ACORDE
Dor. Foi o que Cassandra sentiu quando recobrou a consciência ainda com as pálpebras cerradas, muita dor. Seu corpo estava no limite, todavia, teve um pouco de gratidão, pois apesar do plano ridiculamente suicida, ainda estava viva. Repreendeu-se mentalmente porque foi capturada e carregada para algum covil. O problema era: em qual lugar? A região predominantemente rural, distante de qualquer município, era um labirinto, confinamento, limitando absurdamente as chances de fuga e de ser encontrada entre os latifúndios. A derrubada de cerrado para fazer lavoura deixava grandes áreas descobertas, com uma visibilidade de longos campos abertos, sem possibilidade de se ocultar entre árvores. Mesmo que saísse de onde estava, a investigadora teria sérios problemas para fugir. Se, por um lado, havia grande dificuldade de escape, a facilidade de rastreio para os assassinos era a maior.
Cassandra acertou ao jogar o carro da rodovia, pois foi a única chance de deixar um sinal difícil de remover. Restava ter sorte, pois o suposto acidente não passaria despercebido por quem cruzasse a rodovia.
Os pulsos e tornozelos da mulher estavam presos. Os braços, forçados para trás, causavam uma grande angústia, visto que existiam as feridas adquiridas no Pará. A situação era péssima e incômoda, sem contar o formigamento nas pernas pela falta de circulação do sangue, o pior. Observou a posição de seu corpo, sentado sobre uma superfície larga e maciça, os joelhos em um ângulo de quarenta e cinco graus.. Sentiu cheiro e gosto de sangue. Àquela altura, a investigadora continuava de olhos fechados por questão de escolha. Antes de dar sinal, preferiu ouvir o ambiente e sondar o que poderia ser feito. Pelo menos tentaria algo para fugir da morte. Estava disposta a morrer tentando. Não pela justiça, pois não acreditava tanto nela, mas por crer que toda a sua vida não valeria a pena se não desse o máximo de si até o último suspiro. A pena. Penalidade. Momentos como aquele faziam tudo parecer um grande castigo por não ter escolhido outro caminho. Não podia controlar sua grande ambição. A verdade estava gravada em si e era uma só.
Ouviu alguns passos. O som característico, abafado, de solados de borracha em atrito contra um chão de terra batida. Cassandra sabia que não era o mesmo som de outros pisos. Quem caminhava não tinha preocupação com o silêncio, pois pisava firme.
Ela ouviu um suspiro pesado.
— Vamos acordar ela. — A voz rouca do homem fumante ecoou pelo ambiente.
Cassandra teve quase certeza de que era um barracão. Um tipo de galpão grande e com estrutura metálica.
— Não! Está maluco?! A dona Virgínia quer fazer isso. Deixa ela. — O segundo disse enquanto fitava Cassandra sentada em um toco de tronco de árvore que servia como banco.
A imagem da investigadora até causava um pouco de pena. Cabeça pendente, roupas sujas de sangue seco e terra.
— Está maluco de falar o nome da patroa?! — O primeiro, Adair, comentou com raiva.
— Essa aí não sai viva daqui, homem. Não tenho medo nenhum. É daqui para a cova. — Ele coçou o peito. Tinha depilado com lâmina e os pelos cresciam rápido. Faria uma boa depilação a laser com a recompensa pelo serviço extra.
— Você não tem medo, Cleiton? — Adair expressou um pouco de dúvida. Tinha aceitado o serviço porque a filha estava na faculdade de Direito, estudando na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e todo o dinheiro que entrava era pouco para manter a vida da universitária da estudante dedicada. O pai ainda planejava dar um carro de presente, na formatura. Seria a primeira da família a ter um diploma, o orgulho de todos. A mãe não se cabia de tanto orgulho.
Cleiton soltou uma risada sarcástica.
— A mulher está toda fodida, Adair, não tem arma e não vai conseguir fugir. Daqui a pouco a dona dá cabo dela, enterramos, o dinheiro cai na conta e vida que segue. — Falou com a segurança de quem tinha experiência no mercado de serviços paralelos.
— E a polícia? Vão caçar. Até onde a gente sabe ela tá voltando de um serviço que envolveu até a federal. Uma megaoperação. A dona Virgínia estava metida com isso de tráfico humano, homem. Vai dar ruim. Não tenho bom pressentimento. — Adair franziu o cenho.
— Vão caçar e não vão achar. Se quer saber, a melhor coisa para a dona Virgínia foi o porco do Sebastião ter feito a prateleira com material errado e defeito na estrutura. Ouvi falar... Presta atenção, hein, não é nada confirmado! Ouvi falar, que por último, o aço foi cortado para a prateleira despencar. Aí já não sei também, porque o povo inventa para fugir da responsabilidade. E a mulher tem o santo tão forte que mataram o marido dela. Aquele viadinho dentista era o problema maior. O que gostava de ir na outra fazenda fazer churrasco. O Jonatas que gostava dele. Os dois iam pescar no mato e era horas e horas comendo cu. De noite só dava ele passando pomada no dormitório dos peões e o povo zoando. Dava para ouvir o uivo deles quase lá da sede. Quando o finado Pablo ia junto, então...? Aí que a orgia animava mesmo. Depois a gente ia lá recolher os restos da festa para os bichos não comer. Enfim, o fato é que, morreram as testemunhas perigosas sobre muitos dos crimes dela. — Cleiton sorriu mostrando seus dentes bem alinhados. Uma pequena fortuna na boca. Usava um estilo que lembrava um José Rico reimaginado para os tempos modernos.
— O Rogério vai arrastar ela junto. — Adair apoiou o cano da espingarda no chão e usou ela para sustentar o peso de seu próprio corpo.
— Ele vai tentar, mas não vai conseguir. Ela vai injetar um dinheiro na organização e vai escapar. Já vou até procurar outro emprego. Quem sabe na fazenda dos Garcia? — Cleiton observou Cassandra imóvel, sentada na mesma posição.
— Fico besta de ver do que esse povo escapa. O dinheiro é o rei do mundo. Nem sei o que ia mandar ela para a cadeia. — Adair disse com um ponto de lamento e pesar na voz.
— Flagrante, mas é quase impossível. Os vizinhos não vão se meter porque cada um tem seus esqueletos no armário. Os empregados não são nem loucos. Mesmo os que não estão metidos no rolo se fazem de cegos. É isso. — O homem afirmou. Estava convicto e certo. A impunidade para Virgínia era quase um decreto de tão certa.
— Então para quê matar a detetive? — O colega perguntou.
Cassandra só ouviu o silêncio. Não viu quando o experiente capanga deu de ombros. Ele não sabia as razões para sua patroa realizar algumas ações. Era peão, apenas obedecia. Enquanto o dinheiro fosse depositado na conta, tudo ficaria bem, e ela era excelente pagante.
A conversa foi interrompida pelo barulho de um helicóptero. Era ela, Virgínia, e seu piloto de confiança que, assim como os demais, ganhava uma fortuna para ficar de boca fechada.
Virgínia estava pronta para viajar. Seus cabelos foram cortados acima da linha dos ombros, em um chanel muito elegante. Os fios saudáveis, tratados com os melhores cosméticos que o dinheiro podia comprar, foram pintados de cor castanha. Um tom de marrom que lembrava a cor do chocolate ao leite. O vento bateu no cabelo e ele fluiu para logo voltar ao estado inicial de repouso. O vento também tratou de espalhar pelo ambiente o aroma inebriante do perfume caro e doce. Os capangas que estavam do lado de fora do galpão metálico, localizado no meio da lavoura e um tanto distante da sede da propriedade, observaram a viúva com suas roupas caras de uma das grifes mais inacessíveis do planeta. O scarpin de solado vermelho pousou sobre o cascalho. Esse era o tamanho da fortuna de Virgínia: não se importar com um sapato que qualquer pessoa menos abastada, e com acesso, tratava como um bebê.
Virgínia pegou a sua bolsa, também muito exclusiva, e tirou de dentro dela a caixa dos óculos escuros, para depositá-los e guardá-los. Ela suspirou, dando o primeiro passo por ali, contudo apenas mais um naquele dia estressante.
Fez um acordo milionário com os contatos paraenses que entregaram Cassandra e sua localização após o ocorrido. Já sabia que Rogério tinha delatado tudo e agora era questão de tempo, horas, até que a polícia viesse bater em sua porta. Daria um fim a Cassandra para que ela parasse de mexer aonde não devia e irritar gente grande, depois, sumiria no mundo. Precisava viver seu luto. A morte de Leila ainda doía demais, principalmente pela forma como aconteceu. Para seu próprio bem, se convenceu de que deveria ser daquela maneira. A vida de Leila acabou quando todo o caos de assassinatos começou. Quando Sebastião foi jogado dentro do lago.
A cada passo dado por Virgínia sob o sol radiante sobre os campos, entre maquinários caros que custavam milhões de reais, ela contemplava o passado, o presente e o futuro. As colheitadeiras, os tratores, os capangas, tudo que o dinheiro podia comprar eram testemunhas de seu último triunfo. Ali ela selaria a sua paz em definitivo.
Virgínia chegou na entrada do galpão cheio de sacos com soja, onde havia mais algum maquinário caro, que não podia ficar exposto às intempéries, e caminhou em silêncio até se colocar frente a frente com a investigadora. Teve nojo daquela mulher sentada que estava em frangalhos.
Virgínia Tamanduá sinalizou para que alguém acordasse Cassandra. Não queria dar fim nela desacordada, não gostava da ideia de ser covarde naquela altura do campeonato.
Adair caminhou com sua espingarda em mãos, parou ao lado da investigadora e deu um tapa no rosto de Cassandra.
— Acorda! — Gritou. Então ergueu a cabeça dela, puxando pelos cabelos.
Cassandra, depois de tanto tempo já acordada, finalmente abriu os olhos. Viu diante de si o rosto de Virgínia com expressão de desgosto e nojo. Agora seus algozes, dos quais ouvira apenas as vozes, tinham faces conhecidas. Um homem pardo de cabelos castanhos e estilo de sertanejo antigo e um branco, loiro. Ambos de feições comuns. Cassandra analisou o galpão e viu ferramentas de plantio, sacos com soja e um espaço imenso, onde seria possível construir casas para pelo menos cinco famílias.
— Você devia ter ficado quieta no seu canto, Cassandra. Você se tornou uma pedra no meu sapato. — Virgínia falou em tom comedido.
Cassandra sorriu torto. A expressão sarcástica no rosto.
— Vocês são os criminosos, mas a culpa é minha. É, no mínimo, irônico. Toda santa vez a gente da sua laia joga a culpa em nós. — Falou sem medo. Se ia morrer, não iria engolir o sapo. — Mas, se quer saber, eu aceito um acordo para permanecer viva. Percebi que meus colegas de trabalho estão recebendo uma grana para trampos extras. Também desejo ter meu quinhão de corrupção.
Virgínia ergueu uma sobrancelha perfeitamente modelada. Se a ocasião fosse outra, talvez levasse em consideração a proposta. Entretanto, não poderia ceder. Apertou os cantos dos lábios e permaneceu em silêncio.
Acenou com a mão.
Cassandra sentiu quando a ponta do cano da espingarda foi encostada na parte posterior de seu crânio.
*****
A intuição de Marília era boa, mas, estar ali era resultado de uma fria análise dos fatos. Enquanto esperava o reforço, com as mãos plantadas nos quadris, Marília olhava para o carro de Cassandra, capotado à margem da rodovia, com as rodas voltadas para o céu.
A delegada sabia que a investigadora estava voltando para Jataí e pediu para ela avisar quando chegasse na cidade. Era de praxe. As horas passaram e Cassandra não deu sinal de vida.
Marília saiu de seu turno e entrou em contato com Celso para saber se ele tinha notícias. Nada. Cassandra estava desesperada para terminar de resolver o caso, então era possível que ela pedisse informações para Celso logo que estivesse na cidade.
Marília foi até a casa de Cassandra e teve certeza de que ela não estava lá e o carro não estava na garagem. Pediu informações para a vizinha, que deu certeza de que Cassandra não tinha chegado. A delegada ligou para o número de Cassandra pela vigésima vez e ouviu, frustrada, a mensagem automática.
Decidiu percorrer a rodovia. Talvez o carro da investigadora estivesse quebrado pelo caminho e ninguém parou para ajudar.
Marília sentiu um arrepio quando passou pelo posto da Polícia Rodoviária Federal. Seguiu dirigindo, atenta ao caminho. Então, perto de uma estrada de terra, avistou um veículo branco estacionado e um jovem com o boné na mão e o celular na outra. Marília reduziu a velocidade até estacionar. Desceu do carro para ver se ele precisava de ajuda, mas ficou perplexa quando percebeu que quem precisaria de ajuda seria ela.
— Boa tarde, senhor! — Cumprimentou.
Mal ouviu ele devolvendo o cumprimento.
— A senhora está bem?
Ela não respondeu, pois já estava descendo para verificar a placa do carro. A compreensão de que era mesmo o carro de Cassandra a atingiu como um golpe. Com todo o cuidado Marília verificou que as roupas dela ainda estavam lá e a chave do carro continuava na ignição.
Tinham emboscado a investigadora. O coração acelerou. O problema era grande.
Voltou para o asfalto, dividida entre retornar para pedir ajuda e permanecer para que nada ali fosse alterado. A partir de então precisou tomar uma série de decisões difíceis, sendo que a primeira era ir até o posto da Polícia Rodoviária Federal.
*****
Tiros. O primeiro tiro soou lá fora bastante avulso na calmaria do dia e dos campos, capturando a atenção de Virgínia e seus dois capangas. Depois do primeiro veio mais um, também um pouco avulso. Então se tornou um festival de fogos. E era possível ouvir gritos, corridas, projéteis acertando o metal do galpão. Abriram fogo.
A postura de Virgínia se tornou pó. Fosse quem fosse, não era uma pessoa aliada e ela estava bastante consciente dos inimigos que tinha.
A mulher começou a andar na direção da porta e seus capangas, Adair e Cleiton, correram para proteger sua fonte de renda, enquanto outros correram para dentro do galpão sendo acuados pelos tiros. Todos homens comuns, com roupas casuais e armamentos diversos.
Cassandra viu uma oportunidade.
Jogou-se do toco e rolou até uma máquina próxima que tinha a serra afiada. Conseguiu cortar as presilhas de plástico das mãos e dos pés, grata por não terem usado cordas que dariam mais trabalho para se romper.
Sentiu o corpo pesar, os músculos falhando quando tentou se levantar. Implorou mentalmente para não ceder e conseguir escapar. Precisava ser forte, esperta e corajosa se quisesse ter uma chance.
Os tiros continuaram. Cassandra notou que Virgínia tinha mudado de postura e direção e agora estava correndo mais para o centro do galpão, ao contrário de antes. A investigadora resolveu permanecer atrás da máquina. Assistiu aos homens de Virgínia caindo, um por um. Viu quando ela recuou alguns passos com as mãos para cima enquanto diversas armas apontavam para si. Estava cercada. A bolsa estava jogada no chão.
— Não. — A voz da mulher saiu trêmula, traduzindo um ápice de desespero. — Eu fiz tudo certo!
Cassandra viu um espaço entre os homens armados ser aberto, criando passagem, por onde caminhou outro capanga de constituição física forte, que trazia sobre o ombro um corpo o qual jogou aos pés de Virgínia, como um saco de lixo. O baque foi seco. O defunto estava de uniforme branco completamente manchado de sangue. Cassandra reconheceu o morto de expressão perturbada a quem faltava partes do corpo. Era ele, o jovem açougueiro que trabalhava para Virgínia.
Ela levou as mãos trêmulas até o rosto.
Então se fez silêncio. E naquele silêncio, um homem adentrou o galpão, caminhando calmamente, com postura altiva, de forma elegante, com seus sapatos caros de couro cuidadosamente tratado. No corpo tinha peças de roupa caras. Camisa branca e calça preta. Não eram caras como aquelas usadas por Virgínia, que estavam um nível abaixo na escala de prestígio. Eram de alta costura. O homem tinha cabelos longos e sedosos, se apoiava em uma bengala e estava com alguns curativos no rosto. Seu olhar expressava todo o ódio que ele sentia. Era ele, o dono do império. O titereiro que comandava tudo, mas fazia questão de sempre passar despercebido. Ele controlava, como um deus, cada pessoa e cada passo para que nada ficasse fora do lugar ou ameaçasse sua estabilidade. Ele estava lá, o tempo todo, em todas as reuniões, nos velórios, nas festas e nas mortes. Era ele quem se sentava à cabeceira da mesa quando a família toda se reunia à portas fechadas. Ele, que corrompeu o açougueiro de Virgínia e fez ele trabalhar para ambos. A mente operante por detrás dos assassinatos que incriminavam a todos.
— Rodolfo.
Rodolfo Pagazine, magnata do agronegócio e chefe da família.
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