18- Não fazia mais sentido
CAPÍTULO DEZOITO
"Não fazia mais sentido"
♦ ♦ ♦
Em pé na frente do Portão das Armas, Vinícius aguardava com certa impaciência a chegada de Vicente Souza com sua namorada.
Apesar de ter dito que estaria lá em cinco minutos, o rapaz só apareceu na porta de grades pintadas de verde após vinte minutos do fim de sua ligação. Mas o Aluno não queria falar sobre aquilo.
O Soldado Vicente vestia uma camisa vermelha e uma calça tactel com um tênis. Estava meio amassada, como se tivesse escolhido a primeira vestimenta do guarda-roupa que viu.
Seus colegas que tiravam serviço na Guarda logo perceberam a diferença brusca nas feições do rapaz. O bom humor, o carisma e o habitual sorriso contagiante de orelha a orelha característicos dele não pareciam acompanhá-lo naquele dia.
A Sargento Jéssica que contava os minutos para ser substituída daquele posto, notou o fato e não exigiu muito para liberá-lo de vez. Assim que o fez, o garoto observou Vinícius parado em frente a sala de Relações Públicas, localizada bem próxima ao Corpo da Guarda.
— Bom dia! — Ele falou, arrependendo-se no mesmo instante de ter dito aquilo quando viu o Soldado observá-lo franzindo o cenho.
— Oi — Foi a única coisa que ele pode falar.
Víni assentiu com um suspiro e abriu a porta das Relações Públicas. Era um cubículo bonito. Com paredes pintadas de branco, um quadro grande e bem bonito que retratava a figura de Duque de Caxias em uma delas, um tapete de veludo no chão, dois sofás cor de areia, uma pequena televisão e uma mesa com revistas.
Após o militar mais moderno entrar, sentou-se imediatamente em um dos sofás e o outro se sentou no próximo.
Vinícius pareceu estudá-lo com o olhar. Pegou seu celular e colocou no modo gravador de voz e o escondeu entre as almofadas.
— Você disse que estava acompanhado pela sobrinha do Comandante... — Ele começou, inclinando a cabeça em curiosidade.
— Sim, senhor. Eu e ela namoramos faz alguns meses. Mas ainda não assumimos pra todo mundo. Quando chegamos aqui, ela não quis ter que vir primeiro no Batalhão. Queria falar com sua tia e primos. Ela perdeu um parente, né... Foi por isso que me atrasei um pouco.
— Sei bem...
— Que horas ele morreu?
— Ouvimos o tiro às vinte e três horas.
— Oh, nossa! Eu fiquei muito chocado quando o senhor me deu a notícia que eu... — Ele fez uma pausa, ainda processando aquela informação — Eu fiquei muito triste, sabe? Quando descobriram que o Comandante havia morrido, me contaram quase que imediatamente. A notícia espalhou rápido demais. Agora, o Vitor... Só fui saber agora. Por quê?
— Eu lamento muito — ele disse, sem palavras para justificar aquela injustiça — Mas preciso que você me ajude agora.
— Farei tudo o que puder.
— Qual foi a última vez que viu o Vitor?
— Anteontem. Na sexta. Aqui no quartel. Ele foi punido até esse dia, quando finalmente pode ir pra casa.
— Vocês conversaram nesse dia?
— Sim, senhor. Ele era meu canga e um dos meus melhores amigos... A gente conversava todo dia. Aliás, ele mora perto da minha casa.
— E como ele estava nesse dia? Bem?
— Comparado aos outros dias da semana, ele estava muito bem sim! Parecia outra pessoa! Sorria, fazia piada, parecia finalmente ter superado o fim do relacionamento abusivo com aquela maldita! Como a gente mora no mesmo bairro, cheguei a passar na casa dele. Ele iria em uma festa com a família, mas teria que voltar cedo pois precisava estar em condições de tirar o serviço no dia seguinte.
— E antes disso? Como era o comportamento dele?
— Deprimente. Ele só falava da Kelvin, sobre como a amava, como queria voltar, como a vida dele não fazia mais sentido sem ela... — dizia ele, de cabeça baixa, lembrando-se dos últimos dias do jovem.
— E você pode contar como era o relacionamento deles, por favor?
— Ah, claro! — Ele disse, exaltando-se um pouco mais — Eles começaram a namorar faz quatro meses! Dia 18 de maio, se não me engano... Terminaram semana retrasada. Dia 18 de setembro. E foi bem curiosa a forma como eles começaram. Mas temos que levar em conta duas coisas: — ele falou, fazendo o número dois com a mão direita — primeiramente, ela é uma mulher que tem presença! Atrai olhares aonde quer que vá! E temos o Vitor. Um cara tranquilo, na dele, que sempre viveu na simplicidade. Ele tinha cinco irmãos. Sua família era humilde, trabalhadora, que nunca lhe deu muita atenção. Nunca teve vaidades... Quando conheceu Kelvin, obviamente, sentiu-se atraído por ela. E isso poderia ter terminado aí quando ela o chamou e começou a cultivar nele um sentimento maior.
— Então, você diz que a iniciativa foi dela?
— Exatamente! Ele pode até ter mostrado que queria, mas ele nunca chegaria pra uma sargento e falaria isso na lata. Pelo menos, se não soubesse que ela também tinha o interesse. Vitor era um cara respeitador. E apesar de ele viver no caos que é Bangu, você não via maldade nele... Coisa muito rara hoje em dia!
— É realmente uma pena isso... — Vinícius comentou, após notar que Vicente fazia uma pausa.
— Ele teve um incentivo, na verdade. Há uns anos atrás, ele conheceu um médico. Mas não qualquer médico! Um médico negro. Que lhe contou sobre a carreira e, bem... O Vitor se amarrou naquilo! Colocou na cabeça e, mesmo sabendo o quanto seria jangal, começou a papirar insano! — Ele fez uma pausa, empolgado com a própria história que contava — Ele dizia que, depois de sair do Exército, se dedicaria só pra isso! Aliás, ele tentou o vestibular, mas não conseguiu. Disse que ia continuar tentando, até que veio parar aqui, obrigado a servir. E como o senhor sabe, ele não tinha condições de estudar aqui com o ritmo agitado desse Batalhão. Isso o frustrou um pouco. Por isso ele se esforçava aqui pra conseguir pedir baixa logo na primeira oportunidade.
— Vocês eram amigos desde quando?
— Ah, a gente estudou junto no Ensino Fundamental. Mas foi aqui que a gente se conheceu de verdade mesmo. Eu tinha, quer dizer, tenho mó orgulho daquele moleque... Ele dava o gás pra ser uma pessoa boa mesmo com as poucas oportunidades que tinha... Cê sabe... Um cara negro e pobre ir pra universidade de Medicina é coisa de outro mundo pra muita gente aí...
— Então, voltando um pouco na Kelvin...
— Ah, sim. Foi mal! Erro meu... Onde eu parei mesmo?
— Você disse que ela começou seduzindo ele.
— Isso! Ela o chamou pra terem uma conversa mais a sós e, bem... Ele ficou maluco de paixão por ela! E eu até apoiava na época, mas depois percebi a cobra que aquela vadia era! Ela não estava com ele porque gostava do Vitor! Ela estava porque tinha fetiche nele!
Vinícius arregalou os olhos e ergueu as sobrancelhas.
— Como assim?
— Ele chegou a me contar o que passaram. Eles só namoraram mesmo por alguns meses e escondido porque o Vitor insistiu muito! Por ela, ele apenas seria seu objeto sexual. Ela se divertia vendo um cara rastejar por ela. Ela via num homem negro e forte apenas algo pra ela se satisfazer! Tá entendendo? Ela vê e pensa que "um negão sarado desses, deve ser uma máquina de sexo". Muitos dos caras que passam por isso até acabam aceitando assumir esse papel cheio dos preconceitos. Mas se não o fazem, meio que desapontam as pessoas! Eu acho que isso tira totalmente a nossa identidade de homem e de ser humano!
— Imagino e concordo plenamente. Eu vejo muito mais mulheres reclamando dessa hipersexualização, mas quando se fala em homem negro, realmente vemos mais um sintoma do racismo no nosso país... — ele disse, com amargura.
— Enfim, a Kelvin tratava o Vitor como objeto mesmo. Quando os dois estavam juntos, mal parecia que eles namoravam. E eu sei que era vergonha da parte dela. Quando eles discutiam, ela sempre conduzia a conversa toda de forma que ele sempre estivesse errado! Botava diversas vezes ele contra sua própria família e contra os amigos! Ela controlava ele de diversas formas! Por várias vezes, quando ele saía de serviço e estava morto de cansaço, ela exigia sexo! Se ele se recusasse, ela o esnobaria. Meio que ficava decepcionada por ele não ser esse pegador todo que ela esperava. Aliás, meu amigo nunca foi esse cara. Mas ela insistia e ele ficava com muito receio de chegar na hora e, bem... A coisa não ir, entende? Já aconteceu isso até e ele se sentiu muito mal. E toda a cobrança que Kelvin colocava nele só o deixava mais inseguro.
— Mas ele te contava tudo isso?
— Não totalmente. Ele me contava como se fosse algo normal! Porque ela conseguiu convencer meu amigo de que a vadia era muita coisa pra ele e, por isso, ele precisava lutar pra manter aquele relacionamento! Depois, chegou um momento que o Vitor parou de me falar comigo. Eu sabia que ela falava mal de mim porque eu dizia a verdade! Ele chegou a ter uma briga séria comigo quando tentei fazê-lo enxergar tudo!
— Nossa... — Vinícius se sentia enojado com todo aquele relato. Balançou a cabeça e trincou os dentes, não conseguiu evitar o comentário — Que relacionamento tóxico! Meu Deus... É algo tão... Sujo. Covarde... Usou sua antiguidade, posição social e cor de pele pra diminuir o garoto.
— Ela foi baixa demais!
— E ele já comentou sobre suicídio com alguém?
— Ah, mais ou menos... — ele respondeu, cabisbaixo — Ele dizia sempre que queria sumir, que se fosse pra ficar sofrendo assim, seria melhor não viver, que a vida pra ele não fazia mais sentido... Mas nada tão determinante, sabe? Ele falava da boca pra fora, com certeza! Por quê?
— Ele pode ter previsto sua morte. Essa ideia não sai da minha cabeça...
— Não acho que ele faria isso, Aluno... Apesar de estar muito mal naquela semana, o Vitor superou isso. Ele estava bem ontem. Não fazia sentido ele inventar de morrer.
— Será mesmo, Vicente? — Ele perguntou, pondo a mão no queixo e estudando friamente o soldado que engoliu a seco — E por que você acha que a Kelvin o mataria?
— Ah, eu não sei... — Ele começou a dar sinais de nervosismo, seu coração bateu mais rápido e suas pupilas se estreitaram — Ele deve ter descoberto algum podre dela, talvez...
— E ele não poderia ter nenhum outro inimigo?
— Ah, talvez o Sargento Arthur... Ele era namorado da Kelvin e talvez ainda goste dela.
— E lá em Bangu? Não tem nenhum desafeto?
— Não que eu saiba.
— E você conhece Diego Fidalgo?
Ele inclinou a cabeça, intrigado.
— O 'Digão'? Bangu todo conhece o cara!
— Hum, é mesmo? E qual é a fama dele por lá?
— Há oito anos, ele era o chefe de uma das maiores facções daqui do Rio. Vendia armas e drogas. Todo mundo sabe que ele matou gente também, mas ele só foi pego por tráfico de drogas e formação de quadrilha. Mas por que acha isso?
— E ele tinha alguma ligação com o Vitor?
— Ah, eu não sei... Vitor nunca... — Ele falava confuso, inquieto com seus olhares que percorriam toda a sala, como se buscasse na memória algo de utilidade — Pra falar a verdade, ele já comentou que passou pela nova casa daquele bandido. Disse que ele tá com um papo de que quer reconstruir sua vida fazendo o certo e tal... Mas ele nunca acreditou naquilo. Ele falava que duvidava na mudança dele. E nunca mais tocou no assunto.
— Hum... — o Aluno se recolheu no sofá, dando uma pausa, em silêncio, para colocar seus pensamentos em ordem. Estava diante de informações valiosas — Sabia que esse 'Digão' estava envolvido...
— Por quê? — Ele questionou, curioso, mas Vinícius deu de ombros.
— E o que Vitor pensava sobre o Comandante?
— Ah, ele simplesmente não gostava dele. Aliás, a maioria desse Batalhão não gostava dele. Não consegue resolver seus problemas e esquece os do pessoal dele! Vitor tava escalado pra missão quinta-feira. Agora eles devem puxar outro...
— E como era a sua relação com o Tenente-Coronel?
— Ah, eu... Bem... Não achava ele muito bom. Mas é o tio da minha namorada, né? Gostaria de poder ter mais contato com ele.
— E a relação da Joyce com ele?
— Ela amava o tio de paixão, apesar de ter tido medo de assumir que namorava comigo. Sabia que a reação da família não seria boa. Mesmo ele estando numa situação parecida...
— Mas ela chegou a assumir?
— Sim, sim! Semana passada, até. Ele se manteve neutro, na verdade. Tava passando por um sanhaço também... A Carmen que fez um estardalhaço na hora, mas depois até pediu desculpas.
— E você já entrou lá dentro?
— Eu? — Ele gaguejou, apontando para si mesmo — Nunquinha! Mas isso vai acontecer em breve. Quer dizer... Nem sei mais agora... — Ele falou olhando para baixo.
— Está bem — Vinícius disse, dando um suspiro — Agora quero que conte o que aconteceu contigo entre a tarde de ontem até este momento.
— Bem, à tarde, eu chamei a Joyce para irmos ao cinema. Fomos ao shopping de Bangu mesmo. Ficamos por lá até as dez e meia da noite, mais ou menos, quando fecharam as lojas — sua expressão começava a mudar. Seus olhos se dilatavam e brilhavam a medida que ia falando dos momentos com sua namorada — eu sou tão apaixonado por aquela garota, que mal vi o tempo passar! Enfim, vi que estava muito tarde e a gente chamou um Uber pra voltar. Graças ao engarrafamento terrível que lá estava, passamos por uma rua perto de um ponto de drogas embaixo de uma ponte. Era onze horas isso. Joyce tava olhando com cuidado os usuários da droga quando reconheceu um cara. Seu primo Isaque Nunes!
— Ah, então você estava com ela quando ela fez isso? Ele não mencionou você.
— Foi! Ele não me conhece direito. Foi por isso. E também, do jeito que ele estava...
— Como ele estava?
— Ele estava num canto sujo e fedido. Sentado, com os braços abraçando as pernas, com os olhos vermelhos e sem falar coisa com coisa. Estava na merda mesmo! Joyce pagou o motorista desceu do carro na hora. Cagou que não tinha chegado no destino. Ela foi falar com o primo dela e eu fui junto. Ele estava com uma seringa perto dele. Devia ter usado a droga fazia pouco tempo. Nunca o vi daquele jeito. Estava tão... Deprimente.
— É, infelizmente, meu colega precisa de tratamento, porém... — Ele falou e puxou seu celular e, mexendo nele um pouco, mostrou-lhe a tela, em que estava a imagem da seringa encontrada no quarto — Você reconhece isso?
— Ah, é uma injeção... Por quê?
— É parecida com a que Isaque usava?
— Ué? Não é tudo a mesma coisa? — Ele perguntou, confuso.
Vinícius deu de ombros, guardando o aparelho no bolso da gandola.
— Não, mas ok. Continue...
— Ele não a reconheceu logo de cara, mas depois começou a agir estranho. Tentou fugir, mas eu o segurei. Eles ficaram conversando, até que Joyce me pediu pra chamar um Uber pra ele também. Estava muito tarde e perigoso. Fiz isso e o carro apareceu quinze minutos depois. A viagem foi de vinte minutos e ele parou logo no portão do BPE. Se quiser, pode ver aqui no celular.
— Ok, vou pegar isso depois. Mas agora, prossiga.
— Bem, depois que chamamos o dele, ele ficou um pouco mais calmo e melancólico. Vez ou outra falava uma coisa estranha de morte, que estava feito, que estava tudo bem...
— Como assim? — O rapaz ergueu as sobrancelhas.
— Não me pergunte o porquê — o soldado levantou as mãos, em redenção — Só sei que ele falava assim... "Está tudo bem. Já está feito". Também achei bem bizarro.
— Mas, e em seguida?
— Ele ficou assim até o Uber chegar. Quando chegou, colocamos ele lá e chamamos o nosso, que chegou bem rápido também. Às uma e quarenta, estávamos na minha casa. Minha mãe fez umas perguntas, mas entendeu nossa situação. Fomos direto pra cama dormir depois desse dia cheio.
— Hum, e você não teria mais nada pra acrescentar?
Ele ficou em silêncio por uns instantes, pensando.
— Bem, não tenho mais nada a declarar não. Acho que tudo já foi dito.
— Sendo assim, vou ter que te pedir pra chamar sua namorada, Joyce Freitas, imediatamente. Preciso ter uma conversa com ela.
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