17 - Rumo Certo?
— No dia em que vocês chegaram... Ontem de manhã... Antes da reunião no auditório... Ernani me disse que conhecia Carlos Eduardo de vista. O viu uma vez, em São Paulo. Mas Carlos não o conhecia, até ontem. Ernani falou dele com muita raiva. Uma raiva de alguém que guarda rancor e pode matar por causa disso.
— Diferente de você, que só mataria num momento de raiva?
— Delegado, eu nunca mataria ninguém!
— Eu não pago pra ver, mas fale mais sobre o Ernani. O que aconteceu entre ele e Carlos?
— Não foi exatamente entre os dois. Foi entre Carlos e o irmão de Ernani, o Roberto. Ernani disse que a vaga para vir nessa expedição era do Roberto e que Carlos jogou sujo para tirar a vez dele e vir no seu lugar. Carlos descobriu que o Roberto tinha sérios problemas de saúde, um câncer, que poderia comprometer o trabalho dele aqui na Antártida, caso viesse a adoecer. Assim, revelou o fato aos organizadores, que o desqualificaram. Carlos era o próximo da lista — e teve uma ajudinha da Dra. Ema, claro. Acabou por pegar a vaga.
Aludi:
— E você acha que isso daria a Ernani um motivo tão forte assim?
Ele sentenciou:
— Daria, sim, mas pelo que aconteceu depois. O irmão de Ernani praticamente morreu de desgosto, pois o sonho de vir para cá foi por água abaixo. Ernani tem certeza que o irmão se entregou à morte, não lutando contra o câncer, por causa do desgosto que passou.
— Entendo. Obrigado por nos ajudar. Bem, é só isso. Coloque seus dados pessoais nesta folha e considere-se dispensado.
Փ
Vinte horas e trinta minutos após o crime, ainda havia muitas considerações a serem feitas. Devido à natural ansiedade do almirante, que, no fundo, era quem ditava o ritmo da investigação, tudo se dera de forma ultra-acelerada. Parecia ser uma questão de honra, para ele, encontrar o culpado antes da Polícia Federal chegar.
— Basílio, tu é fogo! Imagino o que não sofreram os interrogados na tua mão. Tu botou o bagual contra a parede, sem dó.
— Ele é mesmo um cavalo selvagem. Difícil de domar.
Sempre acelerando, o almirante prosseguiu:
— A tua ideia sobre ele é muito interessante...
— Sem dúvida, mas, qualquer caminho que sigo, sempre esbarro em algum problema. Por exemplo, ele teve muito tempo para esfriar a cabeça. Não o vejo agindo com meticulosa frieza, na consecução de um crime. E sua indignação, diante da hipótese de ser ele o assassino, pareceu-me bem genuína.
"Ter fugido, de fato, é muito estranho e sugestivo. Talvez tenha feito o que sugeri, mas, além de pouco provável, teria que contar com muita sorte, pegando todo o caminho livre nessa possível aventura.
O almirante considerou:
— Mas o caminho nem seria tão longo, seria? O alçapão do quarto vago está muito próximo do alçapão do quarto dele. Utilizando-se dos alçapões, passou de um quarto a outro. Já no quarto vazio, ficou ali, escondido, espreitando uma oportunidade, até entrar em ação. Depois, fugiu pela porta do corredor... O tal "vulto" da Dra. Ema...
— Possível. Mas há vários entraves...
— Como sempre — resmungou H. Nunes. — Quais?
— Muitos: 1) Saiu sem deixar pegadas? 2) Como sabia do osso-punhal? 3) Como sabia que o senhor estava alojado na ala dos civis? 4) Espreitou uma oportunidade e mesmo assim entrou no quarto errado? Isso, só para listar alguns. Posso encontrar mais.
Inês sugeriu:
— Sobre o osso, não poderia ter saído pelo alçapão, lá pelas 17h40 e visto a cena na praia?
A ideia não me convenceu:
— Poderia, mas acho muito improvável. Teríamos que supor que Humberto ficou o dia todo saindo e entrando de alçapões. Com aquele corpanzil? Não acredito.
O almirante insistiu:
— Esqueçamos o vulto da Dra. Ema. Tendo ele fugido de seu próprio quarto, às 22h00, pode ter entrado pelo alçapão do quarto vago, antes do Carlos chegar à ala dos civis. Ao procurar saber qual era o meu alojamento, encontrou o osso. Voltou ao quarto vazio e, espreitando o corredor, viu quando Carlos passou, já trajando meu jaquetão. Aí, pensando que fosse eu, o matou. Saiu, não pela porta do corredor, mas pelo alçapão do alojamento vazio, utilizando-se dos mesmos expedientes já mencionados, com a mesa e a corda. Demoramos a ir examinar o quarto dele e, muito mais ainda, o quarto desocupado. Ele teve bastante tempo para ajeitar tudo, não só no seu dormitório, quanto no vazio.
Meneei a cabeça, com desconfiança:
— Uma trabalheira e tanto, há de convir. Nessa teoria, porém, Ema ainda continuaria, mentindo sem um motivo. Sabe, almirante, quanto mais tentarmos encaixar alguém a fórceps, na cena do crime, mais surgirão obstáculos, em especial quando da acareação com a narrativa de Ema. Precisamos ter calma. Lembrem-se do método indutivo: os fatos é que devem nos levar à teoria, não o contrário.
Suspirei profundamente. Inquéritos são bons, mas cansam. Tomei um gole d'água e prossegui:
— Eu vou ajudá-los a organizarem as ideias. Vejamos... Pelas características peculiares da arma do crime e acerca de sua obtenção pelo criminoso, parecem-me claras três coisas. O assassino: 1) Sabia da existência do osso; 2) Sabia onde encontrá-lo; 3) Tomou posse dele com facilidade.
"Na questão da utilização do tempo, entre 22h25 e 23h25, o assassino teria que: 1) Ter condições favoráveis para agir; 2) Ter pleno domínio territorial; 3) Estar dentro da EACF.
"Por fim, ter uma razão forte para escolher a EACF como palco de seu delito.
O almirante colocou a mão sobre os lábios, pensativo. Sentei-me e alisei meu bigode por alguns momentos:
— Diante disso, temos analisado várias opções. Ema, Humberto, um possível bandido, vindo de fora para resgatar os apontamentos de Peary... Vamos, porém, olhar um pouco mais para o Ernani...
"Ernani estava dentro da estação, no quarto defronte ao de Humberto. Poderia ter em mente matar Carlos Eduardo, tendo um bom motivo para isso, afinal, o ódio pode ter se reacendido quando viu o biólogo novamente. Talvez esse ódio nunca tenha se apagado. Poderia até estar obcecado por essa ideia. Quando viu o desafeto desembarcar aqui, pode ter pensado em dar um fim nele. Por ter relatado seu passado a Humberto, significa mesmo que não esqueceu o que Carlos fez ao irmão. Esteve na praia. Sabia do osso. Pode ter visto Ema guardá-lo no bolso e trazê-lo para dentro da EACF. Apoderou-se dele mais tarde, quando saiu da sala de vídeo. Teve todo o caminho livre, pois foi o primeiro a sair, cinquenta minutos antes de Carlos, às 21h30. E, excetuando-se Humberto, confinado, esteve sozinho, na ala dos civis, por um bom tempo, com toda a facilidade do mundo.
"Mais tarde, na espreita de uma oportunidade, talvez tenha visto quando Carlos furtou o jaquetão. Poderia estar bisbilhotando, escondido. Teve até tempo para descobrir (e utilizar), o quarto vago. Talvez também tenha visto Ema indo ao toalete e, tendo notado o caminho livre, foi até o quarto, viu a porta aberta e Carlos de costas para o corredor... Entrou e desferiu o golpe fatal. Jogou o lenço sob a cama e depois voltou correndo para o seu próprio quarto, esperando Ema dar o alarme.
"Teve oportunidade, teve motivos, já poderia ter em seu poder a arma do crime... Até a questão da frase sobre o jaquetão seria justificável: "E o que faz com a jaqueta do almirante?", afinal, sabia realmente que era uma peça do uniforme do almirante, pois teria visto Carlos surrupiá-la.
Os olhos do almirante brilharam:
— Basílio! Agora entendo o que você quer dizer sobre "os fatos levarem à teoria e não o contrário". É uma questão de fluidez, estou certo? Tudo agora flui naturalmente, sem esforço.
Assenti:
— Exatamente. Nessa teoria, os fatos fluem harmoniosamente. Ernani é, sem dúvida, uma via melhor que Humberto, para a resolução desse caso.
— Ah, meu caro, descobriste tudo. Tudo se encaixa. Para mim ficou tudo claro agora. Ernani matou Carlos.
Prossegui:
— E ainda há um detalhe: Ema, por exemplo, poderia muito bem esperar outra oportunidade, se quisesse dar cabo do marido. Não iria fazê-lo aqui, perto de um delegado e de um punhado de militares. Ernani, entretanto, teria outra chance, com a possibilidade, inclusive, de incriminar Ema? Assim, mesmo correndo risco, sua chance era aqui, não em outro lugar. Foi friamente calculado, mas não sem uma dose de muito ódio.
H. Nunes estava radiante:
— Magnífico! Basílio, tu és um gênio! Mataste a charada! Barbaridade, tchê! É perfeito! Agora tudo se encaixa. Não me venha dizer que não!
— Apenas uma coisa não. Aliás, duas!
— Ah, não! Não me venha de novo com isso! E o que é?
— Magro e fraco, como é, teria conseguido conter o atlético Carlos? Teria conseguido tampar a boca do biólogo, por exemplo, para que ele não gritasse, antes de desferir o golpe fatal?
— Ora, talvez Carlos não tenha gritado.
— Acho muito difícil. De qualquer maneira, essa é a teoria que considero a mais plausível, por enquanto, até porque, Ernani poderia jogar o crime pra cima de Ema, quando contasse sobre a cena da praia, tendo em mente que as digitais dela poderiam ser encontradas no osso. Apenas descuidou-se quanto à posição do punhal, quando desferiu o golpe fatal. Na verdade, talvez nem pudesse lembrar em que posição Ema o segurara.
Inês ouvia atentamente tudo o que dizíamos, aliás, como sempre. Perguntei-lhe:
— No que está pensando?
— Que o Ernani está bem encrencado. Mas uma coisa é matar um homem e até acredito, ele teria uma boa razão para isso. Outra é imputar um crime a uma inocente. Ele não me parece uma pessoa capaz disso.
Ponderei:
— Se o Humberto estiver certo, na cabeça de Ernani, Ema também teve culpa, pois teria agido nos bastidores a favor de Carlos. Nesse caso, Ernani talvez não esteja nem aí, se ela vier a ser acusada.
Após minhas considerações finais, o almirante decidiu-se:
— Deixemos os argumentos para o advogado de defesa. Vou mandar confiná-lo até que a Polícia Federal chegue. Foi ele!
Saiu apressadamente, ao que Inês disse:
— Basílio, você disse que duas coisas não se encaixavam. Uma, é o fato de Ernani ser magrelo e fracote. A segunda, acredito: a falta de justificativa para as mentiras de Ema.
— Quer incluir uma terceira?
— O cantil, onde entra?
— Pois é!
Փ
Ernani esperneou, mas, diferentemente de Humberto, foi muito mais fácil carregá-lo para o confinamento. Sobre pressão, acabou por confirmar a história a respeito do irmão:
— Eu não matei ninguém. Não nego, tinha vontade disso... Aquele miserável... Foi difícil conviver com ele, ainda que por poucas horas... Fingir que não estava sentindo nada, fazer sala e até servir de guia turístico. Desgraçado! Matou meu irmão de desgosto. Sinceramente? Estava torcendo para ele e a mulher irem logo para o navio, mas aí veio a tempestade... Pra mim, ele mereceu o fim que teve, não vou dizer que fiquei com pena... Nem dele, nem dela... Mas, eu não o matei! Jamais faria isso!
Ernani já estava quase chorando:
— Lugar desgraçado! Nunca mais quero pôr os pés aqui!
— Cale a boca! — exigiu a capitã Azevedo. — Para onde você vai, não vai mesmo precisar voltar.
Ernani esbugalhou os olhos. Suando frio, encarou a capitã:
— E para onde vou?
— Para a cadeia!
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O delegado não está concordando muito com o rumo da investigação. Quer que todas as perguntas sejam respondidas, sem entraves. Será, portanto, que a prisão do biólogo medroso é mesmo o caminho mais certo?
*Registe seu voto e comentário. Grato.
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