A NOTÍCIA
João Ambrósio observava atentamente a tela plana do aparelho televisor de sua venda, instalado de frente para o caixa em um suporte que ficava fixo na parede, acima de uma gôndola onde estavam dispostos pacotes coloridos de salgadinhos, organizados por tamanho, dos maiores para os menores. O aparelho estava sintonizado no canal Morro Prateado. O jornal do meio-dia estava prestes a começar e a última chamada antes do programa sensacionalista era exibida, evidenciando que algo muito grave aconteceu na cidade naquela manhã.
A inquilina de João, uma mulher que tinha vindo de outra cidade a trabalho, entrou na pequena mercearia onde dispunha de uma conta aberta. Pegava fiado e sempre acertava no começo do próximo mês, ou quando tinha mais tempo disponível, porque muitas vezes era mais rápido do que pagar no ato da compra, principalmente quando a fila de clientes estava grande. Ela se sentia especificamente enfraquecida naquele dia, quase morta de tanta fome, pois ainda não tivera o prazer de desfrutar de uma refeição, mesmo depois de passar por uma manhã exaustiva de trabalho intenso. João não prestou muita atenção na mulher alta, preta, cuja tez era muito uniforme e brilhante de hidratação. Se elfas fossem reais, aquela presença de belas pernas longas, as representaria muito bem.
Ela parou perto da porta e olhou para o televisor, erguendo as longas sobrancelhas enquanto ouvia o texto que saía da boca do apresentador, e que ele claramente lia em um teleprompter. O tom de voz era dinâmico, quase eufórico:
"Hoje! Famoso serralheiro de Jataí foi encontrado MORTO nas águas do Parque Brito! Testemunhas afirmam que o homem estava sem a cabeça! NÃO PERCA!"
Após o anúncio, iniciou-se a exibição do comercial de uma casa de artigos para pescaria. João, desinteressado do esporte, olhou imediatamente para Cassandra, que estava nitidamente incomodada com aquela chamada. Ela esperava que Celso tivesse adiantado o serviço, pois se o Parque Brito ainda não estava cheio de gente, logo ficaria, e isso seria incontrolável. A contaminação do perímetro seria total, tornando impossível a coleta e a identificação de quaisquer vestígios. As pessoas não podiam resistir a uma tragédia, principalmente quando era escandalosa como aquela. Romeu e Julieta não atravessaram os tempos à toa. O turismo macabro era inevitável na atual conjuntura, principalmente com um holofote apontado para lá.. Cassandra até temia pelos adolescentes que iriam lá durante a noite, podendo causar ou ser alvo de acidentes.
— Ele estava sem a cabeça mesmo? — João Ambrósio indagou enquanto abria um botão da camisa. Ficou acalorado só de imaginar a cena terrível. Viu-se sufocado pelo tecido da camisa, que retinha o calor gerado pela agitação, levando à consequente dilatação dos vasos sanguíneos, gerando aumento do fluxo de sangue; tudo graças à cena horrível que se delineava em sua imaginação. Se pudesse a tiraria por inteiro, mas não considerava esse tipo de ato como digno do dono de um estabelecimento comercial.
Ele sabia que Cassandra trabalhava na polícia, mas não fazia ideia de qual era a incumbência dela dentro da instituição.
— É mentira. — Cassandra revelou, ligeira. Não tinha interesse em alimentar a boataria com um silêncio que seria interpretado como consentimento. — Não posso dar detalhes, mas ele estava com a cabeça no lugar.
— Ê "fia", o trem tá feio. Jataí está cada dia pior. — João coçou a barba por fazer enquanto focava os olhos em nada específico.
Para evitar muita conversa, porque estava com o humor de um urso faminto e raivoso, Cassandra andou até a prateleira de panificados e pegou um saco de pães doces. Depois de catar uma caixa de suco industrializado, passou pelo caixa, onde pagou tudo o que devia, e tratou de ir logo embora.
Sentada no banco do carro, pesquisou sobre a família de Sebastião na internet de seu celular de trabalho e descobriu que a esposa dele era proprietária de uma clínica estética, onde ela trabalhava pessoalmente. Clínica Boa Beleza, muito bem avaliada pelos usuários dos serviços.
Estando a notícia da morte do homem já no jornal, significava que ela, a esposa, provavelmente tinha sido informada do ocorrido por meios oficiais. Pensando nisso, Cassandra ligou para a delegada.
— Fala Cassandra. — Marília atendeu com ar de quem imaginava o que estava por vir.
— Onde encontro Inezita Courvinel? — A investigadora esperava que ela soubesse, para poupar seu tempo. Talvez as outras pessoas trabalhando no caso já tivessem conversado com a viúva.
— Aqui mesmo. Eu seguro ela, mas venha rápido. — Marília desligou assim que terminou de falar.
Certamente o dia dela estava sendo o próprio purgatório em vida, principalmente porque repórteres e jornalistas quereriam falar sobre o acontecimento para explorar ao máximo as nuances de crueldade.
Cassandra dirigiu rumo à Delegacia Regional da Polícia Civil de Jataí, que ficava duas ruas, três quadras, acima do Parque Ecológico JK. No parque havia um lago, uma grande roda d'água e um Museu em Homenagem ao Presidente Juscelino Kubitschek. Foi em um comício na cidade de Jataí que JK anunciou a construção de Brasília, um fato historicamente apurado, mas Cassandra nunca se importou em se aprofundar naquela informação. Só sabia que o espaço era bonito e agradável de visitar. Logo ali, perto do Lago JK, ficava o início das escadarias que davam acesso à gigante estátua do Cristo Redentor. Branca, de braços abertos, no cume de uma subida castigante, que, contudo, recompensava com uma vista panorâmica da cidade. Muito bela, de fato.
A delegacia era localizada em frente à popular Praça da Maromba, que tinha outro nome oficial, mas na prática quase ninguém sabia qual era. Aquele bairro todo tinha muitas e importantes histórias, pelo que ela soube. Foi ponto de prostíbulo, era perto de uma antiga escola que se tornou um museu histórico, e de outra escola que ainda funcionava. A delegacia estava localizada uma rua abaixo da principal avenida da cidade: a Avenida Goiás. A sede era um prédio grande, com fachada preta, branca e com uma boa porção de janelas de vidro.
A investigadora estacionou na praça, debaixo de uma das frondosas árvores do local. Vestiu a camiseta de uniforme, preta, com estampas de "Polícia Civil", a bandeira do estado de Goiás e o brasão sobre o peito. Ela nem se deu ao trabalho de tirar a regata preta de alça fina que usava desde que tinha passado em casa para tomar um banho rápido, mais cedo. Colocou um par de óculos escuros, modelo aviador. Respirou fundo e saiu do carro com expressão séria no rosto.
Reconheceu Inezita de imediato quando a viu. Loura platinada, corpo esculpido por plásticas, usando roupas e sapatos de grife. Um perfume doce que sequestrava todo o ambiente. Nova rica, com toda a certeza. Usava marcas caras, porém populares. A mulher trazia em seu pescoço uma fina corrente de ouro com um pingente de figura humana estilizada, simples, uma criança que usava boné, tradicional das pessoas que queriam sinalizar amor por um filho do sexo masculino. Cassandra achava o auge da breguice, mas engoliu suas opiniões naquele momento de tensão.
Marília apareceu, apresentou as duas e identificou cada uma. Inezita segurava um lencinho de tecido fino junto ao nariz, como se estivesse controlando a respiração enquanto aspirava algo, e não secando as lágrimas. A perfeita maquiagem da mulher estava intacta, sem nenhum sinal de pranto..
— Vou fazer algumas perguntas, pois vai ser de grande ajuda para a investigação. — Cassandra anunciou de maneira objetiva, pois esperava por colaboração.
— Se for invasiva, preciso ligar para meu advogado. — Retrucou a mulher. Seca. Tão árida quanto seus olhos, dos quais a investigadora esperava sinais de choro.
Cassandra segurou uma expressão de tranquilidade, porém a truculência de Inezita a deixou inquieta. Sentiu a ponta da língua arder com a resposta ácida que morria ali.
Era de se esperar que uma mulher naquela posição social fosse exigente, exibida ou mal educada, porém, pensar primeiro em se proteger antes de obter justiça pelo marido, era suspeito. Na realidade os cônjuges eram sempre suspeitos, e geralmente culpados, naquele tipo de caso.
— Hoje estive na Serralheria Boa Sorte e disseram que o seu marido estava viajando. Foi você quem estabeleceu esse protocolo de resposta? — Cassandra observou bem a reação da mulher.
Inezita empertigou-se sobre os saltos finos e ergueu uma sobrancelha. Tentava emular altivez.
— Sim. Nossos negócios envolvem relações que não podem passar por turbulências. Ou não poderiam... — A resposta era prática.
— Por que você não notificou a polícia sobre o desaparecimento do seu cônjuge? — Cassandra anotava as respostas no bloco de notas do celular.
— Vocês não iriam procurar por ele tão cedo. — As palavras saíram entredentes como se ela tivesse ódio da polícia.
Ou como se ela os tivesse chamando de incompetentes.
— Entendo. — Cassandra manteve a mesma postura relaxada e neutra enquanto anotava. — Há quantos dias ele estava desaparecido?
— Uma semana. — Inezita segurou a bolsa com mais força. Os nós dos dedos se tornando esbranquiçados pela pressão exercida.
— Qual é seu nome completo e a sua idade? — A pergunta parecia vazia, mas era importante para Cassandra.
A senhora de Sebastião pareceu ofendida.
— Inezita Barroszo Courvinel. E não me questione mais! Perguntar a idade é bobagem. Agora me deixe, porque preciso preparar o funeral. Égua! — A mulher virou as costas e colocou novamente o pano sobre o nariz.
— Eu realmente sinto muito pelas crianças. Será difícil para elas enfrentar a atual verdade sobre o pai. — Cassandra disse, fazendo a mulher se voltar para ela com um olhar de raiva.
— Nós não temos filhos. — Inezita retrucou no ato.
— Creio que me confundi, senhora. Sinto muito. Pensei que já tinha ouvido dizer que Sebastião tinha filhos. — Cassandra imprimiu na voz o pesar por seu erro. Estava atuando muito bem.
— Nenhum de nós tinha filhos! Nem juntos e nem separados. — Inezita tornou a afirmar. — Poupe-me de seus fuxicos.
A mulher saiu em um rompante.
— Talvez a senhora seja convidada a colaborar novamente. Obrigada.
Cassandra tinha certeza de que Inezita ouviu, mas ela não respondeu. A investigadora observou que a linha do maxilar dela estava tensa.
Foi em um espaço de segundos depois da saída da viúva que o repórter da Morro Prateado entrou no recinto. Certamente em busca de informações. Cassandra correu para se esconder e não ser marcada por eles. Tentava ao máximo manter sua face oculta, longe de câmeras. Algumas pessoas ficariam felizes em colaborar com investigações, mas outras não. Discrição era importante. Sobraria para a pobre Marília o serviço de contenção.
A delegada apareceu na frente dela, de cara amarrada.
Cassandra segurou o braço de Marília e sussurrou:
— Inezita foi informada sobre quanto tempo faz que o marido morreu?
— Não. Quis ser "poupada de maiores detalhes por estar abalada". Sabe apenas que foi um provável homicídio. — Marília respondeu enquanto passava as pontas dos dedos de uma mão sobre a testa, em um movimento de vai e vem, massageando.
— Isso explica porque ela não mentiu sobre o tempo de desaparecimento dele. E mais uma pergunta... Notei que ela tem um sotaque diferente do jataiense. Ela é de outro estado? — Cassandra soltou o braço da colega de trabalho, liberando-a para seguir em frente.
— Dizem que veio do Pará, mas ninguém sabe ao certo. Eu mesma não sei, já que o sotaque dela imita muito bem o nosso, inclusive nas expressões. — Marília fofocou.
— Parece bastante, mas ela não consegue cortar as palavras da maneira correta. As pessoas ricas daqui falam devagar em situações formais para amenizar o sotaque e a supressão de sílabas. Ela, porém, não faz isso. Ela não fala rápido informal e nem devagar formal. Ela fala rápido formal. Ainda soltou um "égua" no fim das contas. — Cassandra compartilhou a informação. — Por acaso você sabe a idade dela?
— Ela fez um baile de sessenta e cinco anos em abril. — Marília recordava da ocasião, pois estava na festa.
— Nem ferrando, Marília! Essa mulher é mais nova do que parece. — A investigadora compartilhou uma de suas desconfianças.
— Como? — Marília cruzou os braços na frente do peito.
— Ela fez plásticas que acentuam os traços de idade, mas a pele do pescoço e das mãos é jovem. Pelo viço eu julgo que ela tem na casa dos quarenta anos.
Marília nunca tinha reparado.
— O que ela está escondendo? É a nossa assassina? — Marília estava fazendo hora para não encarar o repórter.
— Não sei, Marília. Não sei. Acho que é o clássico, sabe. Ex-prostituta com identidade nova. — Cassandra jogou sua maior suspeita no ar. — Uma coisa é fato: essa mulher estava com ele por pura conveniência. Agora vá atender as visitas.
Os ombros de Marília se tornaram caídos de tristeza por precisar se prestar àquele papel.
— Pelo menos estou bonita para as câmeras?
— Mais bonita do que isso é impossível, gatinha. Vai lá. — Cassandra deu um tapinha no ombro da delegada e tratou de correr para a própria mesa.
Depois de preencher o relatório, seu próximo destino era uma conversa técnico-científica.
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