I
A felicidade de Henrique era tamanha, que cada mísero acontecimento fora deliciado por ele. Ajudar sua vizinha, dona Odete, com as mudanças, ter que ir até os correios e escrever as matérias para o jornal que trabalhava foram atividades prazerosas e não desgastantes, como de costume. O motivo disso? Bem, ele descobrira que Clara, sua esposa, esperava um filho!
Com o sol já se agonizando no horizonte e com um temporal se formando, ele caminhava pelas ruas estreitas até a casa de sua mãe para contar-lhe a grande novidade. Tinha os passos rápidos, um sorriso no rosto e duas rosas nas mãos, um presente pelos dias que não pudera a visitar.
— Quem é vivo sempre aparece, hein, seu Henrique! — Amadeu, o vizinho de sua mãe, que estava junto da mulher sentado na calçada, exclamou e acenou.
— É verdade, seu Amadeu. Fazia tempos que eu não vinha visitar a minha véia! — Também acenou, dando um sorriso.
Parou em frente da casa e respirou fundo, tentando conter a felicidade para causar uma certa surpresa em sua família. Então, abriu o portão, que rangeu e anunciou sua chegada. Jonas, seu irmão menor, correu até a janela e viu quem era, saindo gritando, feliz, à procura da mãe.
Dona Madalena apareceu, um pouco depois, na porta de sua casa, recebendo o filho com um abraço caloroso e um beijo na testa.
— Quanto tempo que não te vejo, Henrique. — Apalpou-lhe os braços. — Nossa, é impressão minha ou você engordou?
— Não engordei, não, mãe, é impressão sua. — Riu. — Posso entrar?
Ela abriu passagem e se encaminhou até a sala, informando o filho sobre as principais novidades da vizinhança e as peripécias de Jonas na escola. Henrique aguardava uma brecha para dizer o que queria.
— Você acredita que o seu Amadeu tava traindo a Dona Cida com uma outra? O velho é um pobretão e tava gastando o pouco que tinha com uma dessas mulheres da vida por aí… — soltou, com desprezo na voz.
— Sério, mãe? Eu acabei de encontrar ele ali fora, com a Dona Cida. A senhora tem certeza?
— Tenho, filho, claro que tenho. Quem me contou foi a Francisca, ela é bem amiga da Dona Cida!
Um silêncio pairou sobre a sala, ao fim do assunto. Henrique bebeu o resto do café que havia sido servido e percebeu o momento perfeito para o anúncio.
— Mãe, a senhora lembra que tinha me dito que se um dia a Clara ficasse grávida, era pra você ser a primeira a saber? Clara anunciou a mim essa manhã. Tá esperando uma criança!
Com o fim da frase, os lábios da mãe tremeram, as pernas falharam e um arrepio passara pelo seu corpo. Levantou-se, em um salto, e saiu em direção à escada, que levava até o porão. Pisava com força, enquanto rezava um Pai Nosso e uma Ave Maria.
— Mãe? Por que essa reação? O que tá acontecendo com a senhora? — Henrique, em uma disparada, seguiu os passos de dona Madalena.
— Por que não me contou antes? Devia ter passado aqui de manhã, oras! — a mãe berrou, ao fim da escada, procurando o interruptor da lâmpada do porão.
— Eu achei que o urgente que a senhora me disse não era tão urgente assim. Você não tá feliz com o anúncio? Ainda tem uma implicância com a coitada da Clara?
— Cala a boca! Me deixa ver uma coisa — a mulher ordenou, puxando algumas cadeiras que tapavam a porta de um guarda-louça velho.
O guarda-louça era feito de uma madeira escura e possuía apenas uma porta, que era trancada por um grandioso cadeado de prata, com um desenho, uma inscrição em latim e o nome "Asmodeus". A senhora parecia evitar abrir o cadeado, porque tentava, ao máximo, enxergar o que havia lá dentro pelo vidro encardido.
Estressada e temerosa por ter que abrir o cadeado, bufou. Colocou-o em mãos, apertou-o e disse:
— Aperio.
Um som de algo sendo quebrado foi ouvido e, imediatamente, a mulher puxou a porta e constatou a terrível verdade: a urna havia desaparecido. As mãos tremeram e ela foi obrigada a segurar no filho, para não ir ao chão.
— Você precisa ir agora para casa, Henrique. Clara corre um tremendo de um perigo. — Deu uma pausa, recuperando o ar que lhe faltava depois da descoberta. — O demônio está solto, meu filho. A maldição foi perpetuada novamente!
— Demônio? Que demônio? — Coçou a cabeça, desconfiando da saúde da mãe. — A senhora está bem, mãe? Não mexe nesse guarda-louça desde quando Jonas nasceu, por que veio mexer nele justo hoje? — Henrique a pôs de pé.
A velha respirou, tentando conter a falta de ar, e limpou o suor frio que escorria por seu buço.
— Nossa família era dona de fazenda, você sabe, não é, meu filho? — Henrique concordou com a cabeça. — Há muitos anos, seu bisavô se envolveu com uma escrava da casa, que acabou engravidando. Ele tentou de tudo para fazer a mulher perder o filho. Bateu nela, deixou-a sem comer, deu-a os trabalhos mais pesados… Enfim, maltratou a coitada. Só que ela foi perseverante e, por fim, deu à luz.
"Era uma menina linda." Dona Madalena foi atrás do guarda louça e voltou com um pedaço de pano, também encardido. "Cheia de saúde, que alegrou a vida da escrava, mas desagradou, e muito, seu bisavô e sua bisavó. Para dar um jeito na criança, ele arquitetou um plano: enquanto a mulher trabalhava, ele pegaria a pobre bebê e a enterraria viva, no meio do canavial. E assim o fez. No dia seguinte, a menina estava morta."
"Com a chegada da escrava no casarão, toda animada para cuidar da filha, ela teve uma surpresa: foi anunciada que a criança tinha morrido. Desesperada, pediu onde e quando o enterro seria, e clamou para que deixassem ver o corpo de sua filha. Mas ninguém atendeu às súplicas. Ela começara a entender tudo…"
"Com ódio, a mulher foi até o quarto de sua bisavó e contou tudo o que havia acontecido. Sua bisavó, por já saber de toda a história, denunciou-a ao marido, que pegou a escrava e deu-lhe chicotadas por mais de três horas. Não satisfeito, e também com ódio, caçoou da mulher e jogou esse pano, que tá na minha mão e que envolvia a bebê, na cara dela, contando tudo que havia feito e o porquê."
"Consumida pelo desgosto, a escrava pediu, durante sua última noite, que um demônio sanasse sua sede de vingança e atormentasse as gerações de nossa família. E assim se fez, todo o filho que nasce é recepcionado pelo demônio. Algumas vezes, ele tenta negociar a vida da criança, outras apenas mata de uma vez..."
Incrédulo, Henrique colocou a mão na boca, mordendo-a. Logo, saiu do porão da casa, sem se despedir da mãe e do irmão, rumando ao encontro de Clara.
Não sabia se o que a mãe contara era verdade ou não, mas tinha que checar, não podia perder a mulher que amava e o filho que nem havia nascido.
O tempo sobre a cidade tinha piorado e alguns raios já podiam ser ouvidos. Assim que abriu o portão, para refazer o seu caminho, topou com Amadeu, que estava sem a mulher e com um sorriso no rosto.
— Eu escutei a grande novidade, Henrique. Parabéns a você e sua mulher, meu caro. É um grande passo pra um casal ter um filho. Eu me lembro como se fosse hoje, Cida me anunciando a gravidez de Maria. Foi uma felicidade sem tamanho! — O velho lhe deu um abraço.
— Nossa, sim, é um grande passo, mesmo — soltou, apressado. — Seu Amadeu, me perdoa, mas eu preciso ir! — Saiu do abraço e bateu nas costas do velho.
— Ir? Mas acabou de chegar! Tem certeza que não quer entrar um pouco para tomarmos um cafezinho e botarmos o papo em dia? — Um outro sorriso, dessa vez maior que o anterior, surgiu nos lábios de Amadeu.
Henrique estranhou toda a situação. Nunca fora próximo do homem e, de repente, ele estava o convidando para entrar em sua casa e tomar um café, com um sorriso. Tentou se lembrar da última vez que vira o velho sorrir…
— Não, senhor, não quero café, acabei de tomar uma xícara aqui na minha mãe. Obrigado! — Se virou para ir embora.
— Cuidado com essa má educação, Henrique, pode ser que alguém queira machucar seu filho, se o seu desprezo acontecer com as pessoas erradas — o velho disse, antes de se virar e se encaminhar para casa, assobiando.
Henrique tentou chamá-lo e questioná-lo sobre a sua última fala, mas ele parecia em uma espécie de transe, porque nenhuma frase o fazia se virar ou retroceder alguns passos. Então, deixou pra lá e se guiou pelas ruas da cidade prestes a sofrer com uma tempestade.
Por duas ruas, nada de esquisito aconteceu. Não cruzou com ninguém e não escutou nada. Porém, as palavras de Amadeu ainda ecoavam em sua cabeça.
— Que Deus proteja à Clara! — sussurrou a si mesmo, contemplando as nuvens carregadas e virando a esquina da terceira rua antes de sua casa.
Por estar olhando o céu, não viu que Vera, a amiga mais íntima de Clara, vinha em sua direção. Os dois acabaram se esbarrando.
— Henrique, meu querido! Se isso fosse combinado, não aconteceria — Vera se manifestou, quando percebeu com quem tinha trombado. — Até agora de pouco eu e Clara estávamos falando sobre você. — Riu. — A propósito, parabéns pelo filho, que Deus abençoe muito, muito, muito essa família linda de vocês! — Deu um abraço no homem.
— Você tava com a Clara? Nossa, que bom, Vera. A minha mãe me disse algumas coisas, eu não me cabia de tanta preocupação! — Soltou o ar, aliviado.
— Sua mãe, é? Nossa, que estranho! Dona Madalena sempre me pareceu tão sã das ideias… Contar sobre demônios para um filho não é algo que alguém em sã consciência faz!
Henrique se empalideceu. Não havia comentado nada sobre demônios, tampouco sobre o tom estranho que a conversa com a mãe teve. Um vento gélido atravessou o local, que fez surgir um arrepio em sua espinha.
— Mas eu não comentei nada sobre demônios, Vera. Quem te falou isso?
Vera colocou a mão na boca, como se percebesse que tinha falado demais e soltou um riso frouxo.
— Eu acho melhor você se apressar, Henrique. — Ficou de ponta de pé, visando alcançar o ouvido do homem. — Talvez, quando você chegar, não haverá mais Clara, nem bebê. — Mordiscou o lóbulo da orelha dele. — Tic, tac, tic, tac — sussurrou.
Desesperado, Henrique se pôs a correr. As pernas tremiam, um amargor era sentido em sua boca e alguns arrepios passeavam pelo seu corpo. Ansiava por uma confirmação de que tudo estava bem com a esposa.
Ao adentrar na rua de casa, o temporal se abriu, de forma intensa. Mas os seus passos apenas ganharam mais e mais vigor.
— Clara! Clara! — berrou, ao cruzar a porta e se estabelecer na cozinha. — Cadê você, Clara? — Recostou o braço sobre a pia e fechou os olhos, com um pesar no peito.
— Meu Deus, que gritaria é essa, Henrique? — Clara chegou à cozinha. — Tá tudo certo? Você parece pálido.
Henrique se aproximou da mulher e lhe deu um abraço, contente. Ficou de joelhos e beijou a sua barriga, agradecendo por nada ter acontecido.
— Olha o que você me fez, me molhou inteira! Como vou sentar lá no sofá e continuar conversando com a Vera?
— A Vera? Ela tá aqui? — Levantou-se do chão, rapidamente, desconfiado.
— Tá, sim, passou a tarde inteira comigo.
Henrique, sorrateiro, foi até a sala. Para sua surpresa, era mesmo Vera quem estava sentada no sofá. Só que era uma Vera diferente da de um pouco antes. Ao invés de usar uma saia preta e uma blusa rosa, usava um vestido vermelho.
— Parabéns, Henrique, pelo bebê. Que Deus abençoe muito, muito, muito essa família linda de vocês! — Ela estendeu a mão, para um cumprimento. — Não vou te abraçar porque você está todo molhado. — Riu.
Henrique se calou, buscando as palavras certas para aquele momento, que pareciam não lhe vir.
— Henrique, tá tudo certo? Por que não responde à Vera? — Clara perguntou, próxima dos dois.
— Ah, muito obrigado, Vera. — Estendeu-a a mão, confuso e com a voz falha. — Vou tomar banho, logo volto aqui!
O banho acalmara Henrique, que se esquecera das coisas esquisitas que lhe haviam acontecido. Ele caminhava pelo grande corredor da casa, enxugando os cabelos com uma toalha e se sentindo grato pelo dia ter acabado bem. Visava chegar à sala, para conversar com Clara e Vera sobre coisas triviais.
Distraído com a toalha, não viu um obstáculo ao fim do corredor: uma urna preta. Acabou por esbarrar com o dedo mínimo nela.
— Porra, quem foi que deixou essa merda aqui? — boquejou a si mesmo, com uma carranca.
Assim que a dor diminuiu, analisou melhor a peça. Alguns símbolos, cravados com uma tinta dourada, não lhe eram estranhos. Tinha a sensação de que havia os visto não fazia muito tempo. Virou a urna, procurando algo que refrescasse a memória. E encontrou. Encontrou uma palavra em latim e a inscrição "Asmodeus".
Deixou a toalha no chão e foi até a sala, sentindo uma mudança de temperatura abrupta entre os ambientes. Parecia que o inverno havia chegado em apenas alguns cômodos...
Dessa vez, não deu tempo de gritar nem por Clara e nem por Vera. Quando chegou na sala, o quebra-cabeça se formou.
— Clara, por favor, não faça isso. Eu sou o pai de seu filho — chacoalhando as mãos, à frente de seu corpo, disse.
Clara tinha uma faca ensanguentada em suas mãos, um olhar distante, grandes olheiras e uma boca inteira rachada. Havia sido desfigurada em questões de segundos.
— Foi você quem matou Vera, Clara? Eu não acredito! Como pôde? — Henrique viu Vera sangrando sobre a mesa de centro do cômodo. — Ela era sua melhor amiga!
Clara virou o pescoço para os dois lados, ainda se aproximando do marido, com a faca ao alto e um olhar distante. Sem um único movimento da boca, uma voz cavernosa ecoou:
— Sua mãe não sabia que um demônio como eu pode estar em qualquer hospedeiro, por isso não te disse para ficar de olho em Clara. Matarei você, me livrarei deste corpo e depois matarei seu irmão, para assim ser liberto e procurar novas vinganças. — Um sorriso maníaco, de dentes amarelos, apareceu no rosto de Clara.
Henrique permitiu que duas lágrimas grossas escorressem de seus olhos azuis, assim que recebeu a facada em seu estômago. Sussurrou para si mesmo que se encontraria com sua mulher de novo, livre da maldição e que, então, construiria a tão sonhada família.
— Descanse em paz, Henrique Aguiar — a voz cavernosa anunciou, antes de Clara cortar sua própria garganta e desabar ao lado do marido.
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