36. Novos ares, dores incuráveis
Sung-min não gostava da ronda noturna. Às vezes, perdia o sono e conseguia enxergar os longos feixes de luz das lanternas dos guardas. Olhava para a janela e o vidro texturizado mal o deixava ver a forma exata do sol, mas, durante a noite, era como se vislumbrasse o giroflex em azul e vermelho iluminando todo o pequeno cômodo do qual vivia antes de estar ali, numa cela dividida com outros três caras dormindo logo ao lado.
As luzes evocavam memórias que não faziam mal, nem bem. Eram parte da história de Sung-min, mas uma parte que não seria contada para parecer especial, ou excitante. Tudo aquilo só mostrava o quão fraco era, tanto o seu físico, quanto a sua mente. As pernas doíam por estar agachado debaixo da janela por tanto tempo, o suor escorria em fios intensos pelo rosto e ainda era noite de outono. Já o seu consciente, tentava dizer para si mesmo que tudo estava bem quando claramente não estava. A polícia estava a sua procura e Sung-min não saberia explicar o porquê de estar em posse de tantas notas de wons.
— Eu vendi toda a droga que me pediram, eu tenho o direito de ficar com o dinheiro.
Era o que a parte perturbada da mente dele dizia, enquanto a outra, mais realista, não conseguia parar de repetir:
— Fodeu. Fodeu. Fodeu. Fodeu...
(...)
Hoseok morava em um apartamento alugado, típico da capital. Era pequeno e as paredes permaneciam brancas porque ele não queria reformá-lo quando precisasse entregá-lo. No entanto, os seus móveis pertenciam a uma paleta aleatória de cores. O sofá da sala era amarelo, a poltrona era verde musgo e a mesa de centro era em mogno com tampo de vidro, mas sem objeto algum por cima. Havia um quadro de um vaso cheio de flores em tons amarelados na parede, coisa bem genérica que não expremia nenhum traço da sua personalidade, não que os móveis fizessem isso por ele. Hoseok não era muito bom em ver as coisas em conjunto, o sofá era bonito sozinho, assim como a poltrona e, para ele, aquilo bastava.
Quando Taehyung entrou ali pela primeira vez, não sentiu que estivesse pisando em terreno desconhecido. Conhecia bem Hoseok e a combinação de cores dos estofados não chamou muito a sua atenção. Mesmo que os cômodos fossem mais vazios do que ele esperava, ele ainda conseguia ser muito bom em se apegar aos detalhes.
O frasco pela metade do perfume amadeirado estava sobre a pia do banheiro. Bonés de várias cores se enfileiravam em uma prateleira do guarda-roupa e livros aleatórios comprados em um período de tempo se amontoavam em um canto da escrivaninha.
A polaroid dos quatro amigos com os rostos estourados pelo flash da câmera estava presa por um imã na geladeira. Ver o rosto de Jeongguk estampado em algo tão rotineiro fez doer um pouco o seu peito. Não se lembrava daquele sorriso de nariz enrugado e dentes tão expostos, os olhos se apertaram devido à luz forte e ainda sim, ele parecia tão feliz. Uma vontade súbita de saber a data e contexto, não só da foto, mas da vida dele, surgiu na boca do estômago e Taehyung só conseguiu suspirar dolorosamente e virar o rosto.
Às vezes, Hoseok se pegava observando o modo como Taehyung olhava tudo ao redor, lendo de longe os títulos dos livros na lombada, parando para olhar com mais cuidado para os desenhos de tatuagens colados na porta aberta do guarda-roupa. Tatuagens feitas por Jeongguk para quem ainda não pensava em gravá-las na pele.
E ele não se atrevia a perguntar o que Taehyung estava pensando, só deixava que pequenos pedaços dele se juntassem aos seus, como o perfume dele que ficou grudado em algumas das suas camisetas, uma caneta que ficou perdida na cama depois de ter rabiscado o esboço de qualquer coisa e um livro esquecido na mesa de cabeceira foi folheado com a memória do porquê de ter sido jogado ali de repente.
E era assim que as coisas estavam desde o primeiro beijo. Desde a primeira noite que passaram juntos e as ligações noturnas foram substituídas por convites para assistir a um filme juntos. Às vezes, Taehyung achava que ele se aproveitava das ligações porque era algo que pedia por uma resposta imediata. O que fazia Taehyung suspeitar que Hoseok gostava de colocá-lo contra a parede. Se ele ligasse, convidando-o com aquela voz sorridente e encantadora, não conseguiria resistir e nem pensar muito sobre as mil possibilidades de tudo dar errado.
Pareciam estar em uma rotina, mesmo que Taehyung se surpreendesse toda vez que resolvia aparecer por ali. Não que Hoseok inventasse algo de extraordinário para fazer, mas essa era toda a magia de estar conhecendo alguém. Tudo torna-se admirável e borboletas fazem morada em seu estômago.
A manhã nem ameaçava iluminar as frestas das persianas quando o celular de Hoseok vibrou debaixo do travesseiro. Taehyung resmungou algo incompreensível e virou-se de barriga para cima enquanto o outro tateava o colchão sem entender o que estava acontecendo. Atendeu a ligação de olhos fechados, nem havia se tocado que quem ligava era Namjoon trazendo a notícia que ele mais temia.
— Alô.
— Hoseok, é o Namjoon — disse, sabendo que o amigo não teria olhado para a tela brilhando no escuro. Ele tinha olhos sensíveis.
— Fala, cara — respondeu.
Não havia sinal de bocejo algum querendo surgir, pois ele achava que poderia voltar a dormir a qualquer momento. Isto é, se não fosse pela pergunta que Namjoon fez logo a seguir:
— Sabe as orações que você faz todos os dias?
Taehyung estava mais desperto que Hoseok e a possibilidade surgiu em sua mente, era só ligar o horário, a ligação e o tom de voz de quem se preocupa demais com o que diz. Tentou levar os pensamentos para longe e o pavor que cresceu dentro do peito ao perceber que era real foi incontrolável. Taehyung estava paralisado.
Os olhos de Hoseok se arregalaram e um choro subiu pela garganta. Seus músculos perderam a força e somente o desejo de escutar que tudo era mentira o manteve segurando com força o celular contra o ouvido.
— Não... — sussurrou, sem reconhecer a própria voz. — Não, não, não... — Se repetisse, talvez o monstro voltasse a ser imaginário.
— Não deu certo dessa vez, cara.
— Como? O que aconteceu? Onde ele está? — Hoseok sentou-se de repente e Taehyung encolheu-se na cama.
— Ele não conseguiu dizer muita coisa, acho que ele estava com medo de que tivesse alguém escutando. — Suspirou, fazendo a linha chiar. — Ele está em Dongbu esperando o julgamento. Ele não deixou que eu fosse atrás de algum advogado, disse que prefere um nomeado pelo Estado do que fazer a gente gastar dinheiro com ele.
— Esses do Estado são uma piada, ele vai apodrecer lá dentro...
— Pelo menos uns dez anos.
— Mas que porra, Jeongguk! Ele não vê jornal? Apareceu o delegado e tudo falando sobre a operação que prendeu um monte de policial corrupto, ele não estava se cuidando?
— Não sei, cara. Não estou com cabeça para pensar em nada agora — Namjoon respondeu, cansado, mas, mesmo assim, não queria desligar a ligação. Falar com Hoseok tornava a situação mais real e a dor compartilhada escapava por algum lugar, mesmo que fosse em forma de suspiros e indagações sem respostas.
Hoseok respirou fundo e com os cotovelos apoiados nos joelhos, olhou para Taehyung, e, mesmo sem os óculos, sabia que a feição borrada dele era de preocupação e que somente um nome pulsava na mente dele.
— Jimin já está sabendo?
— Acho que ele vai contar. Como e quando eu não sei.
— E a gente vai ficar esperando ele bater desesperado na porta do Taehyung? — Hoseok suspirou, voltando a deitar-se na cama e encarando os olhos atentos do outro.
— Por enquanto, sim — Namjoon disse, cansado, sem saber muito o que responder. Finalizaram a ligação com a promessa de que estariam juntos na manhã seguinte para viverem aquela espécie de luto e decidirem o que fariam a seguir. Se é que tinha algo a ser feito.
Hoseok deixou que o celular escorregasse pelo fúton e, agora, totalmente sem sono, quase conseguia ler os pensamentos de Taehyung.
— Como eu vou esconder isso do Jimin?
(...)
Em uma perda súbita e profunda da consciência, Jeongguk dormiu sentado. Acordou assustado com o barulho de alguém batendo na porta de metal e por alguns minutos, esqueceu onde estava e o porquê, mas assim como o cheiro do caldo de legumes o lembrou da fome, a portinhola aberta em um único movimento, seco e desnecessário, também o fez se colocar em seu novo lugar: o de um presidiário.
Levantou-se rapidamente e o estômago roía como nunca antes. O homem do outro lado encarou os seus olhos famintos e suavizou um pouco os vincos da testa.
— Chegou hoje, moleque? — indagou, como quem já sabia da resposta, mas Jeongguk assentiu sem conseguir dizer nada, a boca estava seca e ele ainda não fazia ideia de como poderia beber água. — Você precisa montar a mesa antes de pegar a comida. — E só então se lembrou do que dizia o manual do detento modelo.
Com tudo pronto, sentou-se à mesa com os joelhos confortavelmente dobrados no tatame. Saboreou o lámen acompanhado de moyashi, acelga apimentada, alguns biscoitos de arroz e uma banana, os quais desapareceram sem que ele pensasse muito sobre o sabor. Com toda aquela fome, qualquer coisa seria saborosa.
Quando o mesmo homem passou recolhendo os utensílios sujos, Jeongguk não conseguiu evitar de cochichar através do metal. Ficaria louco tentando adivinhar onde estariam os outros.
— Na fábrica — respondeu o homem, sem se estender, recolhendo tudo e fechando a portinhola da mesma forma que havia aberto, deixando Jeongguk munido da sua própria companhia e olhos pesados.
Gostou da sensação de ser levado pelo sono, de ser tomado por um imenso vazio onde nada acontecia. Aconchegou-se no tatame e se deixou ser levado pelos sonhos facilmente esquecidos devido ao imenso cansaço. Ali, não existia uma terrível notícia para ser contada a Jimin, não teria que enfrentar as vozes tristes e assustadas dos amigos, as indagações desenfreadas de Yoongi, ou a fúria de Baekhyun. Tudo parecia perfeito e até poderia acordar com os mesmos pensamentos, se não fosse os três pares de pernas à sua frente e a conversa que se desenrolava enquanto ainda estava deitado no chão.
— Deixaram esse cara dormir a tarde toda, ou o quê?! Se cortarem a nossa televisão, eu juro que... — Sung-min disse, de punhos cerrados, pronto para chutar as costelas de Jeongguk.
— Para de fazer promessas sem fundamento, Sung-min. — Kouyou o interrompeu, colocando o braço na frente do corpo dele antes que avançasse. — Pelo menos chegamos antes do jantar, assim ele come também.
— Uau, sorte a dele que uma das fornalhas explodiu e pudemos chegar a tempo de acordar o novato pra jantar. Alguns desastres são mesmo para o bem. — Sung-min ironizou, revirando os olhos para o jovem de olhos perdidos, paralisado no chão.
— Por que os guardas iriam se preocupar com um novato que deve ter virado a noite na delegacia e não sabe nada do que acontece por aqui? — Dong-wook tentou argumentar, virando-se para começar a arrumar as mesas para o jantar enquanto falava. — Eles devem estar preocupados com os veteranos que podem se aproveitar de um momento como esse para fugir, ou causar uma rebelião.
— Nessa sua história eu vou acreditar... — Sung-min bufou, convencido, e antes de se juntar a Dong-wook, apoiou as palmas nos joelhos e disse no melhor tom de voz baixo e ameaçador que conseguia. — Escuta bem, novato, não pode dormir a tarde toda, tá me ouvindo? Não posso perder o meu dorama.
— Desculpa... — Jeongguk disse, meio incerto, olhando ao redor para tentar se lembrar de onde estava.
— Levanta, moleque. Daqui a pouco o jantar vai ser servido — disse Kouyou, aparentando ser apenas alguns anos mais velho que Jeongguk. Quase ostentava um ar presunçoso, não conseguindo esconder que era muito bom ter alguém mais novo que si na cela. — Afinal, qual é o seu nome, número 3.418?
Jeongguk teve o impulso de dizer Flamingo, mas engoliu em seco e levantou-se lentamente. Não sabia o que deveria responder, o nome de quem estava ali pagando pelos crimes que cometeu, ou o codinome conhecido por todos lá fora. "Como gostaria de ser chamado ali dentro?" Perguntou para si mesmo e a resposta fluiu suavemente da boca.
— Jeongguk. — A imagem da sua silhueta vagando pelos corredores da penitenciária invadiram os seus pensamentos. Se dissesse Flamingo, o traficante ainda estaria ali e isso ele não queria mais ser.
— Eu sou o Kouyou. — Sorriu e curvou-se educadamente. Não sabia se era pela idade, mas ele tinha olhos grandes e gentis. — Aquele é o Dong-wook. — Apontou para o homem que aparentava ter seus quarenta e tantos anos. Até mesmo a forma como os seus cílios se tocavam exibiam uma aura brincalhona. — E o chato é o Sung-min. — Que murmurou qualquer coisa, mais preocupado em deixar as mesas perfeitamente alinhadas. Ele tinha rugas na testa porque ela vivia enrugada, criticando algo que alguém estivesse fazendo, mesmo que não interferisse nos pontos acumulados da cela.
— É um prazer, eu acho — Jeongguk disse, coçando a nuca em um misto de estar sem jeito e por ainda sentir os minúsculos fiapos de cabelo presos em sua pele.
— É um desprazer com certeza. — Dong-wook soltou uma risada baixa, daquelas que fazem o peito sacudir e logo o olhou no fundo dos olhos. — O que você fez para ter o desprazer de nos conhecer?
— Deixa eu advinhar. — Kouyou intrometeu-se, com a ironia pairando em suas sobrancelhas erguidas. — Tráfico?
— Ah... sim. — Jeongguk deu de ombros, entendendo o sorrisinho dos dois. — Todos vocês eram traficantes, não é?
— Ainda somos — Sung-min disse, sem desviar o olhar da porta, esperando pela batida inconfundível que avisava que a comida estava chegando. — Ou você acha que o seu chefe lá fora vai esquecer da carga que você perdeu pra polícia?
— Continua sendo responsabilidade minha, eu sei. — E no fundo, não queria saber. Desejou ter sido pego de surpresa com essa informação, assim não teria pensado tanto no que deveria fazer quando saísse dali.
— A não ser que o seu chefe morra subitamente, seja assassinado, envenenado... Você sabe se ele é alérgico a camarão? — Dong-wook perguntou, com toda a naturalidade ao mordiscar o cantinho do dedo indicador.
— Achei que o planejamento de assassinatos ficasse pra hora da televisão. — Kouyou riu, balançando os ombros.
— Eu estou sempre planejando matar alguém. — Dong-wook apoiou-se nas palmas das mãos e jogou o corpo para trás, colocando um certo medo em Jeongguk cuja feição amedrontada não dava muita trégua, por causa da falta dos cabelos, dos sulcos do rosto mais profundos devido à magreza e das incertezas que não deixavam os seus pensamentos. — Eu sou muito bom com planos, não em colocar em prática. Se não eu não estaria aqui, não é?
De certa forma, Dong-wook acabou tranquilizando-o e os lábios de Jeongguk curvaram-se em um quase sorriso, interrompido por Sung-min, que se levantou abruptamente em direção à porta.
— A comida não vai chegar nunca?
— A fornalha explodiu, hyung. Relaxa! — Dong-wook olhou para o seu relógio imaginário no pulso e balançou a cabeça para os lados, tentando esconder a graça que achava ao ver Sung-min nervoso com qualquer coisa. — E deve estar cedo ainda.
— Quantos minutos? — Kouyou perguntou, estranhamente animado.
— Cinco!
E Sung-min abaixou a cabeça sobre os joelhos dobrados. De onde estava, Jeongguk conseguia escutar a contagem sussurrada que ele fazia. Depois que os primeiros sessenta segundos foram contados, o dedo indicador se separou do punho fechado e Sung-min começou de novo, partindo do número um. E ele faria aquilo mais quatro vezes.
Jeongguk franziu o cenho e viu os outros dois rirem sem parar por quase um minuto.
— O que é isso?
— É um jeito de fazer o Sung-min calar a boca e não escutar a nossa conversa, ele fica muito concentrado contando o tempo — Kouyou explicou e logo virou-se para Dong-woo. — E sobre o que você quer falar?
— Tenho que escrever uma carta para a minha filha. O Natal passou e eu não consegui mandar um presente pra ela... Queria que ao menos na virada do ano um pedaço meu estivesse lá. — Suspirou e olhou para a porta, fugindo do contato visual de Jeongguk.
Os olhos de universo insistiam em soltar faíscas de asteroides colidindo-se. O desejo de Dong-wook, em parte, era o seu também. Queria que Jimin tivesse um pedaço seu, íntegro e físico, provando que ele ainda existia. E Jeongguk queria ter algo dele ali consigo também, só as músicas cantadas com a voz de Jimin e as ilustrações abstratas que a sua memória pintava por aí não seriam o suficiente. Queria uma carta com o cheiro dele.
Mas, para que isso acontecesse, Jeongguk deveria lhe dar o seu novo endereço, contar o que havia acontecido e ele nem conseguia se imaginar pegando no telefone e pronunciando as palavras. Estar sentado sobre um tatame, à mesa com três pessoas que acabara de conhecer, em um cômodo fechado e vigiado não tornara tudo o que aconteceu mais real. Contar para Jimin tornaria.
— Já tentei começar, mas tudo o que sai são piadas autodepreciativas. — Dong-woo concluiu. — Ela já tem 15 anos, não quero que pense que o pai é uma criança que acha que o que aconteceu foi uma grande brincadeira. Ela está sem pai agora, isso é algo sério...
— Escreva algo do fundo do coração, mesmo que seja engraçado. Tente tirar um sorriso dela, mesmo de longe — Kouyou aconselhou, com seus olhos mornos e piscadas lentas. Ele parecia sincero no que dizia e os dois pareciam ter uma boa relação. — Dois minutos. — E apontou com o queixo para as mãos de Sung-min. — O que acha, Jeongguk?
— Não sei, eu preciso entrar em contato com uma pessoa também e não sei o que fazer. — Abraçou os joelhos, enluvando o dorso da mão tatuada.
— Uma pessoa, é? — Dong-woo não perdeu tempo e semicerrou os olhos, encarando-o de modo divertido, tirando o foco da conversa de si.
— Qual é o nome dela? — Kouyou perguntou e Jeongguk respirou fundo. Deixaria eles pensarem que se tratava de uma mulher, manteria fechada algumas partes críticas da sua vida. Sung-min tinha cara de ser um pouco preconceituoso, mas o dongsaeng não tivera nenhuma boa impressão dele mesmo.
— Jimin. — E, agora, ele existia ali dentro também, como uma parte sua que nunca se separava. Longe do seu alcance, mas o nome dele sempre reverberava por onde quer que passasse.
— Eu já tive uma Jimin. — Dong-woo voltou a se apoiar nas palmas e olhou para o teto com certo saudosismo. No fundo, Jeongguk esperava algum comentário machista vindo dele e ao mesmo tempo, queria ser surpreendido. E essa era a magia de conhecer pessoas novas, um misto de pequenas expectativas frustradas ou surpresas que podem trazer um olhar diferente para o outro. — Que por acaso não é a mãe da minha filha. Ela se tocou que eu não era coisa boa e se mandou.
— Esperta. — Kouyou apontou, tirando um sorriso debochado de Dong-wook.
— Você errou! — Sung-min disse, de repente, levantando-se para checar a porta.
— Silêncio — Dong-wook pediu e todos respeitaram. Logo, ouviram o arrastar das rodinhas do carrinho que trazia a comida ao longe, no início do corredor. Ele fingiu uma tosse, convencido, revertendo a situação ao seu favor, pois o combinado era de ter o carrinho bem em frente a porta assim que o tempo acabasse, mas ninguém ligava de fato para aquele detalhe quando estavam todos morrendo de fome.
— Ei, você nem pegou os seus hashis ainda. — Kouyou lembrou a Jeongguk, que franziu o cenho e apontou para si mesmo.
— Eu tenho um só meu? — E pensou de repente no almoço e nos hashis descartáveis de bambu que usou. Eram nesses pequenos atos que a gentileza acontecia dentro de um lugar tão hostil.
— Dá uma olhada nas suas coisas, cara. Aproveita e procura uma garrafa térmica, bom que a gente fica com água quente de sobra. — E levantou-se para ajudar os outros a distribuir a comida pela mesa e a colocar os vidros de molho a postos na portinhola para serem reabastecidos.
Jeongguk vasculhou a caixa que recebeu e encontrou tudo o que precisava ali. Uma garrafa d'água, uma caixa de madeira com um par de hashis de aço inox e a tal garrafa térmica ainda vazia. Quando voltou para a mesa, a comida já estava toda ali: sopa de shitake e ovo, fígado e ervilhas refogadas, tomate, alface e maionese.
Fez a segunda refeição do dia com todos em silêncio, exceto por Dong-wook, que tagarelava sobre alguma história vivida no mundo real. Não era difícil imaginá-lo com fios ondulados emoldurando o rosto, Dong-wook não era feio, era até um pouco charmoso e os dentes eram bem alinhados. Mas Jeongguk, no fundo, sabia que aquela era uma versão do colega de cela que ele nunca de fato conheceria. Sung-min talvez fosse mais simpático, não se preocupasse tanto com a televisão ou com o cardápio da semana. Kouyou talvez mantivesse a sua essência para não se perder ali dentro e assim, Jeongguk se distraiu durante o jantar, porque era muito mais fácil se preocupar com coisas que não podiam ser verdade. O mundo lá fora ainda existia e as dores que ele lhe concedeu também.
— Já se passaram 20 dias desde a última visita do advogado — Sung-min disse, riscando o dia que se passou, preenchendo com cuidado todo o quadrado com a tinta preta da caneta. — Agora são 21 dias.
Depois do jantar, as mesas se mantiveram no mesmo lugar e os três pegaram seus cadernos com anotações e o analisavam como se fossem homens de negócios. Jeongguk tentou acompanhar e procurou pelo seu dentro da caixa, e lá ficou, com o caderno em branco sobre a mesa, sem saber se um dia queria ter tantas anotações quanto os companheiros.
— Quando vai ser o seu julgamento? — Kouyou perguntou, olhando para o mais novo.
— Não faço a menor ideia, ainda nem assimilei muito bem que fui pego em flagrante. — Jeongguk rodou a caneta entre os dedos, sem saber muito bem o que fazer com aquilo. Queria fazer um desenho, mas era proibido. Pensou em rabiscar qualquer coisa e jogar no vaso sanitário depois, mas não queria que Sung-min se irritasse consigo logo no primeiro dia, já bastava ter dormido o dia inteiro quando só é permitido ficar deitado uma hora depois do almoço.
— Com quantos? — Dong-wook parou de reler as suas inúmeras tentativas de carta para a filha e o olhou.
— Trezentos pinos de cocaína. — Os outros assoviaram, surpresos com a quantidade e Jeongguk só conseguiu assentir com a cabeça. Então essa era a sua história de vida agora.
— A data do seu julgamento já foi marcada, Kouyou-ssi? — Dong-wook estava disposto a não tentar escrever uma nova carta e preferia conversar sobre qualquer outra coisa. Fechou o caderno e colocou a caneta atrás da orelha.
— Em doze dias. Serei o primeiro a abandonar vocês. — Deu de ombros, aceitando o seu destino. — Quem sabe a gente se encontra em Pohang.
Jeongguk murchou um pouco por dentro. Sabia que aquele era um presídio provisório e iria para outro lugar quando recebesse a sentença, mas não queria ter de conhecer outras pessoas. E se eles fossem completamente desagradáveis? E se fossem todos como Sung-min? E pior, teria que ver todos irem embora. Não deveria se apegar a nenhum deles, o coração já doía o suficiente por causa das pessoas que tinha lá fora.
— Você deu sorte de ter um advogado particular. Eles sabem fazer o dinheiro investido valer a pena — Sung-min reclamou, parecendo fazer contas em seu caderno, sem nunca se esquecer dos cifrões.
— Ah, claro... — Kouyou levantou as sobrancelhas uma única vez e pigarreou, fechando o caderno de folhas intactas.
Antes que alguém dissesse mais alguma coisa, um sinal ecoou pelos altos falantes e os três se levantaram. Jeongguk permaneceu sentado, tentando entender o que estava acontecendo, mas logo juntou-se aos demais e começaram a recolher as mesas e a arrumarem os futons no chão. Sung-min não perdeu tempo e aconchegou-se nos cobertores, ligando a televisão que ficava sempre no mesmo canal. Kouyou e Dong-wook nunca tentaram fazê-lo assistir a outra coisa, aproveitavam da distração alheia para conversarem e lerem sem serem chamados atenção.
— Desistiu da carta, hyung? — Kouyou perguntou e Dong-wook bufou.
— Esse vai ser o primeiro revéillon que não vou passar com ela, mas não queria que ela me esquecesse. Não sei o que fazer. Me parece tão triste enviar somente uma carta.
— E é tudo o que você pode fazer por ela. Acho que já é o bastante.
A pele pálida de Kouyou espelhava as cores vivas da televisão. Se não estivessem em uma cela de um presídio provisório, com criminosos deitados confortavelmente em seus travesseiros, Jeongguk pensaria que estaria na sala de algum amigo de quando era adolescente, assistindo a filmes até de madrugada. No entanto, ainda eram sete horas da noite e Kouyou aconselhava como se estivesse dizendo aquilo para o próprio pai. "Quando o mínimo é tudo o que se pode fazer, então já é o suficiente".
— Ei, se você escrever uma carta pra Jimin, eu escrevo uma pra minha filha. — Dong-wook cutucou Jeongguk do outro lado e ele fez uma careta de desgosto, bufando com a ideia que não seria esquecida pelos novos colegas.
— Eu posso até escrever, mas não sei se vou conseguir enviar.
— Então não adianta de nada. — Kouyou apoiou-se sobre os cotovelos para conseguir enxergar Jeongguk atrás do corpo grande de Dong-wook. — Por que você está tão relutante em escrever pra ela?
— Porque já faz um tempo que não nos falamos. Eu queria acertar a minha vida antes de continuarmos, mas olha só onde eu estou agora.
— Você tem que contar, dongsaeng. Trezentos pinos de cocaína? Prisão em flagrante? Você não pode sumir por dez anos e não contar pra ela. — Dong-wook virou-se para Jeongguk e aquela foi uma das raras vezes que percebeu a seriedade das palavras do seu mais novo hyung. — Ela não pode achar que foi abandonada. — Suspirou, dolorosamente, pois as palavras que dizia para o outro tocaram o próprio coração. — Pronto, me convenci a escrever para a minha filha.
— Você não vai conseguir ligar pra ela — Kouyou disse, olhando no fundo do universo opaco dos olhos de Jeongguk, agora que Dong-wook havia se levantado para pegar o caderno de volta. — Vai ouvir a voz dela e a sua garganta vai travar. Talvez, ela diga o seu nome porque já decorou o timbre da sua respiração. E é nessa hora que você vai desligar o telefone e dar meia-volta.
Jeongguk mal conseguia respirar porque era exatamente isso que ele achava que aconteceria. Seus lábios estavam entreabertos e uma vontade absurda de rebater surgiu dentro do peito, mas ele não sabia o que dizer. Kouyou estava certo, sabia por experiência própria.
Seus olhos voltaram a piscar quando o seu caderno foi arremessado em sua direção e o corpo de Dong-wook voltou a ficar entre ele e Kouyou.
— Escreve isso logo. Prometo que ninguém aqui vai xeretar as suas coisas. — Dong-wook já estava deitado sobre o caderno, com a caneta a postos para escrever pelo menos a data de hoje.
— "Não me deixe no escuro..." — sussurrou, para si mesmo, lembrando da voz de Jimin ao pedir aquilo. Suas mãos ficaram frias e ele conseguia sentir o abraço apertado dele tentando esquentar o seu corpo. Queria ter isso agora. Queria sentir de novo como era ser o Jeongguk do Jimin.
Queria ter forças para fazer alguma coisa, lutar para sair dali o mais rápido possível, mas o choro subia à garganta e ele engolia o nó. Não tinha jeito, não sabia o que fazer.
Quanto mais pensava em como começaria a carta, mais doía imaginar seus dias ali sem vê-lo lendo na janela do quarto, ou sem escutar a voz rouca de Taehyung contando como ele estava. Já havia se acostumado com essas minúsculas partes dele, pois era melhor do que o nada de agora, ou do futuro. No fundo, tinha um medo irrefreável de que ele não suportasse a sua nova condição e não lhe restasse nada além de memórias de um amor intenso, que ressignificou grande parte da sua vida.
Mas sabia que era como adiar o inevitável e, por mais que doesse, queria escrever sobre ele, mesmo que a carta não fosse enviada, se perdesse pelos arquivos da penitenciária e tudo ficasse apenas dentro do vazio da sua mente. Fora dela, Jimin podia assumir outras formas, ser chamado de mulher para a sua segurança, mas, por dentro, ele seria sempre o seu irretocável Jimin.
Olhou para o lado e Dong-wook continuava concentrado na folha em branco, arriscando escrever a primeira frase. Kouyou prestava atenção na tela da televisão e os olhos pesados ameaçavam cair no mais profundo dos sonos. Sung-min estava de costas para si, fungando. Devia estar chorando com alguma cena do dorama que Jeongguk não foi capaz nem de ouvir as vozes dos protagonistas.
Suspirou e sentiu os pulmões doerem dentro do corpo. Sabia o que as suas palavras causariam e queria mais do que tudo estar ao lado dele para sugar uma dor que não era sua.
Jeongguk era o veneno, mas queria ser o antídoto.
"Seul, 27 de Dezembro de 2019
Oi, meu amor
Escrevo essa carta porque, uma vez, você me pediu para não te deixar no escuro, lembra? Bom, mesmo que eu não possa te contar tudo agora, aqui vão algumas confissões:
Sei que já faz algum tempo que a gente não se fala e por mais que isso seja péssimo de se dizer, gostaria que as coisas se mantivessem desse jeito. Ao menos eu saberia sobre você a partir do Taehyung, te visitaria de madrugada e te veria na janela do seu quarto lendo alguma coisa, enquanto eu estaria escondido na minha caminhonete. É, eu andei te espionando, mas eu só fiz isso uma vez.
Nem sei que chá era aquele que você estava tomando, mas uma parte egoísta dentro de mim pede para que seja o de calmomila... Eu lembro que foi com ele que eu disse o meu nome pra você pela primeira vez e fiquei bem calminho, não sei se pelo efeito do chá, ou pelo efeito que você tem sobre mim. A sua existência tornava a minha mente sã, mas agora com a sua ausência, talvez eu tenha beirado a insanidade algumas vezes.
Fiz inúmeras pinturas do seu rosto. Foi a forma que encontrei de te trazer para mais perto. O que obviamente não deu certo e agora estou aqui, ainda mais longe de você, te escrevendo uma carta porque não sei como te dizer que estou residindo na penitenciária de Dongbu esperando o meu julgamento.
Pois é, aconteceu. E não há um dia em que tudo o que você fez por mim não passe pela minha cabeça, que tudo poderia ser diferente, que o nosso amor não encontrasse tantos obstáculos ao ponto do tempo ameaçar a memória que tenho do seu rosto, mas tudo o que você me fez sentir continua intacto em todas as batidas do meu coração e nas minhas terminações nervosas.
Talvez você não saiba o que causa nas pessoas e eu queria ter um vocabulário melhor para me expressar, mas eu tatuaria as iniciais do seu nome no vazio em forma de onda que tenho no peito. Você preencheu algo em mim que eu nem sabia que estava vazio.
No mais, eu estou bem, não se preocupe. Apesar de só tomar 2 banhos por semana. Acho que nem o Nanquim iria gostar disso.
Rasparam o meu cabelo, então não se assuste se algum dia decidir me visitar. Vou colocar o seu nome na lista, mas não vou ficar magoado nem nada do tipo se preferir manter distância. Eu vou entender... É que tem tanta saudade acumulada transbordando do peito que a ideia de te ver, mesmo através de um vidro, me deixa feliz. E pouca coisa anda me deixando feliz por esses dias.
E se você quiser seguir em frente, tudo bem. Só me diga antes pra eu poder seguir também. Pode ser por carta, ou algum aviso que eu possa te ligar. Eu sei o seu número de cor.
Enfim... Estou dando o meu máximo para deixar as coisas bem claras porque entendo que as circunstâncias sejam extremas agora e nunca foi a minha intenção te causar algum mal. E mesmo assim, se o meu eu de agora corresse para o passado para me avisar tudo o que aconteceria com a gente, não sei se seria capaz de mudar os rumos da nossa história porque, nesse exato momento, tudo ao meu redor é incerto, mas tenho a plena certeza de que te amei perdidamente (e continuo amando) e que eu não seria o mesmo sem ter passado todos esses meses ao seu lado.
Nunca vou esquecer do seu nome e eu espero que não se esqueça do meu.
Do seu primeiro e grande amor;
Jeon Jeongguk"
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