25 - Amundsen
Alguns dias depois...
... Ausentei-me uma segunda vez da narrativa, mas a retomo aqui, em tempo. Ainda há muito o que explicar.
Inês estava em nosso sítio passando uns dias com o irmão, agente da Polícia Federal:
— Basílio, como foi que você chegou no casal Ribeiro?
— Foram anos investigando...
"Assim que Patrícia foi julgada, prossegui minha investigação com a ajuda do atual delegado titular do Deic, o Madeira, meu amigo e devo salientar, fui arrolado como testemunha, mas o defensor preferiu não levar adiante qualquer outra ideia para a autoria do crime, uma vez que ele próprio não acreditava na inocência da cliente, preferindo seguir na linha de 'redução de pena'. Não seria eu, portanto, a levantar novas teses sem fundamentação consistente.
"A primeira coisa que me preocupei foi tentar verificar se havia algo ou alguém que nos escapara do radar, na tentativa de descobrir quem era o contra-almirante farsante. Foi então que li o livro da Dra. Ema e vislumbrei uma possibilidade: o capitão Ribeiro! Era um forte candidato. Quando finalmente vi uma foto dele, não tive dúvidas: Ribeiro era o nosso homem!
O irmão de Inês estava encafifado:
— E por que ninguém fez isso antes, digo, ver a foto?
Ri, olhando firmemente para Rômulo:
— E por que alguém o faria se Ribeiro nada tinha a ver diretamente com a EACF? Ele era um capitão da Marinha Mercante (digo 'era', porque depois do crime abandonou a carreira para 'sumir por uns tempos'). Ele trabalhava em terra, tendo ido naquela viagem apenas para acompanhar os testes de reforma do navio... Passou ao largo!
— E por que você não o denunciou de imediato? — insistiu Rômulo.
— Porque eu não queria simplesmente denunciá-lo como um mero 'ladrão de souvenires'. Eu o queria na cena do crime! E foi aí que tive um 'estalo'. E o devo à sua irmã.
Inês surpreendeu-se:
— A mim?
— Sim. Lembra-se das aventuras de Scott e Amundsen?
— Claro! Mas o que isso tem a ver?
— Tudo!
— Como assim? Não consigo enxergar a associação...
— Calma Inês, eu explico...
" Em algum momento eu comecei a pensar numa disputa entre duas equipes rivais: Patrícia e Carlos Eduardo; Ema e Ribeiro... Enquanto Patrícia queria dar um álibi ao amante, talvez Ema quisesse dar um fim no marido; e incriminar Patrícia, por que não? Assim, notei que eu já tinha na EACF três dos envolvidos: Patrícia, Carlos e Ribeiro, faltando apenas um: Ema... Mas como? A doutora estava a 1000 quilômetros dali, convalescente, muito embora ela não precisasse ir, simplesmente poderia ter enviado o Ribeiro para fazer o serviço por ela...
"Duas equipes rivais... Scott e Amundsen! Ambas partem da Europa com um objetivo: alcançar o polo sul. Ambas aportam na Antártida e seguem seus planejamentos... Mas Scott, a começar pela escolha marítima errada, seguida de escolhas equivocadas também por terra, desgasta-se demais e fica sem 'gás', sem energia. Amundsen, pelo contrário, escolhendo um caminho marítimo mais favorável chega inteiro ao continente. E seu caminho por terra, com melhor planejamento, encurta e facilita sua viagem
"Amundsen foi e voltou! Já Scott não conseguiu completar o objetivo. Foi, mas não voltou! Erro básico de Scott: levou toda a equipe junta. Acerto básico de Amundsen: mandou a equipe na frente e partiu depois. Isso fez toda a diferença.
"Foi casual a associação, mas abriu meus olhos... Patrícia, como Scott, não enviou sua equipe à frente: saiu junto a ela. Carlos não foi adiante para sondar o terreno, analisar as alternativas e verificar as possibilidades. Saíram juntos, assim expuseram-se demais e planejaram de menos, não sabiam o que iriam enfrentar, tudo acabou sendo inesperado e difícil de equacionar. Patrícia partiu para o desconhecido sem nenhuma informação do que viria à frente. E como Scott, deu-se mal. Mas e Ema?
"Ema, como Amundsen, ficou na 'base' (na cidade chilena). Enviou à frente o capitão Ribeiro (sua equipe), que observou o terreno, 'armou as tendas' e verificou as possibilidades, pavimentando o caminho para ela seguir depois. Mas veio a pergunta: se ela tinha ido, quem seria ela e como teria conseguido? Foi nesse ínterim que eu me lembrei da Azevedo; e do segundo voo!
"Estivemos sempre diante de um crime passional. Ema empreendeu uma verdadeira aventura antártica e somente tendo um motivo muito forte para suportar viagem tão 'heroica', indo até aquele fim de mundo. Tal qual Amundsen, uma jornada épica; e isso depois de tudo o que havia sofrido. A ousadia e determinação de Ema, bem como a de Patrícia, só poderiam mesmo serem comparadas às desses dois gigantes da conquista antártica: Amundsen e Scott!
— Nossa, Basílio — admirou-se Inês. — Jamais pensei que você faria dessa história um gancho tão perfeito. Quem diria... Mas você dizia que tudo teve início quando os dois desembarcaram em Punta Arenas...
— Ah, sim, Inês, verdade. Assim que se despediram no porto, cada um seguiu seu rumo. O capitão Ribeiro dirigiu-se a um hotel, onde passaria a noite, afinal só embarcaria no cruzeiro no dia seguinte. Já Ema seguiu para a pousada Torres del Paine.
"A cidade é pequena... À noite Ema vai passear na cidade e encontra quem? O capitão Ribeiro!
— Será que ela já não foi de caso pensado? — perguntou Regina da cozinha, enquanto colocava quitutes sobre o balcão separador de ambientes. — Eu aposto!
Basílio dirigiu um olhar para a esposa:
— Com certeza! Daí para compartilharem a mesma cama mais tarde, foi um passo, quando então decidem passar juntos o Reveilon no transatlântico. Ribeiro desiste do cruzeiro e de seu acampamento antártico e serão agora quase dez dias em verdadeira lua de mel, até a chegada de Carlos a Punta Arenas.
Inês apertou os lábios, balançando a cabeça:
— Puxa, então a doutora Ema não perdeu tempo... Mas e depois que foi jogada na ribanceira, o que aconteceu?
— Na verdade — retomou Basílio — algo importante aconteceu antes disso...
"Ema estava no quarto, desmaiada. Enquanto Carlos e Patrícia estão às voltas com a blitz policial, o celular de Ema no chão, perto de sua mão, toca. Era o Ribeiro! A ligação foi completada e durou 30 segundos. Ema despertou com o toque e conseguiu atender, pedindo socorro, mas logo desmaia de novo. Preocupado, Ribeiro vai até a pousada, mas demora a chegar, provavelmente a mesma blitz. Isso dá tempo a Patrícia e Carlos de colocarem Ema no porta-malas e saírem. Quando Ribeiro finalmente chega, não encontra mais ninguém lá.
"Mas um funcionário diz a ele: Ema (na verdade Patrícia), deixou a pousada com o marido. É então que chega para o trabalho, numa incrível coincidência, o mesmo rapaz que tinha socorrido Ema no meio da mata; e chega contando o fato. Como a descrição bate com a da doutora, Ribeiro a procura no hospital. Quando ela desperta, pede ao capitão que procure o tio, que estaria chegando à residência recém-adquirida naquela tarde.
— Meu Deus, essa blitz então foi decisiva na história. Primeiro segurou Carlos e Pat; depois segurou o Ribeiro; e ainda ajudou a resgatar Ema...
— Pois é! Pena que não parou e pegou os dois meliantes no bafômetro, pois assim nada mais teria acontecido... São esses pequenos 'voos da borboleta' que às vezes me preocupam...
— O quê? — surpreendeu-se Rômulo.
Basílio riu:
— Teoria do caos, conhece?
— Sim, mas o que tem a ver?
— Depois explico.
Inês não queria perder o foco:
— Mas o Carlos não conhecia o tio da Ema?
— Não. Ela morava sozinha em São Paulo há muitos anos, toda a família Salgado é do sul. Sabiam que ela tinha casado, mas nunca tinham sido apresentados a Carlos. E se ele algum dia ouviu falar em Henrique Nunes Salgado, jamais atinou que H. Nunes fosse o nome de guerra do tio de Ema...
"Bem, à noite no hospital Ema conta para Nunes e Ribeiro o que ocorreu. Ribeiro então revela algo que o funcionário da pousada comentou. Carlos, ao ser perguntado porque Ema estaria deixando o local um dia antes do previsto, teria respondido: 'Decidimos passar a noite no Magalhanes, antes do embarque para a EACF, amanhã'.
"Assim, a equipe 'Amundsen' começa a planejar o que fazer com a equipe 'Scott'... Naturalmente que o plano inicial não era de assassinato, mas tinham um problema: não podiam levar o caso às autoridades chilenas, com o risco de uma não extradição da dupla. Decidem que é mais prudente primeiro confirmar o embarque, para tão somente depois tentar desmascarar os dois, dando-lhes voz de prisão dentro da EACF. Devemos lembrar: a EACF é um território brasileiro, somente ali dentro as leis brasileiras irão valer. Isso explica o motivo do convite feito a mim...
Regina serviu os convidados com canapés:
— Não entendi, Basílio...
— Simples. Ribeiro percebeu que eu seria a pessoa ideal para dar peso moral à voz de prisão. Daí o convite. Durante nosso café da manhã, naquele dia, lembra?, quando ele finge atender a um telefonema da presidente? Na verdade liga para o almirante Nunes para lhe dizer da ideia e perguntar se poderia me convidar... Já na EACF, uma vez alcançado o objetivo, Ribeiro revelaria sua verdadeira identidade, alegando uma missão secreta e me convocaria para dar voz de prisão aos dois. Somente nesse cenário é que vejo o velho almirante aceitando participar desse conluio, arriscando sua reputação.
"Mas por que o disfarce? Imagino que a ideia de enviarem o capitão Ribeiro no lugar do H. Nunes foi pelo fato de Ribeiro ser mais jovem, com mais agilidade para contornar imprevistos, além do fato de conhecer bem a região. Ele ia disfarçado, mas o era em missão secreta. O 'rei da Noruega', o tio Nunes, seria mais útil na retaguarda do 'norueguês Amundsen e sua equipe'.
"Há que se observar um detalhe: o falso H. Nunes utilizava o uniforme de um contra-almirante, mas o verdadeiro H. Nunes era almirante. A insígnia de um almirante possui cinco estrelas, a de um contra-almirante, duas...
— Ora — disse Inês. — Então... Como eles conseguiram um uniforme tão rápido, inclusive com o nome bordado?
— Essa pergunta eu me fiz por muito tempo, mas depois descobrimos: no armário da casa em Punta Arenas havia alguns uniformes de quando H. Nunes fora contra-almirante, na época mais magro. Caiu como uma luva. Ribeiro não podia mesmo usar o uniforme do almirante, por causa da idade. Iriam desconfiar fácil, pois ele era muito novo para já ser um almirante... E ainda é.
Inês estava cada vez mais encafifada:
— Mas e o uniforme da capitã? Onde conseguiram?
Basílio explicou:
— No mesmo guarda-roupa! O tio Nunes o tinha dentro do armário, de uma antiga amante. De qualquer forma, pouco dos uniformes apareceram, devido às roupas de frio.
"Bem, nesse primeiro momento a ideia deles do que farão está apenas se delineando. A postura no planejamento, entretanto, não é a do atabalhoado Scott, mas sim a do metódico Amundsen. Às 21h30 do dia 09 Ribeiro já faz sua sondagem no Magallanes, para vigiar os passos de Carlos e Patrícia. Já travestido de Nunes, hospeda-se lá. É quando me conhece.
"Com a sondagem no Magallanes ele não só confirma que Patrícia está usando o nome de Ema (conforme a ficha na recepção), como também descobre o que ela realmente pretende: se fazer passar pela doutora, viajando no lugar dela junto a Carlos. E assim tudo se encaminha para o plano da voz de prisão...
"Ribeiro sai na frente: às 8h30 do dia 10. Já na EACF ele manda uma mensagem cifrada por rádio a Ema, de que ela pode seguir no segundo voo. Ema só irá partir quatro horas e meia depois de Ribeiro: às 13h00 do mesmo dia.
"Lembro-me dessa mensagem... Foi quando também mandaram um recado para Regina, isso foi por volta de 12h20. Eu nada percebi, porque a mensagem foi subliminar, do tipo: 'Avisem minha sobrinha que correu tudo bem'. Eu até pensei que essa 'sobrinha' fosse algum cacho do Nunes. E era, só que não um cacho qualquer, mas aquela que viria a ser sua esposa: Ema Arantes! A mensagem era a senha, dizendo: 'Pode vir'!
— Muito corajoso da parte dela ir até lá, depois de tudo o que passou, não acha?
— Sim, Inês, mas é evidente: a sede de vingança a movia! Sentindo-se melhor, seguiu viagem. O que Ribeiro e Nunes não podiam imaginar é que ela tinha outros planos: um assassinato!
"Já na estação, convence seu comparsa. O velho Nunes está alheio a tudo: sem comunicação, não pode mais interferir. Quando ele fica sabendo, com o rádio consertado, já é tarde. Resta-lhe apenas 'virar-se nos trinta' e ir lá e resgatar a sobrinha e seus pertences, até então em posse de Patrícia.
"Devo lembrar que Patrícia não conseguiu verificar as ligações no celular de Ema, porque o aparelho estava descarregado. E que posteriormente o verdadeiro almirante Nunes o levou embora da EACF. Esse foi um dos motivos para ele ter ido lá, além de resgatar a sobrinha: levar embora seus pertences, com o propósito de evitar que o celular chegasse a ser examinado pela polícia, bem como o RG. Por isso inclusive a falsa capitã subtraiu parte das fichas datiloscópicas. Só não sabiam que tanto eu, quanto Patrícia, tínhamos cópias: eu das fichas; ela, da carteira de identidade...
"Bem, uma vez decididos pelo assassinato, sabem que por todas as limitações da perícia, detalhes serão perdidos e é com isso que contam. Por isso Ribeiro insiste na minha ação. Quer que eu desfaça a cena do crime e acredita que vou meter os pés pelas mãos.
"O ponto mais arriscado e audacioso foi fazer tudo o que fizeram, bem debaixo do meu nariz. Que loucura! No final deu certo e acabei dançando conforme a música. Como a investigação foi aplaudida pela Polícia Federal, não havia dúvidas: Carlos Eduardo foi morto por Patrícia Rocha e a fuga do falso H. Nunes explicada providencialmente pela questão do roubo dos apontamentos de Peary. Foi até feito um retrato falado, mas não resultou em nada.
— E como ele saiu da Antártida?
— Ah, não se lembram do livro? O Ribeiro pretendia acampar na ilha Rei George e depois pegar uma carona no Besnard. Foi o que fez. Ficou acampado bem longe dali e depois regressou com o navio.
"Destaco, por fim, alguns pontos importantes da trama, armados por eles para atingirem seus objetivos...
Peguei uma ficha no bolso da camisa:
— Deixe-me ver... Hum... Ah, sim...
"São eles:
a) A baixa ocupação dos dormitórios no setor civil dos alojamentos;
b) A decisão do falso H. Nunes em dormir na ala dos civis;
c) A iniciativa dele em acatar a ideia de marcar a sessão de cinema;
d) A garrafa de vinho, levada por ele próprio, para a sala de vídeo;
e) O sonífero na taça de vinho, forçando Carlos a dormir mais cedo;
f) A expectativa de que eu e Inês aguardaríamos o final do filme;
g) A expectativa de que Patrícia não acompanharia Carlos;
h) O providencial confinamento de Humberto;
i) O fato de o cabo Gerson já ter realizado sua ronda;
j) Por sorte, Ernani ter ido dormir cedo.
"O falso almirante sai da sala de vídeo e dirige-se ao alojamento da cúmplice. Avisa-a que o caminho está livre. Diz que o sonífero na taça de vinho deu resultado e que falta ainda meia hora para o término da segunda película. Patrícia, como suspeitavam, não acompanha o amante (Ema soube do assédio, escondida no meu alojamento e desconfiou que Patrícia iria querer evitar Carlos ao máximo). A ala civil está praticamente deserta, o delegado e Inês estão empolgados com o filme...
"Ribeiro e Ema dirigem-se aos alojamentos e entram no quarto de Carlos. Ele estranha a presença do almirante. A capitã entra. Imagino a surpresa do gigolô! Cometem o crime com uma ideia básica: reunir o máximo possível de elementos para incriminar Patrícia, tais como:
a) O corpo no alojamento dela;
b) A arma com suas digitais;
c) Seu lenço manchado de sangue;
d) O cantil de Carlos com sonífero.
— Meu Deus, que diabólico.
— Sim, Regina. E a aparente insistência do falso H. Nunes em encontrar logo um culpado, mesmo que não fosse Patrícia, era tudo um teatro da parte dele, porque o que ele queria mesmo era incriminá-la. Na verdade quem queria isso era a Ema, ele apenas fazia o que ela ordenava. No fim, com todas as histórias que Patrícia inventou, acabou por ajudar a criar ainda mais evidências contra si...
"Em especial:
a) O vulto que saiu pela porta;
b) A fantasia sexual, contraposta ao silêncio;
c) O crime ocorrendo após sua ida ao banheiro;
d) A própria falsidade ideológica, que motivou todas as mentiras.
— E a questão das camisas pretas? — indagou Inês.
— Ah, bem lembrado. Ema sabia que Carlos possuía várias camisas pretas e pegou uma qualquer, deixando-a bem amarrotada dentro da mala, para que eu pensasse que era a camisa que Carlos usava na sala de vídeo e que tirou e enfiou de qualquer jeito na bagagem, a fim de vestir o jaquetão. Fazia muito frio, a camisa usada não estava suada, a ponto de alguém perceber qualquer diferença entre uma e outra. Guardaram a camisa cortada e ensanguentada como um trunfo, para depois tentarem o golpe final contra Patrícia.
Inês olhou para o irmão, abismada. Ele questionou:
— Por que a falsa capitã sumiu com as fichas datiloscópicas de vários militares e não apenas com a dela e do Nunes?
— Excelente questão. Foi para não chamar a atenção para si própria. Deu a entender que na pressa o falso H. Nunes passou a mão num punhado e deu no pé.
— Essa mulher é um perigo! — asseverou Inês. — Ainda bem que você me pediu para fazer uma cópia de tudo. Foi o que salvou!
— Pois é — concluí. — "Gato escaldado, tem medo de água fria".
O irmão da bela Inês, não menos belo, arrematou:
— Eles não podiam mesmo correr o risco de chegar nas mãos da polícia qualquer coisa que os ligasse à EACF...
Concordei:
— Perfeito, tanto que a cópia que fiz das fichas é prova cabal de que os dois estiveram lá e agora ainda haverá o reconhecimento facial dos indiciados, pelos envolvidos, mas de qualquer modo, com ou sem ficha datiloscópica, ninguém havia pensado em ligar a capitã Azevedo ao crime. Quando Ema voltou a Punta Arenas, a capitã que ela incorporou deixou de existir e o advogado que o Estado arrumou para Patrícia ficou mais preocupado em reduzir sua pena. Vocês acham que ele foi atrás de capitães e almirantes da Marinha?
"Por uma sorte incrível a verdadeira capitã Azevedo, embora inocente, mas dona do uniforme utilizado na ação criminosa, morreu algum tempo depois, não podendo vir a ser arrolada como testemunha. Um verdadeiro golpe de sorte, pois não sei como fariam se fosse convocada a depor."
Regina sentou-se junto a nós e meteu sua colher:
— Sorte? Como você é ingênuo, Basílio. Golpe de sorte que nada! Eles deram um fim nela, isso sim! Vai atrás, que você acha.
Ponderei:
— Já fomos, a morte foi natural... Enfim... Ninguém se preocupou em saber por quais locais a capitã andou enquanto Ema se fazia passar por ela. Marinheiros viajam muito... Mas agora já foi verificado: a Azevedo jamais esteve na estação Comandante Ferraz!
"Com relação ao Ribeiro, precisava mesmo fugir! Além de ser necessário dar ensejo ao legítimo H. Nunes de ir lá e resgatar a sobrinha (e seus pertences), como o capitão poderia manter a farsa e enfrentar a Polícia Federal?
— Que loucura! — completou Inês. — Tudo isso porque Ema resolveu mudar os planos do tio...
Prossegui:
— Verdade. Devem ter discutido entre si, via rádio, que a melhor solução era o velho ir até a EACF e o Ribeiro sumir, chamando para si toda a atenção, desviando assim o foco da falsa capitã. O motivo para a fuga foi providencial: "O bandido da tira de Peary, dando no pé com sua mercadoria".
Servi-me de um quitute:
— Voltando um pouco ao nosso 'Amundsen', Ema... Sua meta nunca foi tão somente 'pisar' o solo antártico. Com a tempestade se aproximando, ela aborta o plano 'A' e empreende sua tentativa de 'alcançar o polo sul': matar Carlos, tentando incriminar Patrícia. Perspicaz, percebe que existem situações muito favoráveis e que ainda poderá me usar como instrumento...
"E de fato: vou sendo habilmente guiado, faço tudo o que ela precisa que eu faça, de maneira a culminar com a prisão de Patrícia, sem apelação. Que inteligência e rapidez de raciocínio, meu Deus! E isso depois de uma concussão cerebral. Ribeiro também foi magistral em seu papel, devo reconhecer. Um dupla terrível.
Bebericando um gole de uísque, prossegui:
— Um crime que não foi premeditado, senão na mente atormentada de Ema! Ela e seu comparsa, a quem ela convenceu, foram valendo-se de cada oportunidade que aparecia para articularem o delito. Eu jamais vi algo assim, alguém se propor a matar e ir aproveitando tudo a seu favor, mas com a possibilidade de recuar até o último instante. Eu diria que foi uma premeditação em tempo real. Foi como escrever uma novela policial ao vivo, quase um reality show! Ela queria algo apoteótico. E teve!
"A única coisa com a qual a dupla não contava era com a minha astúcia.
Inês deu uma gargalhada:
— Suspeitei desde o princípio!
Rimos. Olhei para Regina e ela fez uma cara de quem quisesse dizer: "Já está ficando bem 'alegrinho', Dr. Basílio. É bom parar". Estava mesmo na hora de finalizar:
— Por falar em "suspeitar desde o princípio", desde o início eu estranhei a falta de atitude do verdadeiro almirante H. Nunes...
— Como assim? — perguntou Rômulo.
— Ora, ele ficou em Punta Arenas cuidando da sobrinha e não avisou que não ia embarcar no Hércules? Não havia sentido para essa ação, a menos que ele soubesse que o Ribeiro estava indo em seu lugar. Se estivesse inocente da ação pretendida por Ribeiro, naturalmente teria avisado de seu impedimento em prosseguir na viagem e o capitão Ribeiro já teria sido colocado sob suspeita tão logo se identificasse ao tenente-coronel Ernesto, no avião da FAB.
"Ele chegou a dar uma desculpa, algo como: 'Esqueci de avisar, diante do grave quadro de saúde da minha sobrinha'... Esqueceu de avisar? Um militar experiente? Pra mim não cola! Mas como Patrícia foi acusada e condenada, ninguém foi a fundo nessa questão. Não só nessa, como em muitas outras. Como nunca acreditei na culpa dela, comecei a escarafunchar. E descobri tudo.
Inês proferiu, solene:
—"Se você conhece o inimigo e conhece a si mesmo, não precisará temer o resultado da batalha".
— A Arte da Guerra? — perguntou o irmão.
— Sim — confirmou Inês.
Diante daquele desfile de erudição, eu não pude deixar por menos:
— Complementaria com uma frase de Eclesiastes: "Tudo tem o seu tempo determinado".
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