UM QUARTO DE HOTEL
Cassandra fez o registro formal do crime do qual fora vítima. Era comum que acompanhasse pessoas naquele processo, mas estar nele lhe causava estranheza; uma incômoda sensação de fragilidade e impotência. Ser a vítima trazia um vazio indescritível.
Durante o registro, sentiu náuseas e uma leve fraqueza corporal. O organismo pedindo clemência. Foi então que se lembrou, de que ainda não tinha comido nada. O corpo não aceitaria que fosse ainda mais relapsa consigo e ameaçava fazer um motim caso não tivesse uma fonte de energia em breve.
Ela teria que sair de toda forma, apenas cedeu aos instintos primeiros de sua constituição e, no caminho para o hotel Oásis do Cerrado, passou em uma pequena lanchonete de esquina. Naquele horário nenhum restaurante estava mais servindo almoço e era um pouco cedo para o jantar. Os salgados na estufa fizeram seu estômago roncar quando ela os fitou através do vidro, no aconchego da luz quente, com sua crosta dourada e convidativa.
Cassandra pediu dois pastéis. Um de carne, queijo e gueroba; o outro, de frango, requeijão cremoso e pequi. Pediu também uma coxinha de massa feita com mandioca e recheio de frango com requeijão cremoso. Pediu suco de abacaxi e um café no fim de tudo.
Devorou tudo com mastigadas rápidas e deselegantes, que trituravam a comida de maneira brutal. Não sentia muito além da ansiedade para prosseguir até seu próximo destino.
Pagou a conta e aproveitou para usar o banheiro, que foi algo que urgiu depois que parou de comer. Tinha o péssimo hábito de segurar a vontade de urinar, o que acabava em infecção, cedo ou tarde.
A Investigadora entrou em seu carro e seguiu para o hotel, implorando aos céus para que colaborassem enquanto o rastro ainda estava fresco.
O Hotel Oásis do Cerrado era simples. Tinha a entrada em uma grande porta dupla, três andares com alguns dormitórios padrões, com cama, aparelho televisor, ventilador ou ar condicionado, uma cadeira e uma pequena mesa de madeira, um banheiro com pia, chuveiro e vaso sanitário. A recepção tinha um modesto balcão de madeira sobre um corpo de concreto, com um homem entediado atrás do monitor de um computador. Usava camisa de mangas longas, branca, com o logotipo da empresa bordado no peito, e tinha os cabelos penteados para trás, firmemente presos com mousse capilar.
Quando viu Cassandra, seus olhos brilharam de esperança e ele abriu um sorriso.
— Boa tarde, quase noite! — Recepcionou, cheio de simpatia e abrindo os braços em um gesto acolhedor.
— Boa tarde, senhor...
— Jervásio.
— Boa tarde, senhor Jervásio. Vim buscar os pertences da minha sobrinha. O nome dela é Marina...— Cassandra disse com confiança.
O homem lançou um olhar desconfiado e analítico sobre ela e Cassandra informou os números dos documentos de Marina, assim como demais dados.
— E por qual motivo ela mesma não vêm buscar? — O homem questionou, com razão.
— Ela não pode, no momento. — Cassandra respondeu, tentando manter a naturalidade. — E não poderá por muito tempo.
Um silêncio estranho se instaurou no local. Foram segundo de desconfiança absoluta da parte de Jervásio.
— Não posso entregar os pertences de nenhum hóspede. — Ele afirmou.
— Ela não virá em busca de seus pertences, senhor. Eu garanto. — Cassandra insistiu.
— Em quê baseia essa afirmação? — Ele ergueu uma sobrancelha.
— Ela veio a óbito nessa manhã. Ainda não temos a certidão de óbito.
— Nesse caso, não posso entregar para você. Vou chamar a polícia para resolver e você pega com eles. — Jervásio afirmou enquanto buscava por um aparelho de celular.
— Ah! Ótimo! Nem precisa completar a chamada, senhor Jervásio. — A mulher colocou o distintivo sobre o balcão. — Investigadora Cassandra. Preciso da sua colaboração.
O homem encarou, boquiaberto, e intimamente grato a si mesmo por não ter agido de nenhuma forma condenável.
Pouco tempo depois, Cassandra adentrava no quarto simples enquanto telefonava para Celso. Explicou a situação para ele e ouviu o homem bufando do outro lado da linha porque o trabalho só se avolumava. Não era culpa de nenhum dos dois.
Cassandra fez uma filmagem do quarto como estava e tirou fotos em alta resolução, que foram compartilhadas com Celso. Pensou em prosseguir, pois estava ansiosa, mas resolveu esperar antes de mexer no local. Nada fugiria dali. Nem a mala rosa que estava aberta sobre a cama ao lado de um celular, nem o par de tênis e o par de chinelos que estavam no chão, na frente da cama.
Cassandra saiu pela porta e deu de cara com Jervásio olhando, curioso. Deveras especulativo.
— Então... Podemos conversar de maneira amigável? A sua colaboração será muito importante para nós, principalmente quando for formalizada. — Cassandra introduziu o assunto com o celular na mão.
— Podemos. — Jervásio concordou.
— E eu posso fazer um registro audiovisual do que você vai dizer?
— Sim, pode. — Ele permitiu.
Cassandra começou o vídeo e fez uma introdução sobre o homem e os motivos de ele falar. Mais uma vez ele consentiu, para a câmera, dizendo que desejava colaborar.
— Jervásio, você se lembra a que horas Marina chegou aqui pela última vez?
— Lembro. Foi nessa madrugada. — A voz dele saiu um pouco estrangulada e ele soltou um pigarro para limpar a garganta.
— Havia algo de diferente na postura dela? — Cassandra incitou.
— Bem... Não sei se diferente, porque sempre que eu vi ela, parecia meio nervosa, sabe? Ela olhava muito para os lados, principalmente para a porta. Quando ela chegou de madrugada, desceu de um Palio preto, acho que era um carro de aplicativo. Ela estava sentada atrás e nem se despediu do motorista, só bateu a porta e entrou correndo. Eu estava aqui, e eu mesmo entreguei a chave do quarto quando ela chegou. Ela estava... Não sei, incomodada. Parecia que estava fugindo. — O olhar de Jervásio se perdia no vazio das lembranças.
— E antes, não parecia que ela estava fugindo? — Cassandra indagou.
— Não exatamente... Parecia mais que ela estava triste, meio cabisbaixa, ainda assim muito desconfiada. — Jervásio anuiu com a cabeça.
— E você viu quando Marina saiu hoje? — Cassandra perguntou.
— Vi. Com certeza eu vi. Eu lembro direitinho que tinha um rapaz aqui na recepção. Ele chegou tranquilo, sabe? Então disse que queria falar com ela. Perguntamos o nome e o quarto, para ver se ele sabia. Ele disse o nome, mas não disse o quarto. Aí eu neguei que ela estivesse aqui. Ele insistiu e começou a ficar nervoso. Eu ameacei chamar a polícia se ele fosse mais... incisivo. Ele disse que só queria ver a namorada e que ela corria risco de vida. Eu falei que sentia muito, mas não tinha nada que pudesse fazer. Ele concordou, mas não parecia que ia desistir, apesar de estar se virando para sair. E foi bem nessa hora que ela apareceu. Acho que ela ia no salão, tomar o café-da-manhã. Nossa, foi um silêncio muito estranho quando os olhares deles se cruzaram, sabe? Ficaram olhando na cara um do outro. — Jervásio parou de falar. Ele tremeu e os pelos de seu corpo se arrepiaram.
Cassandra estava perplexa. A cada informação ela ficava mais estarrecida.
— Ele chamou ela de "amor" e ela ameaçou voltar para dentro, mas ele segurou ela pelo braço e falou algo no ouvido ela. Ela balançou a cabeça em um sinal de positivo. Ele falou algo que não lembro bem... Algo sobre criança, uma coisa assim. Ela ficou em silêncio e olhou para mim. Eu olhei de volta. Ele falou que queria conversar em outro lugar e ela foi. Relutante, mas foi. Saiu com ele, até onde eu vi eles foram a pé. — Jervásio afirmou.
— E você tem câmeras? Imagens? — Cassandra perguntou com alguma esperança.
O homem esboçou a surpresa de quem é atingido por uma epifania.
— Eu tenho sim! Quer ver? Vou mostrar. — Ele fez um sinal para que Cassandra o seguisse.
Ela fechou a porta do quarto e foi com ele até a recepção, onde ele acessou o registro da câmera no computador. Ele apontou um canto na parede para Cassandra olhar.
— Ela fica embutida ali, nessa parede preta. Nem dá para notar, não é? Só se procurar. — O homem parecia cheio de si.
Ele encontrou o vídeo e mostrou para Cassandra, que assistiu, boquiaberta. Era uma evidência e tanto.
A mulher saiu do estabelecimento e ligou para Celso.
— Já estou chegando, Cassandra. — Disse a voz do outro lado da linha.
— Quantos corpos vocês encontraram na casa incinerada? — Cassandra questionou com uma mão apoiada na cintura.
— Três... — Celso respondeu, reticente.
— Pai, mãe e primo. — Cassandra afirmou.
— Primo? Não... — A chamada foi encerrada.
O carro de Celso estacionou na frente do hotel e ele desceu do veículo com expressão de quem estava perturbado pela afirmativa da colega.
— Pai, mãe e filho. — Celso guardou o celular no bolso.
— Não, Celso. O filho não morreu queimado e eu tenho provas. — Cassandra tremeu em um arrepio de mau agouro. — Ele está vivo. Ou pelo menos ainda estava, nessa manhã.
— O que você está dizendo? — Celso coçou a cabeça.
— Que possivelmente encontramos um assassino. — Cassandra fitou os olhos de Celso. — E ele, é açougueiro.
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