DIA E NOITE
A investigadora acordou e ouviu a chuva lá fora. Sentia-se praticamente inútil porque precisava resolver logo aquele caso e a cada hora que passava parecia estar mais distante da solução. Os colegas de trabalho – os confiáveis – não eram obrigados a se desdobrar ainda mais para ajudá-la.
Abriu a geladeira procurando o que comer para forrar o estômago. A luz forte iluminou a parte frontal de seu corpo, que estava na penumbra. Precisava fazer compras mensais para não se preocupar com a escassez de alimentos em sua casa, mas estava acostumada a ir semanalmente ao supermercado.
Olhou as frutas e não sentiu que elas satisfariam seu corpo por muito tempo.
Abriu a porta do congelador e achou a opção perfeita: um saco com pães de queijo congelados. Ligou o forno, colocou a forma com os pães de queijo para assar e foi tomar banho.
Quando voltou, vestida com camiseta branca, calça jeans preta e coturnos, Cassandra fez café, sentou-se à mesa e pegou o celular para observar as notícias do dia e os grupos de fofoca. Todos só falavam sobre a festa que aconteceria naquela mesma noite. Até mesmo as publicidades das lojas estavam voltadas para aquele evento. Nem parecia que a cidade era tão intolerante quanto realmente era. Ou parecia, porque se via muitos comentários de caráter duvidoso em toda publicação. Na verdade, alguns eram crimes.
— A memória do povo é curta pelo sofrimento do quotidiano. — Cassandra conversou sozinha, lembrando-se da menina morta no patinho.
Precisava resolver. Sentiu o estômago se revolver em protesto. Ao contrário da maioria das pessoas, ela não podia esquecer. Quanto a eles, era até vantajoso que esquecessem, pois não desconfiariam quando ela saísse coletando informações.
A chuva parou.
Cassandra lavou os utensílios que tinha utilizado e saiu para a garagem. Ouviu um barulho atípico vindo da casa da vizinha. Uma tosse alta e persistente. Ficou preocupada. Colocou em uma bacia de plástico alguns pães de queijo ainda quentes. Quase todos. Ia sair, porém repensou e colocou todos.
Com a bacia em mãos, voltou para a garagem, passou pelo carro, destrancou o portão e foi atingida por uma lufada de ar úmido e com cheiro de terra molhada. Era fresco e a fez arrepiar dos pés até a cabeça.
A investigadora fechou a mão em punho e bateu no portão. Esperou um pouco, até que a vizinha abriu. Tinha a aparência fragilizada, vestida com seu baby doll de malha.
— Bom dia, dona Marínia! — Cassandra abriu um sorriso. — Como a senhora está?
— Como Deus manda, minha filha. — A senhora respondeu com o tom mais simpático de todos, mas sua voz estava fraca.
— Eu trouxe pão de queijo. — Cassandra estendeu a bacia. — Acabei de assar.
— Ô benção! — A senhora sorriu. — Agora não preciso ir na padaria. Bem que eu não queria sair.
Ela pegou a bacia de quitandas. Uma camionete D-20 prateada estacionou na porta da casa. O som estava alto e tocava Lourenço e Lourival, uma música sobre uma caneta e uma enxada, que na realidade falava sobre a falta de humildade de pessoas ricas com aquelas que lidavam com os trabalhos pesados e menos prestigiados da sociedade.
O idoso que dirigia a camionete abaixou o volume e desceu.
— Bom dia, dona Ma! — Ele cumprimentou enquanto ia abrir a porta do passageiro.
— Bom dia! — Ela respondeu sorridente.
O homem pegou um filhotinho saltitante nos braços. Um pequeno shitzu branco e marrom que estava balançando seu rabo de filhote, olhando com curiosidade para todos os lados. O coração de Cassandra quase derreteu no peito enquanto ela fitava aquela pequena bola de pelos. Era um animal tão amistoso com seus grandes olhos redondos e brilhantes que ela não podia desviar a atenção.
— Trouxe o Perigoso, como prometido! — Ele soltou uma galhofa enquanto o filhote cheirava suas mãos que eram quase maiores do que ele.
Cassandra riu do nome.
— Perigoso? — Ela falou, ainda sorrindo.
— É, menina. — O idoso respondeu. — É o novo guarda da casa. Minha Princesa teve cria, sabe. Eu não queria, mas aconteceu. Agora estou distribuindo os filhotes. Ainda tenho uma fêmea, você quer? Eles são bons de companhia.
— Não, obrigada. — Cassandra recusou mesmo querendo aceitar. Ela não podia cuidar de um animal de estimação e estava ciente disso, era o único motivo que a impedia.
— Não é vendido, menina. Eu nem gosto de vender os bichinhos. É de graça, pode aceitar. — Ele deu uma piscadela simpática.
— Eu não tenho tempo para cuidar, infelizmente. Amaria ter uma companhia. — Ela soltou as palavras como um lamento.
— Bom, então pega o Perigoso um pouco. — Ele entregou o filhote para Cassandra e ela pegou com cuidado, olhando a preciosidade em suas mãos e observando o pequeno nariz rosado e as patas menores do que moedas. Ela sorriu para o filhote e ele sacudiu o rabo de forma frenética.
— Ele gostou de você. — Marínia soltou uma risada gostosa. Naqueles minutos ela parecia ter adquirido uma nova vida. — Obrigada pelo Perigoso, "seu" Mário.
— Cuida bem dele que ele vai cuidar da senhora. — O homem pegou alguns pães de queijo da bacia enquanto dizia: — Licença.
— Claro. — Dona Marínia estendeu a bacia.
— Bom, vou cuidar da vida. Tenham um bom dia. — Ele fechou a porta da camionete. Parecia que ia, mas abriu a porta de trás.
Tirou de lá dois queijos coalhos embalados individualmente em sacos de plástico.
— Um para cada uma, para Deus abençoar mais as vendas. — Ele entregou na mão de dona Marínia. — Agora eu vou.
O homem entrou na camionete, aumentou o volume do som, colocando Lourenço e Lourival para cantar Anel de Noivado para ele e para quem quisesse ouvir, então partiu.
— Ele é gente boa demais. — Dona Marínia contou para Cassandra. — Zé do queijo, meu amigo de infância. Tivemos um namorinho, mas ele se tornou mesmo foi um grande amigo para a vida. Nem todo relacionamento termina mal, só que quase todos terminam.
— Então a senhora resolveu ter um companheiro? — Cassandra questionou enquanto olhava o focinho de Perigoso. Estava envolvida nos encantos dele.
— Chorar a morte do Fubá por muito tempo só ia me fazer ficar mais triste, filha. Falta pouca vida até eu deixar esse mundo. Quero ter amor e companhia nesse tempo. — A senhora virou as costas e foi guardar seus pertences.
Cassandra agradeceu porque teve tempo de perder o nó na garganta e de piscar até que as lágrimas se dissipassem em seus olhos. Nunca estamos preparados para lidar com uma verdade crua. É sempre como um soco no estômago.
A investigadora olhou para o filhote. Ele parecia curioso demais com seus grandes olhos redondos e espertos. O animal farejou o ar e ela sorriu.
Marínia voltou apenas com o queijo de Cassandra e fez uma troca com ela. Pegou o novo amigo e entregou o alimento.
— Você vai amar o seu novo lar. — Cassandra falou com uma voz fina e açucarada.
Marínia riu. Era a primeira vez que via a vizinha sendo tão doce e acessível.
— Aonde está seu filho? — Cassandra indagou, já se preparando para partir.
— Dormindo. — A senhora parecia não querer falar e ela não forçou a situação.
— Bom, vou trabalhar. Tenha um bom dia, vizinha. — Cassandra se despediu.
— Eu e o Perigoso desejamos o mesmo. — A senhora sorriu e balançou a pata minúscula do cachorro em um gesto de adeus.
Cassandra ouviu quando ela fechou o portão. Olhou no retrovisor do próprio carro depois de ter trancado a casa e seu sorriso murchou. Vigílio devia ser interrogado logo.
Como se São Pedro estivesse contra Cassandra, a chuva começou a cair outra vez. Ela dirigiu até a rua da delegacia, mas não subiu. Seguiu na direção da Rua do Sapo, depois da Vila Palmeiras, e quando deu por si já estava subindo para o Jacutinga. Pensava em muitas informações ao mesmo tempo e parecia não refletir em nenhuma. As casas simples do bairro de fama um tanto duvidosa não refletiam nenhum perigo. A chuva cessou outra vez, deixando apenas as nuvens como lembrança.
Quando passou na frente da casa da menina assassinada, entendeu o quão diferente era. Talvez fosse a melhor casa da quadra. Havia um senhor sentado em uma cadeira de fio, vermelha, na frente de um cômodo cujo anúncio de oficina estava pintado na própria parede. Ele usava camisa de botões de manga curta, calça jeans surrada e com manchas de graxa e boné azul marinho com a logo de uma casa de materiais de construção. Fumava um palheiro de tom amarelo opaco e tinha os olhos semicerrados detrás da fumaça. Parecia tranquilo. Era magro, negro e calçava botinas velhas.
Cassandra encostou no meio fio e desceu sem desligar o motor.
— Bom dia! — Cumprimentou.
— Opa! — Ele cumprimentou de volta. — Boa?
— Demais da conta. — Cassandra respondeu. O senhor fez menção de se levantar, mas ela fez um gesto com a mão espalmada. — Não precisa, seu moço. Só quero saber se essa casa grande está à venda. Estou procurando a placa e não encontro.
— Essa aí não, filha. — Ele negou e abaixou o cigarro. — Essa aí nem está para aluguel também.
— Então errei a casa. — Cassandra apertou os lábios como se estivesse decepcionada. — E o pior era que eu já tinha gostado dessa. Será que não acho negócio?
— Mexe com isso não, filha. — Ele deu uma tragada no fumo de corda e soltou a fumaça para o lado, para que não acertasse diretamente em Cassandra. — Esse povo aí é complicado.
— É? Por quê? — Cassandra perguntou com genuína curiosidade.
— Não fui eu quem te contou, viu? Mas o dono, muito antigamente, mexia com coisa errada. Hoje tenta remendar o erro, sabe. Acho que Deus não perdoou, porque a filha... Vixe. Coitada da menina. — O senhor parecia consternado. — Soube do Lago Diacuy?
— Sim. — Cassandra suspirou.
— Pois então. Arruma outra casa, filha. Tem umas boas lá para as bandas do Fórum Novo. Casa boa mesmo, pode confiar. Meu filho comprou uma, precisa ver que beleza. Quer o número da imobiliária? — Ele ofertou.
— Não, senhor. Eu me viro. — Cassandra sorriu. Então ela pegou a carteira dentro do carro e tirou cinquenta reais, entregando para o homem. — Aí o senhor toma um café, viu?
— Não precisa! — Ele estendeu para devolver.
— Fica, é por me livrar de cometer um erro! — Cassandra gritou já entrando no carro.
Ela deu partida e saiu.
Fez o caminho de volta pela Avenida Rio Doce até entrar na Vila Palmeiras. Dirigiu até chegar na Praça da Maromba, onde estacionou. Precisava saber mais sobre aquela família. Não acreditava em uma retaliação, mas quem poderia garantir? Desceu do carro sentindo as novas gotas geladas que caíam. Nem pista da existência do sol. Jataí, muitas vezes, tendia a ser vampiresca com seu clima frio e fechado.
Cassandra entrou, cumprimentando os colegas de trabalho, e caminhou até a sua mesa. Começou a sentar e não tinha nem encostado o traseiro na cadeira quando Marília apareceu na porta.
— Ouvi a sua voz. — Falou com uma xícara de café em mãos. — Abre o link do drive, que eu mandei. Conseguimos os vídeos das câmeras no entorno do Diacuy. Apenas o número três que importa, os outros não têm nada.
— Mas já? — Cassandra se espantou.
A delegada deu de ombros.
— É a urgência. Resolva isso rápido, Cassandra. Tenho um mal pressentimento. — Ela virou as costas e nem deu tempo de a investigadora responder que também se sentia incomodada.
Cassandra ligou seu computador, pegou um tablet que guardava na gaveta trancada, para mexer com suas anotações, e começou a se esforçar para ligar os pontos.
Sua principal suspeita ainda era Inezita, mas estava se desviando do foco. Precisa manter o olho vivo em cima da viúva muito suspeita. A questão era que, sempre havia algo a mais para distrair. No início achou que Inezita era um alvo fácil demais, mas seu romance com Virgínia a colocava no centro de tudo. E Virgínia também era suspeita, pois poderia ter se livrado de Sebastião para viver seu amor. Porém, não justificava matar a pobre funcionária da clínica e expor no meio do lago, para todos verem. Uma motivação que apontava para uma tentativa de incriminar.
Cassandra mandou um áudio pedindo os dados da moça que foi achada no pedalinho. Então, finalmente acessou os vídeos. Havia muita chuva e tudo estava escuro, dificultando a visualização do entorno. Mas naquele apontado pela delegada, era possível ver uma camionete parando na contramão, ao lado do lago. Parecia preta e fosca, mas não. Cassandra deu um bom zoom no vídeo, vendo que a cor da lataria do carro estava se mexendo. Usou alguns aplicativos e percebeu que não era o comportamento certo. Parecia... lona. Era lona. Lona preta cobrindo todo o carro. Tinha sido presa com perfeição, pois naquele mundaréu de chuva era difícil distinguir da cor original. As janelas também eram pretas e o alcance da câmera não mostrava além, o outro lado.
Cassandra pensou que talvez Inezita estivesse tentando desviar seu foco.
A investigadora viu os dados de Jaqueline, a jovem assassinada. Família comum, com pai, mãe e irmão mais novo. Trabalhava, estudava na Universidade Federal de Jataí no período noturno. Uma vida comum por aquelas bandas.
Cassandra começou a procurar por possíveis passagens da família pela polícia, mas não tinha registro algum. Nada, absolutamente nada.
Quanto mais via, mais Cassandra achava que a jovem tinha sido pega apenas como um descarte, para desviar o foco das investigações anteriores. Contudo não fazia sentido que a matassem da mesma forma que mataram Sebastião se era para fazer Cassandra se afastar da investigação. A não ser que Jaqueline soubesse de algo.
A investigadora se achou estúpida por não ter pensado nisso antes. Talvez Jaqueline soubesse de algo e fosse contar.
Cassandra buscou por informações sobre o velório da menina, mas não encontrou. Na certa seria muito privativo, para evitar curiosos.
Celso mandou os resultados da perícia. Quem cortou Sebastião, não cortou Jaqueline. Sebastião tinha passado por um processo meticuloso, como um animal abatido e destrinchado, mas com Jaqueline não havia a mesma precisão no corte.
— Ah... Você estragou a minha vida com isso, Celso. — Cassandra bufou. — E agora?
A mulher fez suas anotações, observações e parou para o almoço.
Na parte da tarde tratou de ir até a clínica, que estava fechada com recesso coletivo. Depois foi para a casa de Inezita. Observou o grande muro que separava a viúva em seu recanto. Ninguém entrou ou saiu durante muitas horas.
Já no final da tarde, a investigadora suspirou, exausta. O tempo estava aberto. Começou a ver muitas pessoas passando caracterizadas. A festa Viva os G.L.S.! iria reunir muitas pessoas e ela já previa caos.
Mandou uma mensagem para Celso perguntando sobre a perícia do celular de Jaqueline. Ele respondeu que a família não tinha encontrado o aparelho, nem os documentos pessoais. A família precisaria esclarecer aquele problema. Cassandra sabia que nos próximos dias ficaria sentada durante horas para colher depoimentos, então aproveitaria a festa naquela noite.
Além disso, era necessário observar os patrocinadores. Se Inezita e Virgínia tinham um romance, e seus estabelecimentos eram patrocinadores do evento, não havia lugar melhor para elas se esconderem.
Cassandra estacionou o carro na garagem, entrou na cozinha, pegou uma frigideira e colocou sobre a boca do fogão a gás. Abriu o registro, apertou o botão do acendedor e viu a chama incendiar. Tinha um mal pressentimento, ignorou. Pegou o queijo, tirou algumas fatias e colocou-as sobre o material antiaderente já quente. Deixou o queijo derreter. Pegou algumas fatias de pão de forma e comeu com o queijo. Lavou a louça suja, devolveu o queijo para a geladeira, agradecendo mentalmente pela graça de tê-lo ganhado. Tomou banho, lavando o cabelo. Secou o cabelo. Passou sobre toda a sua pele negra um hidratante que tinha brilho dourado. Maquiou-se com esmero, no intento de ficar linda. Colocou um conjunto de saia até o umbigo e cropped de alças finas, ambos bordados com lantejoulas vermelhas. Prendeu os cabelos e colocou uma lace loura platinada, lisa. Finalizou com gloss vermelho e calçou um par de tênis brancos. Admirou-se no espelho e sorriu. Amava-se.
Prendeu uma pochete metalizada na cintura, era dourada. Colocou nela o celular, a carteira de motorista e um pouco de dinheiro em espécie. Lembrou de pegar o ingresso que estava na mochila.
Colocou duas cases com fones de ouvido sem fio dentro da pochete. Pegou o capacete e as chaves da moto e saiu de casa rumo ao Estádio Arapucão, onde seria a festa.
Largou a moto do estacionamento do Centro de Cultura e Eventos Dom Benedito Coscia, ao lado do estádio. As ruas estavam congestionadas de gente. Adolescentes bêbados fingiam não estar bêbados enquanto se divertiam com seus respectivos grupos. Adultos com roupas coloridas e brilhantes tentavam entrar nas filas enquanto falavam alto. A chuva do dia não foi suficiente para esmaecer o ânimo da população. Carros buzinavam para as pessoas, passando pelo único lado da pista que estava liberado. O som estava tão alto que podia ser ouvido nos bairros vizinhos. Um milagre conseguirem fazer uma festa daquela e incomodar a cidade que dormia cedo.
Um ambulante vendedor de cerveja passou por Cassandra.
— Vai uma cervejinha aí, moça de vermelho? Gelada, hein. Trincando. — Ele fez a propaganda.
— Quanto? — Cassandra perguntou.
— Cinco reais a lata e dez reais a long neck, mas para moça bonita como você é dez reais a long neck e cinco reais a lata. — Ele respondeu.
Cassandra riu e as pessoas ao redor dela também.
— Me vê a long neck mais gelada desse isopor aí. — Ela pediu enquanto estendia uma nota de dez reais.
— Opa! Agora mesmo. — O homem abriu a tampa do isopor e pegou para Cassandra a cerveja verde mais soterrada no gelo que ele conseguiu encontrar.
As pessoas ao redor quiseram também quando viram a mercadoria e o senhor saiu do ponto com o isopor quase vazio. Provavelmente ele iria no próprio carro pegar mais.
Cassandra bebeu a cerveja observando as pessoas e ouvindo a voz de Pablo Vittar cantando Rajadão para Jataí inteira ouvir. O sistema de som era bom mesmo. Um grupo começou a fazer uma coreografia ali mesmo, enquanto a fila não andava. Muitos jovens registravam os momentos em suas redes sociais.
Ela já estava quase na entrada do evento quando um Porsche preto estacionou em uma vaga reservada. Houve burburinho.
— Não acredito que ela está aqui. Nem vergonha tem. — Uma pessoa da frente falou.
— Ela quem, migue? — O acompanhante perguntou.
— A Virgínia Tamanduá, mulher! — A primeira respondeu.
— Ih... Babado. Não tanko nem um pouco essa desquerida. Muita gente desempregada por culpa dela. — Opinou esticando o pescoço para enxergar melhor.
A acompanhante pegou no braço do amigo e o sacudiu de excitação ao ver a fofoca pronta descendo do banco do passageiro.
— Mulheeeeeerrr... Se não é a Inezita!? — Disse com olhos arregalados.
— Olha, eu fiquei sabendo que...
O resto da conversa da dupla foi interrompido pela vez de entrar no recinto. Cassandra sabia que estariam lá, mas ao ponto de chegarem de Porsche? Ela pensou um pouco sobre as fortunas de ambas. Além dos empreendimentos urbanos, elas também tinham fazendas. Latifúndios. Dinheiro a perder de vista. No caso de Inezita não era dela, mas do marido. Sendo a herdeira, era dela, no caso.
Cassandra entrou no Arapucão e viu o grande palco no estádio. Na frente do palco havia uma plataforma um pouco elevada com uma estrutura para as pessoas executarem pole dance. Ela observou a área dos camarotes, acima das arquibancadas, e não viu bem porque tinham colocado filme preto no vidro.
A DJ responsável pelo set colocou uma música do Kasino, Can't Get Over. Cassandra se deixou levar pela batida e começou a dançar também, liberando um pouco do estresse e da pressão que sentia. A noite caiu aos poucos sobre aquele povo animado. Um homem com asas de anjo e abdômen à mostra chegou nela pedindo um beijo. Cassandra se permitiu e o permitiu. As pessoas à sua volta vibraram.
A DJ pegou o microfone e falou antes da próxima música:
— Agora uma dela, conhecidíssima como as noites de Paris! — O público vibrou.
Vermelho da Glória Groove tocou alto na estrutura de som enquanto a noite terminava de deitar sobre Jataí. As luzes fortes garantiam a visibilidade do público. As pessoas de vermelho eram apontadas e celebradas por quem estava em volta. Cassandra desceu, rebolando até o chão, muitas vezes. Quando a música acabou, beijou uma jovem mulher loura que chegou em si pedindo uma chance. Depois disso, sedenta, procurou onde comprar uma bebida. Não queria sair dali para não perder o flashmob da música Bailão do cantor Gabeu. Um grande grupo de pessoas usando chapéu tinha se juntado para mostrar sua dança.
Ela encontrou a venda de bebidas perto de onde estavam os camarotes, na arquibancada. No mínimo diferente. Pagou vinte e cinco reais em mais uma long neck. Decidiu ir ao banheiro e no caminho se desviou para futricar os camarotes. Eram divididos. Pensou que haveria segurança no corredor, mas não encontrou nenhum. Talvez estivessem dentro dos camarotes. Os nomes dos donos dos camarotes estavam pregados ao lado das portas. Era praticamente por família porque ela viu apenas sobrenomes. Encontrou o Tamanduá e topou com Rogério saindo de lá. Viu por cima do ombro dele que Virgínia e Inezita estavam agarradas.
— Opa! Você não é familiar. — Ele disse com um sorriso enquanto fechava a porta.
— Nunca te vi. Quero apenas o banheiro. — Cassandra tentou soar bêbada.
— Não. — O dentista riu. — Eu quis dizer familiar por ser da família. Vem, eu te levo até o banheiro.
Ele guiou Cassandra e a deixou na porta do banheiro. Ela observou ele, arrumado, com cheiro daquele perfume com números no nome. Parecia bem resolvido da vida. Apenas quando ele virou as costas foi que Cassandra raciocinou que ele também não era da família. A investigadora entrou no banheiro para disfarçar e quando saiu viu um segurança na porta do camarote.
Voltou para a festa, toda encabulada com aquela cena que presenciara. Ficou um pouco desconectada da energia boa que pairava entre o público.
De toda maneira não podia escapar.
— Daqui a pouco vem o black-out, hein! Já vai xavecando aquela pessoa que você quer beijar. Fica por perto para não perder tempo. — A DJ anunciou. — Quero agradecer aos patrocinadores. E também ao pessoal de Rio Verde, Mineiros, Serranópolis, Caçu e Caiapônia que estão aqui em peso. — O público vibrou. — São dez mil pessoas!
O público foi ao delírio e a DJ aumentou o volume da música The Rhytm of the Night.
— Que tal uma nostalgia enquanto os go go boys se preparam? — A DJ anunciou depois de abaixar o volume da música. O público deu uma resposta positiva. — Aposto que vocês não fazem ideia da música que vou tocar. E não se esqueçam, depois dos go go boys teremos black-out. Evitem assédio!
A DJ soltou a música Piriguete do MC Papo. O público foi ao delírio. Era uma música de coreografia fácil e batida animada, tudo o que o público amava. Cassandra estava pensando no black-out. Seria quando desligariam todas as luzes por um minuto para que as pessoas se agarrassem e trocassem carícias. Algumas pessoas estavam olhando para ela e acenando, mas ela se negava. Não queria se envolver mais, apenas aproveitar a música e dançar. Já que estava ali, era melhor seguir o fluxo.
Quando a música acabou, a luz ficou baixa. No palco menor subiram três homens mascarados. Um com asas de anjo, um com grandes chifres e o outro trazia um chicote e vestia uma capa preta.
Uma mixagem de Drink Me de Michele Morrone e River de Bishop Briggs começou. Os homens, com movimentos sensuais, dançavam e tiravam as peças de roupa sob uma iluminação vermelha, exibindo seus corpos esculpidos com anabolizantes e plásticas. O público uivava de alegria e excitação, principalmente quando o anjo subiu no pole e ficou de cabeça para baixo. Muito profissional, não era fácil sustentar aquelas asas. No fim os três estavam somente de sunga, máscara e cada um com seu acessório principal.
A apresentação terminou, a luz piscou e os três apareceram com as máscaras na mão. Cassandra quase não acreditou quando viu que o homem do chicote era ninguém menos do que Pablo Tamanduá, porém, não foi essa a sua única surpresa, pois o chifrudo era Vigílio.
O público delirou pela fofoca e pela revelação.
A luz piscou outra vez e eles sumiram. Provavelmente saindo por uma passagem invisível.
A contagem regressiva para o black-out começou. Os introvertidos se preparavam para o seu momento de glória. Os últimos três números no telão foram seguidos por gritos. Todas as luzes se apagaram, menos as das tendas de comida, ao longe. E no escuro, Cassandra ouviu suspiros, gemidos, estalos de beijos, tapas e até mesmo alguns gritos de prazer. Era quase um bacanal.
Quando o tempo estava acabando, nos dez segundos finais o telão piscou e a DJ soltou Brand New Day da Lorena Simpson. O público gritou. A organização do evento soltou um foguete. Aos cinco segundos o telão piscou outra vez. Cassandra sentia as pessoas dançando à sua volta e seguiu o ritmo. Outro foguete foi solto. Aos um segundo mais um foguete explodiu e as luzes foram acesas. As pessoas comemoraram, cheias de alegrias.
De repente começaram gritos de horror. A multidão se empurrava para a saída, vinda de perto do palco. Caos. Pânico. Choro. Desmaios. Pessoas implorando para abrir espaço. A DJ pediu ordem, mas logo gritou no microfone. Cassandra tentou andar contra a corrente, sem sucesso. Não conseguia enxergar. De alguma maneira saiu pela lateral, ouvindo a organização do evento pedindo ordem com uma voz abalada.
Cassandra finalmente conseguiu chegar na frente do palco depois de muito esforço. Os bombeiros tentavam controlar a situação.
O que ela viu fez seu estômago se revirar. Foi derrubada do estado de graça da diversão.
Ao lado da barra do pole dance estava o corpo de Inezita, morta, com seus olhos estáticos fitando o céu escuro. Tinha tomado três tiros. Um na testa e dois no coração. O sangue escorria, ainda fresco, manchando tudo. Os braços estavam abertos de qualquer jeito, uma perna dobrada por debaixo da outra.
Ninguém veio reclamá-la.
*****
Tinha sido um bom investimento. Assim que Inezita falou sobre colocar dinheiro naquela festa, concordou. À contragosto porque não queria aquela gente festejando em sua cidade, mas concordou. Seria uma grande oportunidade.
Havia mais surpresas chegando. Em breve estaria longe de Goiás, e sem preocupações para lhe dar rugas a mais.
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