23 - Almirantado
EACF, 12 de janeiro de 2011, 19h30 (45 horas depois)...
... Às 18h00 foi solicitado à capitã Azevedo que enviasse o helicóptero à base chilena Presidente Frei. Traria à estação dois oficiais da Marinha, um deles o capitão Jonas, o chefe da EACF, bem como um delegado e dois investigadores da Polícia Federal. Chegaram às 19h30 e para minha surpresa o delegado da PF era meu conhecido:
— Paranhos? Você aqui?
— Meu bom e velho amigo Basílio! Quando soube que você estava na EACF, fiquei sem entender. Basílio de Almeida, na Antártida? Depois me explicaram. E isso já me tranquiliza, pois soube que você fez uma investigação e sei que deve ter feito um excelente trabalho. Temos muito que conversar.
Tivera realmente sorte em encontrar o Paranhos, seria a garantia de que todas as minhas ações investigativas não seriam sumariamente descartadas, caso não admitissem a minha oficiosa ingerência.
— Antes, só uma coisa... Está vendo o almirante que veio conosco... Ali — apontou-me um militar, que se aproximava da EACF.
— Sim!
— Ele quer conversar contigo.
Era um senhor de seus 85 anos, almirante reformado, 19 anos mais experiente na vida que eu. Na hierarquia da Marinha ele ocupava o posto mais alto, abaixo dele apenas o "almirante de esquadra", o "vice-almirante" e o "contra-almirante". Muito simpático e bonachão, calvo e de pouca forma atlética, estendeu-me a mão:
— Delegado Basílio de Almeida? É um prazer.
— O prazer é todo meu, almirante... — Achei estranho o nome inscrito em seu uniforme: — H. Nunes?!
— Almirante Henrique Nunes Salgado, a teu dispor!
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Confesso que fiquei aturdido e sem chão. Parecia que novamente um teto desabara sobre minha cabeça. Então, além de Patrícia Rocha, tínhamos um segundo impostor na EACF?
O almirante H. Nunes disse:
— Sim, um impostor. E onde está o desgraçado que se apoderou do meu nome?
Eu estava atordoado, como se tivesse acordado em meio a um tiroteio e não soubesse para onde correr. Ele prosseguiu, possesso:
— O filho da puta se apresentou como H. Nunes, não foi? Secretário do governo federal, da Secirm, a secretaria de Recursos do Mar. Só que o secretário dessa merda sou eu! Onde está esse farsante?
O almirante valia-se de sua condição emérita, para se utilizar de palavrões. Fazia por onde, pela condição de ancião reformado, mas, não acho que condissesse com sua patente. A capitã Azevedo, vendo que eu me encontrava abalroado, adiantou-se a mim:
— Senhor, ele fugiu. Quando o senhor nos avisou, pelo rádio, da farsa, fomos procurá-lo e ele tinha desaparecido.
De fato, desde as onze horas e trinta, quando do confinamento de Patrícia, eu não o vira mais. Após o almoço, eu estava tão cansado, que dormira umas quatro horas seguidas. Enquanto isso, o falso H. Nunes dera no pé e já devia estar longe. Mas para onde teria ido? E com qual objetivo, estivera ali, com um nome falso?
O velho estava puto de raiva:
— Desgraçado! Mas nós vamos pegá-lo. E onde está a tal de Patrícia? Quero falar com ela agora, olho no olho e perguntar por que quis matar minha sobrinha.
Realmente, eu não deveria ter levantado naquele dia. Primeiro, a bordoada do falso H. Nunes, desvendando o caso que eu teria de ter resolvido. Segundo, o próprio fato dele ser um impostor e desaparecer, enganando-me desde Punta Arenas. E agora, Patrícia Rocha tinha tentado matar a sobrinha do velho desbocado? De quem ele estava falando, de Ema Arantes? Não me restando alternativa, perguntei:
— E quem é sua sobrinha, almirante H. Nunes?
— Delegado, que raio de delegado o senhor é, que não descobre nada? Minha sobrinha é Ema Arantes Salgado!
Soubera onde havia um buraco, eu teria enfiado a cabeça nele. Pela primeira vez naqueles dias eu realmente não sabia mais o que dizer, nem o que fazer. Sentia-me o Brasil tomando de 3 a 0 da França, na final da Copa do Mundo de 1998: perdido em campo! E quando não se sabe o que dizer, para não piorar, melhor calar-se.
Paranhos, percebendo-me tonto, conduziu-me para dentro da EACF.
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Minha pressão subira a 20 x 14 e Cardoso, preocupado, meteu-me um medicamento sublingual, associado a um calmante. Dormi uma hora e quando acordei soube que o almirante, o verdadeiro, já tinha ido embora. Ele ficara muito bravo e exigira levar consigo todos os pertences de Ema, até então em poder de Patrícia.
Despertei uma vez mais com Inês ao meu lado:
— Oi, Basílio, está melhor? Mais um grande susto na gente...
— Agora estou bem, obrigado. Só uma chata dorzinha de cabeça. Sabe, é evidente que ainda não me recuperei totalmente do evento na estação inglesa, mas também tem todo o peso do cansaço e da idade, não sou mais um jovem. Sem contar a fuzilaria pesada do verdadeiro almirante...
— Velho fanfarrão! — definiu ela. — Mas por que está dizendo isso?
— Sinto-me tendo perdido a batalha...
Inês enfezou-se:
— Ah, e agora quer botar a culpa do fracasso no teto que desabou na sua cabeça?
Surpreendi-me:
— Ah, então admite que fracassei...
Ela continuou enfezada:
— Nem uma coisa nem outra! Já percebi que tens a mania da vitimização e gostas de ser acarinhado, é isso? Pois bem! É público e notório que não és mais jovem; é evidente que o teto no cocuruto te atrapalhou os pensamentos; e é claro que todos fomos pegos de surpresa com a revelação sobre o H. Nunes. Contudo, analise por outro prisma: apesar de tudo isso, quanto você não conseguiu fazer em tão pouco tempo? É quase um ato heroico, meu caro...
— Sim, é verdade. Tenho mesmo de parar de dar uma de vítima e aceitar as coisas como elas são. E seguir adiante... Mas diga-me: Ema é mesmo sobrinha do velho desbocado?
Inês anuiu com a cabeça:
— Pior que é! E está viva!!
— Viva? Sério!? Mais uma mentira de Patrícia, dizendo que Ema estava morta?
— Não sei, talvez ela tenha se enganado quando examinou o pulso.
Sobre as diligências da PF e a liberação de pessoal, fui informado que para dar conta da demanda seriam realizados três voos de helicóptero. No primeiro já tinham partido o verdadeiro H. Nunes, a capitã Azevedo, o cabo Gerson, Humberto, Ernani e mais um sargento. Meu retorno dar-se-ia apenas no segundo voo, somente na manhã seguinte, 13 de janeiro, em companhia de Inês, Patrícia, Paranhos e seus dois investigadores. Tínhamos que aguardar mais um pouco, até terminarem as diligências policiais e assim meu martírio perduraria por mais uma noite. O terceiro voo levaria Cardoso, Jonas, um soldado e o corpo de Carlos Eduardo. Permaneceriam na estação apenas cinco militares do Exército, como contingente mínimo.
Paranhos também me trouxe informações a respeito de eventos ocorridos em Punta Arenas. Ema fora salva por um rapaz que estava indo para o trabalho a pé por uma trilha na mata. Ele a encontrou junto às moitas de capim e buscou ajuda de uma blitz não muito longe dali.
No hospital confirmaram que ela não estava morta, mas com um trauma na cabeça, além de várias escoriações. Realizados exames, constatou-se um traumatismo cranioencefálico leve, uma concussão cerebral parecida com a que tive, sem lesão cerebral. Todavia, em face de ter ficado desacordada por um tempo considerável e, em se tratando de um trauma craniano, permaneceu em observação até a manhã seguinte. Foram catorze horas de internação — com entrada no dia 09, às quinze para as seis da tarde e alta no dia 10, às oito horas da manhã. Diante de um quadro estável e de franca recuperação, aliado ao fato de o hospital não possuir muitos leitos disponíveis, resolveram liberá-la aos cuidados do almirante H. Nunes, seu tio.
Perguntado sobre o que lhe ocorrera, ela disse não se lembrar e pediu que chamassem o tio, que tinha chegado a Punta Arenas naquela tarde. O velho almirante, após a alta, providenciou para que a sobrinha fosse levada para uma residência que ele possuía na cidade, comprada há pouquíssimo tempo, onde ela ainda permanecia convalescente. Aliás, o fato de ter ficado cuidando da sobrinha o fez não comparecer ao embarque para a EACF, dando a chance ao falso H. Nunes de viajar em seu lugar.
Perguntei-me, posteriormente, como não associamos o nome Henrique Nunes Salgado a Ema Arantes Salgado, mas logo percebi a resposta: o uniforme do trambiqueiro trazia como identificação apenas H. Nunes, o mesmo nome de guerra do verdadeiro almirante. Em nenhum instante ele mencionou o nome ou a família Salgado, o que não deu ensejo a nenhuma associação entre H. Nunes e Ema. Isso facilitou a vida do farsante.
Antes de Paranhos sair, informei-lhe sobre o material produzido no inquérito instaurado:
— Todo o material está de posse da capitã Azevedo.
— Ah, sim. Ela já me entregou. Qualquer dúvida, eu falo contigo. Agradeço.
Após a saída de Paranhos, Inês entregou-me 'nossa' cópia do inquérito, providenciada sigilosamente. Aproveitei a oportunidade para verificar algo, comentando:
— Nos horários estabelecidos para os eventos próximos da hora do crime, vejo que não incluímos o fato do falso H. Nunes ter saído da sala de vídeo pouco depois da saída de Carlos. Ele saiu para falar com a capitã Azevedo, lembra-se?
— Sim, eu lembro — respondeu ela. — Mas também me lembro de ter anotado uma pergunta que você fez a ele, sobre o assunto.
— De fato. Quando da feitura da lista de horários, você e Patrícia não atinaram para o tempo que ele ficou fora, sequer se lembraram do ocorrido, muito provavelmente devido ao vinho que tomaram e também devido a todo o estresse posterior, causado pelo assassinato. Mas como eu estava bem alerta, lembrei-me da saída dele, tanto que fiz a pergunta, registrada por você.
"E qual foi a pergunta: se ele havia visto alguma coisa de anormal, enquanto ausente da sala... Ele respondeu que não, que infelizmente não tinha ido até a ala dos civis... Disse: 'Fiquei conversando com a capitã, coisa de cinco minutos... Em seguida voltei para a sala de vídeo...'.
Inês entendeu o objetivo da análise:
— Está achando que ele foi à ala dos civis e matou Carlos Eduardo? Mas com apenas cinco minutos de prazo?
— Eis a questão! Não foram somente cinco minutos. Foi bem mais!
— E quanto tempo foi?
Ergui-me na maca:
— Para saber com exatidão preciso ir na sala de vídeo. Você me acompanha?
— Claro. O que tem em mente?
— Lá te explico.
Sabíamos que Carlos Eduardo havia saído da sessão que exibia a história de Shackleton às 22h20. O filme foi iniciado às 21h50 e terminou às 22h50. Portanto, Carlos saiu na metade, faltando meia hora para o término. Alguns minutos depois o falso H. Nunes saiu para falar com a capitã Azevedo e voltou justamente na hora em que Shackleton enfrenta a nevasca, visando buscar ajuda para salvar seus companheiros. Eu me lembrava disso, uma vez que associei a própria nevasca que enfrentávamos com a do documentário. Colocado o DVD exatamente nesse ponto, verificamos o tempo de filme faltante: dez minutos!
Aludi:
— Se a saída do almirante coincide praticamente com a saída de Carlos e faltavam 30 minutos de filme, mas quando ele volta faltam só dez...
— Ele ficou fora vinte minutos! — declarou Inês, enfática. — Miserável! Mas por que somente agora você se deu conta disso?
— Ele parecia alguém acima de qualquer suspeita, por isso não dei importância. E está claro: afirmou serem "cinco minutos" para não chamar a atenção para si; mas agora sabemos: ele era um farsante!, ficou vinte minutos fora da sala sem álibi fazendo o quê? Deve ter ido na ala dos civis e matado Carlos!
— Mas qual o motivo?
— Pois é! Como contra-almirante H. Nunes, nenhum! Mas como um larápio que aqui estava para resgatar a tira de Peary, que Carlos provavelmente interceptou, atravessando seu negócio, todos. Os dois devem ter brigado e ele matou Carlos, mas como ficou retido pela nevasca, escalou-me para investigar o caso, na esperança de que eu destruísse a cena do crime... E deve ter gostado tanto do papel de contra-almirante que adiou sua fuga ao máximo; ou talvez demorou a fugir para ter a certeza de que eu incriminaria alguém em seu lugar. Apressou-me o tempo todo e queria a qualquer custo um culpado. Conseguiu! E fugiu na hora limite, isso quando a polícia e o verdadeiro H. Nunes já se avizinhavam da estação. Quando a capitã Azevedo foi informada pelo rádio de que ele era um impostor, o miserável já havia desaparecido há bom tempo. Gosta do perigo, o desgraçado e possui uma frieza inacreditável.
"Ele parecia bem informado a respeito do H. Nunes, ao ponto de até mencionar a residência do almirante em Punta Arenas.
— Verdade! — recordou-se Inês. — Ele falou mesmo dessa casa e até fingiu até estar bravo com os boatos. Mas uma coisa me intriga: com qual finalidade ele te trouxe para a EACF, se você seria um perigo para os planos dele?
— Essa é uma pergunta para a qual eu ainda não tenho resposta, o que mostra que nem tudo ainda foi explicado na história...
"Mas uma coisa é certa: para se safar o miserável precisava de alguém colocado na cena do crime e com contundência. Conseguiu! E ainda plantou aquela prova nas coisas da Patrícia, com o cuidado de chamar uma penca de testemunhas. Fechou com chave de ouro! A conclusão do inquérito pela PF resultará nisso: Patrícia culpada e presa! E a fuga dele será colocada apenas na conta de ter vindo reaver a tira de Peary (o tal 'bandido que veio de fora'). No final das contas o bandido esteve aqui dentro o tempo todo.
"Olha, estou convicto de que ele matou Carlos Eduardo, mas convicção não é certeza. Não tenho como provar. E pior, fui impotente para salvar a escritora do destino armado contra ela. Toda essa história foi mesmo um crime em dois atos, como sugeria o livro dela. O primeiro em Punta Arenas e o segundo aqui, mas espero que as cortinas ainda não tenham sido cerradas...
Inês perguntou, de maneira reticente:
— Mas o que te leva a crer que Patrícia é realmente inocente? Diante das evidências ela é a culpada, apesar da fuga dele...
Sorri:
— Está vendo como é difícil acreditar na inocência dela e na culpa dele? É o que ele queria. Contudo, lembra-se dos caminhos investigativos? Dedução, indução e intuição?
"Intuição! É isso que me leva a crer na inocência dela. Intuição!, mas não é algo tão abstrato assim, ainda que subjetivo. Análise corporal, observação da firmeza nas declarações, análise do movimento dos olhos... Depois que baixou a guarda Patrícia falou toda a verdade, eu sei! Mas ninguém acreditará nisso. Seria necessário ter vivenciado tudo o que vivenciamos aqui para saber. Olhando de fora ela não tem mesmo saída!
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