alguém passasse por aqui, seria visto pelo sentinela" A jovem pensou, com os olhos estreitos.
— Pelo que falaram, quando o soldado morreu, até outro entrar no lugar, não demorou muito. Nem dez minutos — ela conversava baixo, para si mesma. Gostava de falar sozinha sobre o que pensava. Era uma forma de ela testar se suas ideias realmente faziam sentido. Logo voltou seu olhar para a janela do quarto da viúva — Certamente alguém veria se subissem de escada. A menos que... Não! Isso seria impossível! Qualquer um notaria! Além de mim, apenas Carmen, Leandro e Joyce tinham a chave. Se alguém abriu aquela porta, foi usando uma delas... — disse e, por fim, deu um suspiro — Oh, Leandro! Como me arrependo de não ter te conhecido mais a fundo!
— Com licença — A voz de uma mulher se destacou no ambiente. Astrid já não estava mais sozinha. Virou-se imediatamente para a dona de voz. Ela trajava uma blusa azul, calça jeans e jaqueta rosa — eu acho que te conheço... Você falava com o Aluno Isaque, né?
— O pessoal me reconhece fácil por aqui, né? — Ela disse, dando um riso sem graça — Sim. Meu nome é Astrid. Eu falava com ele, sim. É meu amigo. Posso ajudar?
— Sabe dizer aonde fica a casa dele? O Tenente Smith me chamou aqui, mas sumiu...
A jovem a observou com os olhos estreitos e um sorriso malicioso nos lábios. Já sabia quem era aquela mulher.
— Sei, sim. A senhora deve ser a Kelvin, certo? — Ela disse, estendendo a mão para que ela apertasse. Meio sem jeito, ela retribuiu ao gesto — Pode me dizer as horas?
— Sou sim — ela disse, apanhando seu celular para responder a pergunta — São duas e trinta da tarde.
— Ah, obrigada! Fiquei sabendo que a situação tá tensa aqui... Sabe o porquê? — Perguntou-lhe, fazendo de desentendida.
— O Comandante e um Soldado morreu. Foram brutalmente assassinados! Eu estava aqui na hora. Tomei um tiro até — falou, mostrando-lhe a mão enfaixada.
— Imagino o quanto isso deve ter sido dolorido...
— Sim — ela disse, e deu um suspiro triste — O Soldado era meu ex-namorado.
Astrid arregalou seus olhos azuis e se mostrou ainda mais interessada. No caminho até o Batalhão, a jovem ouviu os comentários que Vinícius e Jean faziam dos suspeitos. Durante sua conversa com Isaque, a garota perguntara algumas coisas sobre os militares de serviço também. Sabia um pouco sobre cada um deles. Chegou a fazer uma breve pesquisada nas redes sociais de cada um. Já estava ciente de que Kelvin foi a primeira que viu Vitor morto. E que os dois tinham um namoro bem tóxico.
— É mesmo? — Ela perguntou, fazendo-se de desentendida — Fiquei sabendo um pouco sobre ele... De vez em quando, ele falava sobre suicídio. Não ficou sabendo?
Ela se virou para a loira erguendo uma das sobrancelhas.
— Vitor não se suicidaria. Ele estava bem antes do crime. Já tinha superado o rompimento. Só que seu comportamento se tornou mais desleixado. Eu vi o assassinato! Até agora não consigo tirar aquela cena da minha mente...
— Entendo. Mas eu me pergunto... Como funciona esse negócio do serviço de vocês? Ele fica duas horas no posto, né? E vocês, sargentos, vão até lá para ver como o soldado está. Certo?
— Exatamente. A gente faz uma ronda para ver se está tudo em ordem e se o soldado está atento.
— Sei bem... Então, com exceção desses momentos em que vocês estão com eles, o sentinela fica sozinho no posto.
— Isso. Mas... Por que quer saber?
Ela fez uma leve risada e deu de ombros, ignorando por completo a pergunta da mulher.
— Desculpe minha curiosidade, mas estou me formando em Psicologia. Eu me interesso por essas coisas! — Ela respondeu — Você é temporária, né? Como fez pra entrar?
— Sim. Sou técnica em Eletrônica e fiz o Estágio Básico de Sargento Técnico Temporário. Esse é o meu sétimo ano na Força.
— Admiro a profissão de vocês. Meu pai também é militar. Quem sabe um dia eu não visto essa farda?
— Se é isso o que gosta, boa sorte!
— Obrigada! — Ela disse, sorrindo em seguida, mas logo voltou ao assunto do crime — E então, eu mal consigo imaginar estar num namoro e, pouco depois de terminarmos, meu ex-namorado morrer.
— Pois é... — Ela virou seu olhar para o horizonte. Engoliu a saliva e percebeu suas pálpebras superiores caindo. Veio em sua memória cenas tristes que quase a faziam chorar — Eu me arrependo tanto das coisas que fiz com ele!
Astrid, definitivamente, tinha um dom. Sem perceber, as duas estavam paradas conversando sobre coisas totalmente pertinentes para a investigação e a suspeita nem se dava conta. A jovem empregada sabia como cativar uma pessoa e utilizar as melhores técnicas para saber a veracidade daquelas informações.
— É mesmo? No meu curso, já vi casos assim... É realmente algo complicado de lidar.
— Ele era tão bonzinho... Estava muito mais apaixonado que eu. Ele se entregou no nosso relacionamento por completo. Enquanto eu... Eu nem sei o porquê comecei esse namoro. Sei como é essa dor...
— O nome disso é remorso. Você foi abusiva nesse relacionamento. Agora que ele está morto, percebeu o quanto sua atitude contribuiu para a vida dele se tornar tão perturbada.
Kelvin a olhou de relance, desconfiada. Havia iniciado a conversa com a jovem e seu tom começava a soar bastante acusador. Precisava sair daquela situação o quanto antes.
— Ei! Não! Eu não fui abusiva, eu... — Ela gaguejou, com os olhos arregalados, sem palavras para argumentar.
— Enganar a si mesmo é a maior tolice dos seres humanos. Assumir nossos erros é o primeiro passo para evoluirmos — ela falava, com os olhos fixos nela. Seu corpo se manteve ereto e seu cenho ficou franzido. Era a hora de pressioná-la até extrair algo de importante sobre a vítima. Ou, pelo menos, passar alguma lição que aprendera. — Fazer piada, ignorar as opiniões e ideias do outro, fazer o próximo se sentir mal ou se sentir sempre errado e tentar manter controle sobre essa pessoa é, sim, abuso.
— Você não está me entendendo, garota! Eu não posso ter abusado dele! Eu sei o quanto isso é ruim...
— Por que não? Porque ele é homem? Ou por causa do seu privilégio de ser branca, com uma situação financeira boa e com uma posição hierárquica superior? Pois nada disso te dá o direito de oprimir ninguém!
O clima tenso poderia ser observado à distância. Com exceção do soldado que tirava serviço no lugar de Vitor, ninguém as vigiavam, o que deixava Astrid mais à vontade para prosseguir com seu interrogatório disfarçado de uma simples conversa.
— Você não me conhece! Eu não fui opressora, eu não... — a cada momento que passava, a Sargento lembrava ainda mais de seu passado. E então, uma lágrima brotou em cada um de seus olhos. Deu uma pausa. Seu coração pulsava forte. Um desconforto enorme tomou conta de seu corpo — posso ter sido abusiva.
Kelvin se dava conta de que havia se tornado o monstro que, um dia, a atormentou.
— Você já sofreu muito por amor, né? — Seu tom de voz já era outro. Abandonou o olhar acusador e adotou, nesse momento, algo mais suave, sem julgamentos. De forma que a mulher se sentisse mais confortável para expressar seus sentimentos.
Ainda assim, observava-a com os olhos cerrados, estudando cada reação da mulher. Os membros dela tremiam e Astrid percebia que ela estava fragilizada. Havia tocado no ponto certo.
— Já sim... Faz algum tempo, mas ainda não esqueci o que ela me fez...
Ela elevou as sobrancelhas. Surpresa com a própria capacidade de ter aquele conhecimento.
— Ela? Como assim?
— Pois é — Ela disse, enxugando as lágrimas com a mão esquerda, que não havia sido enfaixada — Tenente Olívia. Era uma militar de carreira. Médica. Ela me parecia tão perfeita, tão atraente, tão dedicada... Em pouco tempo eu já estava perdidamente apaixonada. Quando começamos um namoro, foi tudo umas mil maravilhas. Mas depois, ela se mostrou ser bem cruel...
— Conte-me mais. Estou à disposição para te ouvir — Em sua voz, não havia acusações, tampouco indignação. Astrid guardava sua repulsa por aquele comportamento para si. Naquele momento, o importante era tentar entender a mente daquele ser humano.
— Ela dizia que eu era péssima. Que não podia deixar nada na minha mão porque eu não desembocava nada. Eu me sentia mal por isso — ela falava, enquanto mais lágrimas molhavam seu rosto — A Olívia também era uma militante LGBT. E sabia que eu também ficava com homens. Ela dizia que eu era depravada. Uma indecisa que não sabia o que queria. Nossas brigas sempre aconteciam por ciúmes. Ela ficava sempre me controlando, exigindo que eu fizesse o que ela queria, que eu falasse apenas com amigos que ela aprovava e, mesmo assim, quando ela estivesse junto. Pois para ela, uma hora ou outra eu acabaria a traindo. Pois eu sou uma promíscua.
— E então, conheceu o Vitor... — Astrid falava, conduzindo a conversa da forma que queria.
— Houveram outros antes dele. Mas com o Vitor era diferente... Não sei explicar.
— Pois eu sei — A jovem anunciou, pousando a mão na cintura — Ele era bem mais novo que você, negro, pobre, soldado, de uma família que não lhe dava muita atenção... Ou seja, alguém facilmente manipulável. Alguém que você poderia saciar sua vontade absurda de alimentar seu ego e seu fetiche. Seu desejo de ter alguém em suas mãos.
— Nossa, eu me sinto tão... Tão suja! — Ela dizia, franzindo o nariz, olhando para baixo — Você está certa!
— Talvez seu relacionamento com a Laura conseguiu destruir sua autoconfiança. E você encontrou este outro modo para preencher essa lacuna. Mas você viu o quanto isso foi prejudicial...
— Sim... — Ela respirava fundo, concordando com a mais nova — Eu não quero mais ser assim. Já disse isso para mim.
— Esse é o primeiro passo para uma verdadeira mudança — ela dizia, exibindo um sorriso que deixou a mulher intrigada. Notou que não havia muito tempo que começaram a conversar e Astrid já conhecia um de seus maiores segredos. Algo muito estranho estava acontecendo — Não tenha medo de mudar! Se quiser, eu te ajudo a evoluir nesse sentido.
No entanto, sua consciência dizia que nada daquilo era mentira.
— Isso não vai mais acontecer.
Além de Kelvin, Astrid sabia que Arthur, Jéssica, Vicente e César poderiam estar envolvidos. E havia feito uma breve pesquisa nas redes sociais de cada suspeito. O suficiente para perceber a relação mais íntima entre a Sargento e Arthur.
— Tem mais alguma coisa, né?
— C-como assim?
— Você chegou a namorar o Arthur, né?
— O Sargento? Bem, eu...
— E você gosta dele, é? — Questionou, interrompendo-a.
— Eu gosto, mas...
— E os dois voltaram quando?
As sobrancelhas de Kelvin se ergueram. A mandíbula deu uma leve caída.
— Como você sabe que...
— Você acabou de corar quando eu falei o nome dele. Percebi o brilho em seus olhos e esse seu belo brinco de estrela. É um tipo que só vi em um lugar: na Cachamorra. Onde ele mora.
— Ora, mas poderia não ter sido ele quem comprou!
— É. Mas eu também vi a foto de vocês na tela de bloqueio do seu celular. Por que acha que te perguntei as horas sendo que eu mesma tenho relógio? — Ela disse, sorrindo maliciosamente, exibindo o aparelho preso em seu pulso.
— É, eu me rendo! Você tem razão! — Ela falou, rindo — Antes de ficar com o Vitor, eu namorava o Arthur. A gente se gostava muito, mas a gente sempre brigava por ciúme bobo. Tanto da minha parte quanto da dele. Depois, eu comecei com o Vitor muito para provocá-lo, sabe? E, também, para preencher meu ego, como você disse... Hoje eu percebo o quanto fomos infantis... Agora, queremos recomeçar.
— Recomeçar — Astrid repetia a palavra, sentindo o poder que ela possuía — Não é uma dádiva termos essa possibilidade? Uma nova chance para fazer as coisas do jeito certo — Ficaram em silêncio durante algum tempo, até a jovem resolver ser mais direta no assunto que desejava entrar — Kelvin, o que você fez na noite de ontem?
Ela se virou novamente para a garota com os olhos arregalados. Seu coração pulsava com bastante intensidade e ela não entendia aonde a loira queria chegar.
— Por que quer saber?
— Porque estou investigando esse crime. E você sabe que é uma das principais suspeitas — ela respondeu, sem demonstrar nenhuma emoção.
— Outra? — ela inclinou a cabeça para a esquerda e lhe lançou um olhar de fúria — Você só pode estar de sacanagem. Não sei como fui cair nessa sua conversa!
— Porque sabe que é verdade — Ela falou imediatamente, sem precisar pensar muito — Se não tem nada para esconder, por que não abre logo o jogo?
A mulher respirou fundo e mordeu os lábios. Suspirou e encarou os profundos olhos azuis da empregada.
— Eu saí do meu alojamento às dez e trinta para fazer a ronda. Encontrei Jéssica no caminho. Às onze o soldado morreu e eu fui pra enfermaria. Fiquei sendo vigiada o tempo todo! Não tinha como eu ter matado o seu patrão. Aliás, não haveria nenhum motivo! Afinal, como eu atiraria na minha própria mão? Por que eu faria isso comigo mesma? Por que me acusam tanto de um crime que eu não cometi? — Ela falou, indignada, mostrando o dedo enfaixado.
A loira a observou com os olhos cerrados, permitindo que um silêncio perturbador afetasse a mais velha por alguns segundos. Astrid deliciava-se com aquelas confissões.
— Está certo. Eu sei de tudo isso — ela respondeu, exibindo um sorriso simpático que só fez estressar Kelvin — Esse mistério não vai passar de hoje. E então, depois disso, ninguém mais vai te incomodar com mais perguntas.
— Eu espero! — Ela bufou.
— Se eu a deixo tão desconfortável, eu vou embora. Pode seguir para o seu destino — Ela falou, erguendo os braços em rendição — E eu realmente sinto muito por tudo! Sei que para vocês o movimento com as mãos é importante. Então, melhoras para essa sua fratura.
— Obrigada — a mulher disse, meio sem jeito. Estava realmente agradecendo?
Sem dizer mais nada, as duas se afastaram. Enquanto Kelvin se dirigia ao apartamento de Isaque, Astrid procurava por outra suspeita que também lhe interessava. Vinícius havia comentado sobre ela. Jéssica Santiago. A Comandante da Guarda que pareceu esconder um segredo bastante instigante, que ainda não foi revelado.
Mas se dependesse de Astrid, todas as máscaras daquele Batalhão cairiam. E ela sabia que faltava bem pouco para poder revelar quem tinha culpa naquelas mortes.
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