10 - Hora do Embate
Ema sentou-se à minha frente. Sentia-me mais uma vez no departamento de investigações, como nos bons tempos. Inês já estava a postos. O almirante, ansioso, sentou-se à ponta da mesa. Comecei:
— Qual seu nome, profissão e idade?
— Ema Arantes Salgado, bióloga, 40 anos.
— Residência?
— São Paulo, capital.
— Como veio para a Antártida?
— O senhor não se lembra?
— Pediria que se limitasse apenas a responder às perguntas, sem fazer juízo de valor. Por favor, responda.
— Vim para cá no avião da FAB, o Hércules, ontem de manhã. Partimos de Punta Arenas às oito e meia.
— Veio com seu marido?
— Claro! E com o senhor e seu assistente.
— Peço que respeite a autoridade presente.
Olhei para o almirante, que apenas se limitou a balançar a cabeça, com ar grave. Continuei:
— E não se exalte. Estamos apenas tomando seu depoimento.
— Tá certo! Pode continuar.
— Você chegou ontem, conosco, no avião da FAB, procedente de Punta Arenas. Gostaria que relatasse seus passos antes do embarque.
— Mas o que isso tem a ver com o crime?
— Crime? Alguém falou em crime, nesta sala?
— Ora, delegado...
— Por favor, responda à minha pergunta.
— Posso me recusar a responder, sabia?
Busquei o ensejo da colocação dela, para esclarecer algo aos presentes:
— Ema, estarei apenas tomando seu depoimento, pois você está diretamente envolvida na cena do crime, mas não se trata de um interrogatório. Você não é ré, vamos deixar claro. Não está sendo acusada de nada, pelo contrário, presume-se a sua inocência. Dentro de um inquérito policial, é tão somente uma fase de apuração preliminar. Mas, como haverá questionamentos delicados, você pode sim se recusar a responder, se quiser. Todavia, fique tranquila, caso opte por silenciar, não vou entender isso como "o direito a silêncio que é garantido a um investigado interrogado". Isso será devido apenas às circunstâncias peculiares deste caso.
Ela mostrou-se solícita, entendendo minha explicação e saindo da defensiva:
— Não, não! Eu faço questão de responder a tudo! Não devo nada. Não tenho nada a temer.
— Ok. Boa decisão. Retomando: quais foram os seus passos antes do embarque em Punta Arenas?
— Bem, eu embarquei no Professor Besnard, o navio da USP, há pouco mais de um mês. Foram duas semanas de viagem pelo mar entre o porto de Santos e o mar de Drake, com passagem pela Lagoa dos Patos, no Rio Grande do Sul. A viagem foi mais de testes, uma primeira etapa, por causa da reforma do navio e da instalação de novos equipamentos. Feito os testes, o Besnard aportou em Punta Arenas. Precisava repor os suprimentos e reabastecer o combustível.
"Como havia a previsão de que eu tirasse dez dias de férias, desembarquei na cidade e o Besnard finalmente atravessou o mar de Drake, em direção à Antártida. Logo deverá estar atracando por aqui. A minha programação, após as férias, previa o embarque no avião Hércules, na companhia do meu marido, que também era biólogo.
"A programação dele foi diferente da minha. Ele saiu de São Paulo vinte e um dias depois de mim e foi para Punta Arenas, no Hércules — partindo do Rio de Janeiro, passando por Pelotas, indo até a Esantar, no município de Rio Grande, Lagoa dos Patos. Chegou a Punta Arenas um dia antes do nosso embarque para a EACF, o que coincidiu com meu último dia de férias. Isso foi anteontem, dia nove de janeiro.
— Foi você e seu marido quem eu vi, no dia nove à noite, no hotel Magallanes, em Punta Arenas?
— Sem dúvida! O senhor estava sentado próximo à lareira, conversando com o almirante.
— Seu marido chegou a Punta Arenas no dia nove, em que horário?
— Por volta de 10h30.
Havia, portanto, chegado a Punta Arenas, uma hora depois de mim.
— E se hospedou no hotel Magallanes?
— Não. Ele foi para uma pousada em que eu já estava hospedada, desde o início das férias. O nome da pousada é Torres del Paine.
— E o que vocês faziam no hotel Magallanes, naquela noite?
— Tínhamos fechado a conta no Torres del Paine e resolvemos passar a noite no hotel Magallanes, até o embarque da manhã seguinte.
— Ema, agora relate seus passos após a chegada aqui na estação.
De forma resumida, ela declarou o que todos já sabíamos. Chegou conosco por volta de 12h00, alojou-se e depois foi para o auditório, para ouvir a explanação do almirante, reunião que se deu às 13h00. Às 13h30 foi almoçar. Ficou na enfermaria das 14h00 às 16h30, por conta do problema renal. Das 16h45 até as 17h30, participou de uma conversa conosco, na sala de estar, quando falamos sobre Robert Peary. Em seguida, saiu da estação, com Ernani e Carlos. Esteve na praia, apanhou o osso e depois foi ver o esqueleto de baleia montado por Cousteau. Na sequência, dirigiu-se ao Morro da Cruz, para ver as cruzes dos ingleses mortos. Por fim, esteve na estação inglesa abandonada e adentrou a EACF, de volta, às 18h50. Foi quando a tempestade efetivamente começou.
— Na estação inglesa, aconteceu algo de estranho? Parece que Ernani andou dizendo que havia alguém escondido por lá...
— Pensamos ter ouvido passos na sala ao lado da biblioteca, onde estávamos. Ouvimos um barulho de tábua rangendo ou coisa assim. A porta também bateu. Deve ter sido o vento, pois não vimos ninguém. E a contração térmica.
— Ontem, quando conversávamos na sala de vídeo, após vocês terem voltado, quando Inês perguntou se havia ocorrido algo de estranho na estação inglesa, observei que você pretendeu falar algo e, cruzando o olhar do seu marido, ele parece ter insinuado que você não dissesse nada. Estou certo, nesta minha impressão?
— Muito sagaz de sua parte, delegado. Sim, é verdade, houve algo, sim.
— Pode relatar o que é?
— Não é que eu pretendesse falar, eu quase falei sem querer. Daí o gesto dele, me alertando para tomar cuidado, mas agora que ele está morto, não vejo mais razão para esconder. Talvez até explique sua morte, quem sabe.
Entreolhamo-nos, surpresos. Um fato novo? Fiz um sinal para que ela prosseguisse. Ela respirou:
— Carlos tinha um segredo, que só me revelou ontem, na estação inglesa. Ele foi lá pegar uma encomenda. Pegou algo que estava dentro de um livro velho, o livro de Agatha Christie, aquele que falamos ontem... E no Final a Morte... Dentro desse livro, que estava na estante da biblioteca, havia uma encomenda, que ele retirou do livro e escondeu no casaco.
— Encomenda?
— Sim. Os famosos apontamentos de Peary, roubados, conforme Inês comentou ter ciência.
Novamente nos entreolhamos, estupefatos. Estava curioso:
— E você viu os tais apontamentos?
— A tira de papel? Vi! É o mesmo papel antigo, da foto que há no livro da Inês.
— Tem certeza?
— Absoluta! Mas, sinceramente, delegado, até nossa ida na estação, eu desconhecia por completo esse assunto. Depois que retornamos para a EACF, Carlos me disse que ia render uma boa grana, mas também não me contou mais nada. Disse pra mim: "Quanto menos você souber, melhor". Ele não disse, portanto, quem o contratou e quanto iria receber por isso, embora eu tenha perguntado.
— Essa "grana boa", seriam cinquenta mil dólares?
Ela arregalou os olhos:
— Nossa! Tudo isso? Mas como sabe?
— Está anotado na agenda dele. Ele chegou a dizer por que os apontamentos estavam na estação inglesa?
— Não, não disse. Pelo que entendi, tinha de pegar eles lá. Acho que depois ia repassar a alguém por... Cinquenta mil dólares? Uau! Bem, depois dessa conversa sobre os apontamentos de Peary, que se deu no nosso quarto, fomos jantar. E depois fomos ver os filmes. O restante o senhor já sabe.
Solicitei a Inês que escrevesse outro aparte, referente aos horários, que eram muito importantes, das 17h30 em diante. Fizemos os quatro, em conjunto, cada um se lembrando de um detalhe, a seguinte lista:
HORÁRIOS:
17:35: Ema, Ernani e Carlos saem da EACF.
17:40: Cena na praia com o osso.
18:10: Os três adentram a Estação Inglesa.
18:50: Os três, de volta, adentram a EACF.
19:50: Jantar.
20:30: Início do primeiro filme.
21:30: Término do primeiro filme. Ernani e militares vão dormir. Permanecem na sala Ema, H. Nunes, Inês, Basílio e Carlos Eduardo.
21:50: Início do segundo filme.
22:20: Carlos vai dormir.
22:25: Limite mínimo – início da faixa de horário do óbito.
22:50: Término do segundo filme. Permanecem na sala de vídeo Ema, H. Nunes, Inês e Basílio.
23:00: Nos recolhemos aos nossos quartos.
23:15: Ema vai ao toalete.
23:25: Limite máximo – término da faixa de horário do óbito.
23:30: Ema vê um vulto saindo para a área externa da estação, pela porta do corredor e encontra o marido morto. Grita. Basílio a socorre e verifica os sinais vitais da vítima.
Feita a lista, prossegui:
— Você disse que Carlos pegou os apontamentos dentro do livro, lá na estação inglesa e os colocou no bolso do casaco. Naturalmente, os trouxe para a estação. Onde estão?
Ela estranhou a pergunta:
— Não estão com o senhor?
— Não, não estão.
— Não? Mas ele colocou a tirinha de papel dentro da agenda. Ela estava dentro de uma embalagem plástica, com fecho de pressão.
Informei-a:
— Não encontramos a tira no alojamento de vocês.
— Não?
— Não.
Mostrei-lhe a agenda e ela foi assertiva:
— Sim, é a agenda dele.
Abri a agenda para que ela a olhasse por dentro, na página do dia nove de janeiro. Aproveitei e mostrei as anotações sobre o código e o valor de cinquenta mil dólares.
— Sabe algo sobre este código, "EI-AC-1-1-10de"?
— Não. Puxa, cinquenta mil?
Enquanto ela demostrava admiração pelo valor, observei-a bem. Pareceu-me genuína a reação dela, ou seja, deu-me a impressão de que realmente não sabia daquele detalhe. Prossegui, noutra linha, mas ainda dentro do assunto:
— E por que disse que a 'encomenda' dos apontamentos, podem explicar a morte de Carlos?
— Ora, sei lá. Apenas me veio à cabeça que ele poderia estar envolvido com alguém perigoso, pois disse que ia ganhar uma boa grana. Inês falou de um colecionador, não?
Voltei-me para meus companheiros:
— O que acham, existe alguma possibilidade do tal papel que Carlos pegou na estação inglesa, serem os apontamentos furtados de Peary?
O almirante não acreditava. Inês estava na dúvida, mas admitiu a possibilidade:
— Parece que Ema sabe o que viu.
Ela assentiu com firmeza:
— Sei, sim. Tenho certeza que se não era a própria tira de papel do Peary, era uma cópia muito bem feita. Claro que só tenho como referência a foto do livro. De qualquer jeito, parece que o fato de Carlos ter dito valer uma grana preta, indica que era mesmo a tira roubada.
— O problema, Ema, é que ninguém testemunhou isso, além de você.
Ela lançou-me um olhar fulminante:
— Delegado, está me chamando de mentirosa?
— Não foi o que eu disse. Não coloque palavras na minha boca. Mas talvez, sim, você esteja mentindo sobre um ponto, nessa questão da encomenda...
Ela ficou curiosa, ao mesmo tempo, furiosa:
— Diga-me!
— Antes mesmo de vocês saírem da EACF, para o passeio externo, você já sabia da encomenda, não sabia?
— Não sabia, delegado. Soube lá na estação inglesa, como lhe disse.
— Bem, o momento exato em que você ficou sabendo, talvez nem venha tanto ao caso, mas, em nossa reunião, na sala de estar, antes de vocês saírem, tenho certeza: Carlos, com o livro de Inês nas mãos, olhou para você e fez um gesto de "bico calado". Não foi?
— É o senhor quem está dizendo. Tem testemunhas disso?
Dirigi-me para meus assistentes, que disseram não ter visto nada, ao que ela completou:
— Acho melhor finalizarmos logo isso, o que acha?
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Patrícia tenta a todo custo sustentar sua farsa, mas, até quando? Dura na queda, a danada! E onde estarão, agora, os apontamentos de Peary? Patrícia estará dizendo a verdade, ao mostrar desconhecimento de seu paradeiro? Meio difícil, não é? A pessoa é uma mentirosa contumaz!
*Registe seu voto e comentário. Grato.
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