IDENTIFICAÇÃO
Enquanto a polícia técnico-científica retirava o corpo de dentro da água do lago, Cassandra começou a analisar os arredores no intuito de encontrar alguma evidência. Repetia mentalmente o mantra inconformado de que não era possível que ninguém tivesse visto aquele corpo ali, uma vez que o Parque Brito não era tão ermo assim, muito pelo contrário, ficava dentro da cidade. Pouco frequentado, mas nem um tanto deserto. Ela sabia que as pessoas visitavam aquele lugar até nos cantos mais afastados, dentro da mata, porque não faltavam bitucas de cigarro, garrafas de bebida e preservativos usados, espalhados pelo chão, em todo canto aonde ela ia.
Por outro lado, se o corpo estivesse preso de alguma maneira, era possível que as pessoas não identificassem do que se tratava ou que realmente não o avistassem no fundo das águas, já que eram escuras. O odor também não as alcançaria pelas condições dadas.
Olhando pelo mapa do Google, Cassandra viu que havia uma clareira comprida entre o lago e a mata. Na realidade, a clareira era visível para quem estava na calçada do lado oposto a ela, mas parecia menor do que realmente era. Ela caminhou até lá, averiguando o chão, os troncos e as copas das árvores. Encontrou muitos trieiros que desembocavam na clareira. Em abundância não havia mais do que vestígios de uso de drogas. Quando Cassandra chegou na clareira, já cansada daquela falta de respostas, avistou algumas ofertas religiosas no sopé das árvores. Tirou fotos, como fez com todo o resto, mas sabia que não levaria a nada. Pela configuração das ofertas pode compreender que estavam relacionadas a ter maior abundância financeira. Seus poucos conhecimentos serviam bem para aquela dedução rápida. Tudo aquilo comprovou que, assim como ela pensou no começo, aquele não era um lugar pouco frequentado. As pessoas vinham ali com frequência e certamente retornavam. Como ninguém tinha denunciado um corpo? A questão continuava tirando a sua paz.
A mulher deu a volta no imenso parque, buscando por vestígios de sangue, porém não encontrou. Sequer uma gota. Depois adentrou na clareira e observou os cantos do lago. Nada de sinal. Usou o zoom da câmera do celular para fazer as vezes de binóculos, até que avistou seus colegas, todos olhando para a vítima, com suas expressões perturbadas pela imagem repulsiva que nem a habilitação de anos de trabalho conseguia camuflar. Muitos homens perplexos, com suas mãos plantadas nas cinturas ou nos espaços laterais acima dos quadris.
Foi quando recebeu uma ligação.
— Vem cá. — Celso, o perito criminal, chamou a mulher enquanto a encarava ao longe.
Ela o viu acenar ao lado do corpo, na outra extremidade do lago.
Cansada de tanto exercício, enjoada e tonta pelo estômago vazio, Cassandra correu até lá, administrando uma cascata de reclamações mentais. Ele podia simplesmente falar por ligação, mas Celso não era um homem das tecnologias. O que era uma gigantesca ironia, visto que seu trabalho dependia delas cada vez mais. Ele faria sim ela sentir o odor do morto ou da morta. Ele não pouparia Cassandra de encarar os tecidos em decomposição.
Apenas por se aproximar do espaço ela já entendeu porque ele não tinha introduzido o assunto. O impacto de ver uma pessoa apodrecendo, com a carne um pouco comida por peixes, inchada pela imersão, com o tronco aberto, sem todos os órgãos que compunham a sua constituição original, era absurdo. Havia retalhos de carne putrefata, ponta de intestino, ossos expostos, tecidos corroídos e mais detalhes sinistros naquele mosaico indigesto ao olhar. Ela não precisava de um perito para entender que o corte foi feito com um objeto afiado, pois, além de reto, de uma maneira antinatural, as costelas estavam abertas também. Partidas no centro.
— Conte, Celso... — Cassandra pediu com o estômago embrulhado. Tentou soar natural porque a ocasião exigia. Sentiu a bile bater quase na garganta, em um terrível refluxo. A boca amargou. Alguma pessoa já tinha vomitado na grama antes dela e aquilo não ajudava no processo de autocontrole da investigadora. Ainda assim, ela fez o possível para ignorar toda informação que não fosse essencial naquele primeiro momento.
— Observe as laterais das lacerações, Cassandra. Ainda há uma linha de náilon usada para pesca que está presa nelas. Isso aqui não é mistério, sabe? Posso chutar que ninguém viu e denunciou o corpo antes porque o assassino arrancou os órgãos do sujeito com brutalidade, sem tato, cerimônia ou parcimônia, encheu de pedras, já que ainda tem um pouco de cascalho preso aqui e acolá, e depois jogou aí dentro. Um plano simples, que não funcionaria para ocultar o corpo por tempo suficiente, devido a diversos motivos lógicos e óbvios. O primeiro deles é que os peixes comeram um pouco dos tecidos, soltando a costura, e a decomposição fez o resto do trabalho. — Celso apontava para o homem, adulto, morto, enquanto falava. O dedo indicador em riste, de uma maneira quase acusadora.
A imagem era perturbadora e a narração do possível ocorrido contava de uma crueldade desumana. Ou muito humana... Ela não conseguia se acostumar, e, por mais que tentasse ignorar o odor nauseabundo, não estava suportando. Indignada, questionava internamente que outro animal teria a capacidade de abrir o colega e encher seu interior com pedras.
— Uma pessoa sozinha não carregou este homem cheio de pedras, Celso. — Ela avaliou os dados que estavam escritos em um papel que foi entregue em suas mãos. O homem morto tinha um metro e noventa de altura, além de grande concentração de tecido adiposo, principalmente no abdômen. Veio a ideia de que as pessoas que fizeram aquilo conheciam bem o local, a ponto de não serem pegas e desovarem sem que fossem interrompidas.
— Nem com e nem sem pedras. Deu um baita trabalho, com certeza. — Celso avaliava o crânio do sujeito. — E foi premeditado, viu? — Celso apontou para uma contusão no crânio. — Não sou a mais imaginativa das pessoas, mas eu posso engendrar uma história onde a pessoa pega um machado e, com a parte de trás, acerta no crânio, depois abre o corpo com uma faca bem amolada e usa o mesmo machado para partir as costelas. Pela precisão na abertura e nas suturas, acho que você vai interrogar, no mínimo, um açougueiro.
— Pode ser outra pessoa com experiência em cortes. Um lenhador, por exemplo. Um cirurgião. Ou todos eles. — Cassandra estava aberta para as possibilidades, mesmo que ampliar o leque significasse ainda mais trabalho. Ela aceitou os ônus quando escolheu a profissão.
— É verdade, Cassandra. Por isso você faz o trabalho investigativo de campo e eu fico olhando defunto. — Celso coçou o topo da cabeça e depois o queixo enquanto soltava um suspiro cansado. E ainda estavam no início da manhã.
— Cuidado com as suas palavras, Celso. Seja mais ético. — Cassandra gesticulou com discrição, olhando para um pequeno grupo de curiosos que se juntava, com aparelhos celulares em mãos. Dois agentes da polícia tentavam dispensá-los, mas eles insistiam, com os telefones erguidos, filmando e fotografando.
— Vazou. Você vai ter mais trabalho agora. — O homem franziu os lábios em uma clara demonstração de desgosto.
— O pior vai ser o noticiário do canal Morro Prateado. Sensacionalismo, gritos e escândalo, do jeito que impressiona as pessoas e cativa a audiência. Escuta, Celso... tu colocou nome na vítima? — Cassandra apontou para o papel onde havia a identificação com nome e profissão do defunto.
Celso arregalou os olhos.
— Uai, Cassandra... Sei que ele está um pouco desfigurado, mas você não conhece este homem? — O perito plantou as mãos na cintura outra vez. Um pouco boquiaberto, expressando a sua incredulidade diante daquela revelação.
— Eu deveria? — Ela ergueu uma sobrancelha, sem entender onde errou ao ponto de deixá-lo tão pasmo.
— Óbvio que sim! Sebastião, O Serralheiro! Não tem quem não conheça este homem. — Enquanto falava, Celso pegou o celular, abriu o aplicativo do YouTube, digitou algumas palavras, buscou pelo vídeo que desejava e colocou para tocar. Virou a tela para que Cassandra assistisse em tela cheia.
"Serralheria Boa Sorte é a melhor do ramo, prestando serviços de alta qualidade!", foi a primeira fala da propaganda. O atual morto, naquela gravação, estava bem vivo, gargalhando junto aos funcionários de carisma negativo que mostravam sorrisos amarelos e expressões corporais quase robóticas. Gestos sem graça em uma propaganda com ares amadores. O espaço da serralheria era grande pelo que a investigadora podia ver e Sebastião parecia confiante sobre todas as suas afirmações. O final da propaganda era o homem com os dois polegares erguidos nas mãos fechadas em punhos, apontando uma para a outra, frente ao tronco coberto por uma camisa azul escuro, de manga longa, e a frase de efeito: "Serralheria do Tião, sempre faz um trabalho bão!".
— Você acredita que ele está morto há quanto tempo? — Cassandra questionou Celso depois de ver a propaganda que fez o seu próprio rosto queimar de vergonha, mas fez as engrenagens de sua mente trabalhar a todo o vapor.
— Não posso dizer com certeza ainda, mas, pela minha experiência, deduzo que seja entre dois e quatro dias. — Celso acariciou o queixo depois de guardar o celular no bolso.
— Um homem famoso na cidade ficou sumido por mais de um dia e ninguém deu notícia desse sumiço? — Cassandra ergueu suas longas sobrancelhas de arcos suaves.
— Estranho, né? — Celso tapou os olhos fazendo a mão de toldo, pois o sol começou a brilhar com mais força.
Cassandra soltou curto um riso sarcástico.
— Estranho é apelido, Celso. Tenho um péssimo pressentimento, então, se eu sumir é porque eu mexi onde não devia. — Cassandra inspirou e expirou o ar com mais força do que o natural.
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