31. Insanidade
A madrugada parecia calma, apesar do frio que fazia Byul-yi esconder as mãos geladas nas mangas de seu moletom. Estava dentro do carro com Yeonjun e só o que escutava eram as goladas sopradas dele no café fumegante.
Seu parceiro era cheio de manias irritantes, mas ela não poderia negar que era melhor estar com ele do que sozinha. Aquelas noites de observação eram um tanto estranhas para si, pois parecia que tudo daria errado a qualquer instante, mas não dava. Era uma ansiedade que roía as suas unhas e beliscava os lábios, uma tensão que crescia e se dissipava com o fim do expediente do observado.
As suspeitas contra Hyun faziam tanto sentido que, ver dias e noites se passarem sem conseguirem ter qualquer prova concreta contra ele, deixavam-na anestesiada, as esperanças evaporando aos poucos e tudo se tornando meio apático. Quantas noites ficariam à espreita sem que nada acontecesse até que percebessem que tudo não passou de um devaneio e a culpa era de outra pessoa?
De vez em quando, imaginava que era ela quem devia ter perdido algum ponto. Ainda bem que Yeonjun estava ali para não a deixar pensar dessa forma por muito tempo.
— Essa demora toda se deve ao fato do Joong-ki estar sendo o parceiro de Hyun nesses últimos dias — dizia ele, ao seu lado, a câmera fotográfica no colo e o vapor do café abrindo os seus poros. — Acho que o parceiro antigo dele está doente.
— Parabéns, Kim Seokjin. O digníssimo delegado está atrasando o nosso trabalho — rebateu, já sem muita paciência.
— Ou talvez ele queria adiantar o processo. Você não acha que a índole de Joong-ki foi colocada à prova?
— Pode ser. — Deu de ombros, bufando logo em seguida ao que olhava para a janela.
— Eles conseguiram apreender uma boa quantidade de drogas na rota Busan X Seul durante uma blitz. Joong-ki disse que Hyun tremia mais do que o traficante. — Yeonjun prendeu a gargalhada com a mão livre, mal se aguentando com as imagens que a sua imaginação criava.
— Você é um fofoqueiro — Byul-yi comentou, tentando disfarçar o próprio sorriso.
— Apenas compartilho informações — disse, em um tom falsamente zangado, dando mais um gole em seu café. — Pelo menos hoje ele volta sozinho na viatura. — Apontou com o queixo para a tela que mostrava a rota alheia, o ponto vermelho mostrando a rodovia onde a blitz acontecia, os giroflex brilhando não muito longe da entrada escondida para a floresta onde os investigadores estavam.
Byul-yi observou a tela com o olhar desanimado, repensando sobre todas as suspeitas apontadas contra Hyun: — Você não acha que isso é coisa da cabeça da Wheein? Eu sei que ela não gosta do cara, talvez–
— Eu acho que ela é bastante profissional — Yeonjun a interrompeu, a cafeína deixando-o inquieto. — Assim como Hyun está tentando ser. Qual é, é óbvio que ele sabe que alguma coisa está acontecendo: troca de parceiros, patrulhas em lugares que não eram sequer citados e nisso alguma informação foi revelada, porque esse negócio do Flamingo ter escapado não me desce. Ele era o traficante do campus e não tinha um grama de nada naquela noite? Fala sério...
Byul-yi arqueou as sobrancelhas, suspirando pelo cansaço de Yeonjun estar sempre certo: — E esse traficante que foi preso? Também não disse nada?
— Eles nunca dizem.
Yeonjun deixou o café de lado e apoiou o cotovelo na janela, olhando para toda a escuridão que os cercavam, não só da floresta, mas também naquele caso. Não conseguir resolver as intempéries da segurança pública fazia com que aquilo escapasse para a sua vida pessoal e tudo virava uma bola de neve emocional. Afinal, nenhum dos dois queriam ler mais notícias sobre jovens morrendo de overdose em casas noturnas, nem olhares desesperançosos de traficantes na mesa de interrogatório ao pensar que tudo poderia ser diferente.
— Você não acha triste fazermos parte da polícia e estarmos aqui escondidos para investigar um policial? Porque nossa... eu acho muito triste. — Yeonjun cruzou os braços, reflexivo.
— Acho... Mas não sei o que mais eu posso fazer a não ser ficar aqui, esperando o canalha mostrar as garras.
Byul-yi mordeu os lábios enquanto tentava manter os seus pensamentos dentro da cabeça. Yeonjun não podia ser chamado de amigo, pelo menos não ainda, mas ele parecia o único capaz de entendê-la e assim, continuou meio incerta.
— Às vezes... me dá uma falta de esperança na humanidade, sabe? Me pego fazendo o meu trabalho no automático, com a sensação de que nada será resolvido, como agora... Porque se ele está enganando Kim Seokjin esse tempo todo, quem somos nós para descobrirmos alguma coisa?
— Nós somos investigadores profissionais, ora. Kim Seokjin é só o delegado, tem muita coisa pra resolver, e nós dois estamos focados em um único problema: Lee Hyun. — Yeonjun encarava incisivamente os olhos de Byul-yi e, apesar da escuridão com a qual já haviam se acostumado, conseguiu transmitir um conforto que ela realmente precisava. — Você é necessária, é por causa de você que estamos aqui, pois foi você que se atentou a um ponto e criou um plano de ação.
— Não é você o maior fã do delegado? — Desviou o olhar e brincou para tentar disfarçar o semblante afetado.
— Sou, mas também tenho amor próprio. — Riu, junto de Byul-yi, e pediu logo em seguida: — Tenha mais sangue nos olhos, noona — E apontou novamente para a tela, o automóvel movimentando-se em direção a Seul e abandonando a blitz na qual trabalhava. O expediente de Hyun havia acabado e era naquela hora que eles esperavam que algo acontecesse.
— Vamos esperar que ele passe por nós — disse, em tom cuidadoso, mantendo os faróis apagados para manterem-se camuflados na escuridão.
E logo a viatura policial passou zunindo na autoestrada, ganhando cada vez mais velocidade à medida que se afastava da equipe. Byul-ly entrou na rodovia com o pé pesado sobre o acelerador, acompanhado-o com facilidade e mantendo uma certa distância para que Hyun não desconfiasse que estava sendo seguido.
Yeonjun apertou os cintos e segurava firme na câmera, os dedos ficando ainda mais frios pelo nervosismo que aquelas situações sempre traziam, apesar de apreciar a adrenalina. Hyun podia estar simplesmente indo para casa, como em várias outras vezes, mas a possibilidade de algo finalmente acontecer fazia o seu coração bater mais rápido e ele sentia o sangue oxigenando em suas artérias.
Entreolharam-se em pura tensão quando perceberam que ele não estava se encaminhando para a Estação Policial, onde deveria deixar a viatura, muito menos indo para casa. Já sabiam o endereço dele de cor.
— Ele não vai fazer alguma merda usando o carro oficial, né? — Byul-yi comentou, apertando o couro do volante. — Puta que pariu...
— Aprecio a sua fé em policiais corruptos. — Yeonjun riu soprado, negando com a cabeça, os olhos voltando para a pista quando sentiu que a velocidade diminuía ao entrar na rota de bairros periféricos da região, o carro chacoalhando um pouco mais ao andar no asfalto gasto.
— Caralho, era só deixar a viatura na Estação e pegar a porra da BMW dele — Byul-yi continuava a reclamar, incrédula. — Tem certeza que não há nenhum chamado para a área?
— Absoluta — respondeu, ainda sorrindo, um pouco chocado ao ouvir tantos palavrões, mas feliz por finalmente sentir o ódio alheio que tanto queria.
Não o perderam de vista graças ao GPS que mostrava a localização da viatura, pois a distância que tomaram do veículo só crescia à medida que se aprofundavam naquele bairro afastado do centro de Seul. Byul-yi enfiou-se em um dos becos da rua transversal de mão única, sabendo que Hyun estava somente há alguns metros dali. Yeonjun desafivelou o cinto com rapidez e saiu do automóvel, mantendo a porta aberta para evitar maiores ruídos.
Os postes de lâmpadas amareladas deixavam a rua inteira em um tom sépia. Os seus passos acelerados eram silenciosos no asfalto misturado a pedras, os olhos grandes tentavam registrar cada mínimo movimento de Hyun. No entanto, as narinas dilatadas precisaram ignorar o cheiro do lixo que havia no muro onde se apoiou para capturar as imagens.
O silêncio da madrugada fazia o som das lentes focando em zoom ao longe soarem estridentes em seus ouvidos. Sabia que ele não escutaria de onde estava, mas a cada disparar da câmera, Yeonjun sentia o seu coração errar uma batida e os pulmões se esquecerem de como respirar.
Mesmo com poucos anos de experiência, não se deixou levar pelo nervosismo e as mãos mantinham-se firmes para registrar o exato momento em que Hyun recebeu um pacote de um homem não identificado, vestido com um casaco pesado e o capuz sobre a cabeça.
— Finamente! — sussurrou, tão baixo que duvidou que de fato havia dito alguma coisa.
Hyun abriu o pacote de papel pardo e observou o que havia lá dentro, colocando-o por dentro do seu traje policial e dizendo algo que Yeonjun não conseguiu ouvir, apenas enxergou o vapor sair da boca ao que as palavras eram cuspidas, seguidas de gestos negativos de ambos. Ele entrou novamente na viatura e, ao que parecia, voltaria insatisfeito para casa.
O carro não passou por eles na volta, seguiu em frente até sumir na próxima esquina. Yeonjun checou o relógio em seu pulso e voltou para falar com Byul-yi, batendo no vidro da janela para lhe contar o que havia visto.
— Ele recebeu propina com certeza. — Umedeceu os lábios secos e olhou ao redor, a pele alva ganhando os tons amarelados das lâmpadas. — Só precisamos voltar mais vezes para confirmar se a pessoa que repassou o dinheiro tem ligação com o tráfico de drogas.
— Então finalmente temos provas para pedir pela interceptação telefônica?
— Minha parte favorita!
Yeonjun abriu o seu maior sorriso e até parecia que tal fato era verdade, mas Byul-yi bem sabia que todos os passos da investigação criminal o moviam. Sem aquilo, Yeonjun era menos Yeonjun.
Vê-lo voltar para o posto de observação puxando a gola do casaco para cima e não se incomodando nem um pouco com o lixo que o cercava, acendeu algo em si que ela julgava ter esquecido. Talvez fosse o olhar jovem de quem ainda mantinha as esperanças, apesar de todo o cenário não ser propício para aqueles que acreditavam em alguma coisa. Quem sabe, a certeza de que estava do lado certo da história e que seria uma das personagens marcantes de tal narrativa.
(...)
Com as mãos no volante e a janela aberta, Jeongguk sentia a brisa gélida da noite causar espasmos em seu corpo magro e desprotegido. Não que fosse algo que ele se importasse, preferia encarar o frio do que aquela culpa pulsando na mente, ou a mágoa e o rombo desgraçado no peito.
Estacionou em frente ao seu prédio e só então fechou as janelas, o baque da porta de metal sendo o único som em seus ouvidos na rua vazia. Suspirou e observou a fumaça sair da boca, ainda era madrugada, quase manhã. A pochete estava vazia, assim como o seu estômago que doía de fome.
Tudo seria o mesmo de meses atrás se a brisa leve de Jimin não tivesse balançado o muito que restava de si. Tudo ainda seria o mesmo se não ouvisse a risada dele acompanhar os seus passos na escada escura, se não sentisse a barra da camiseta ser puxada enquanto as chaves tilintavam na fechadura.
Ao abrir a porta, retirou os tênis com o auxílio dos próprios pés e as meias se arrastaram no piso mais frio que as suas solas. Os olhos formigavam pelas lágrimas crescentes e a voz de Jimin preenchia o silêncio constante do cômodo, seu timbre soando como uma música de acordes mentalmente gravados.
Segurando a respiração dentro dos pulmões, os dedos hesitaram ao apertar o interruptor, mas logo a escuridão ganhou o tom amarelado da lâmpada e Jeongguk encarou o vazio que a ausência dele causava. E como se despertasse de um sonho, não ouviu nada além do típico zunido dos eletrodomésticos, algum cachorro latindo na rua e conversa alta de gente que bebia para se esquentar.
Ele perdera as contas de quantos dias se passaram desde que ele foi embora e achou melhor continuar sem saber, pois quem conta o tempo espera por algo e Jeongguk não conseguia esperar por nada.
Caminhou até o banheiro e retirou a roupa sem pressa, a mente cheia de outras coisas o fizeram parar de se atentar ao cheiro de destilado barato que emanava do tecido. Quem dera tivesse bebido. Entrou debaixo do chuveiro e a água dessa vez era morna devido ao frio que fazia lá fora, a esponja era esfregada com sutileza na pele, quase como se quisesse ser um pouco mais gentil consigo mesmo. Deixava que a água massageasse as suas costas enquanto os braços cruzados na parede davam apoio para a cabeça, as lágrimas cotidianas sendo derramadas sem pudor algum. Os anéis de Jimin ainda estavam sobre a saboneteira.
Deitava-se de olhos inchados no colchão que não voltara para o seu devido lugar, o resquício do cheiro dele ainda estava na fronha do travesseiro e ficava mais fraco a cada dia que se passava. Tinha medo de que a fragrância suave sumisse de vez, pois as risadas e as vozes sussurradas em seus ouvidos pareciam um devaneio qualquer, mas o cheiro não.
E assim, vasculhava o celular, revendo todas as fotografias para que não se esquecesse do sorriso dele, de como o sol de uma tarde chuvosa refletia no cabelo escuro e as suas tatuagens decoravam um pouco a pele lisa de Jimin. Eram bonitos juntos. Faziam tão bem um para o outro que Jeongguk observava as últimas mensagens trocadas, o aviso de que havia chegado em casa não seria enviado, mas no fundo, esperava que Jimin não fosse assim tão forte.
Pois se ele pedisse por um pouco de Jeongguk, ele se entregaria por inteiro. Correria para os seus braços, para onde pertencia. Por ele, gostaria de ser eternamente responsável pelo o que cativou e mais do que isso: de cuidar de todas as feridas que foram abertas, até que não restasse nada além das cicatrizes da sua história de amor.
E era ali que ele preferia ficar, cercado de situações imaginárias, fazendo encontros em suas memórias. Afinal, a realidade era dura e solitária.
Caía no sono com dificuldade e as noites mal dormidas o atingiam em uma constância entediante e monótona, já deitava a cabeça no travesseiro esperando pelo o que estava por vir: sonhos aleatórios sobre contextos cotidianos que nunca aconteceriam, ou pesadelos disformes de um futuro amedrontador.
No entanto, o pior de todos eram aqueles tão reais que Jeongguk duvidava se eram de fato sonhos, ou se haviam acontecido de verdade e a sua memória estava apenas o traindo. Às vezes, sentia o rosto de Jimin tão próximo do seu que só sabia que era ele devido ao cheiro, o cabelo preto bem abaixo do seu nariz, o pescoço a centímetros de distância.
Mas naquela manhã, os raios solares insistiram em iluminar mais um dia e Jeongguk já não sabia se estava dormindo ou acordado. Ouviu batidas ao longe e, de repente, seus olhos arregalaram-se e o corpo estava de joelhos, pronto para se levantar e atender quem o chamava. Era Jimin, tinha certeza que era ele.
Com a respiração afoita, bastou apenas alguns segundos de lucidez para então perceber que eram apenas batidas no apartamento vizinho. Frustrado, deitou-se novamente e enrolou-se nos lençóis perfumados, sem entender porque os seus desejos ultrapassavam a linha do que era real naquele nível tão absurdo.
E ali ficava, remoendo o imenso vazio no peito e se perguntando se podia sentir tudo aquilo. Não podia desejar que ele o procurasse depois do que aconteceu, e não poderia deixar que ele vivesse apenas com as migalhas do muito que podia oferecer. Jimin merecia tudo e a completude era uma falácia naquela hora tão errada da história dos dois.
— É melhor assim — repetia, olhando nos olhos sonolentos de Nanquim, tentando ignorar a sensação de que nada parecia melhor daquele jeito, acreditar e esquecer de tudo o que já perdeu por viver da forma como vivia.
No entanto, era só olhar ao redor para relembrar de todas as tatuagens que não fez. Seu caderno estava cheio de rascunhos inacabados e não havia motivo para finalizá-los. Os materiais que o sr. Choi o emprestara tornaram-se presentes, Jeongguk não tinha coragem de aparecer nem para devolvê-los, muito menos para mostrar aquele rabisco do rosto de Jimin, que mais parecia um estranho estampado no papel de aquarela ainda sem muitas camadas.
De cara amassada, comia o resto do cereal embebido no leite sentado ao balcão da cozinha, junto de toda a bagunça de cadernos, tintas e as canetas que usou para tatuar Jimin. Era como se estivesse paralisado naquela última noite que tiveram juntos, pois se colocasse a cama no lugar, juntasse os lençóis e se livrasse do cheiro dele, estaria seguindo em frente, só que não havia como superar tudo aquilo.
Olhou novamente para a aquarela que jazia sem vida no balcão frio e um incômodo perpassou a linha da sua coluna, percebendo o ponto em que a sua história havia chegado: tudo o que tinha de Jimin eram memórias, fotos facilmente apagadas e uma carta escrita por ele.
Parou de repente e engoliu o que ainda restava na boca, levantou-se da banqueta em um ímpeto desesperado e jogou a tigela na pia, encheu de água um copo de vidro e o depositou ao lado dos poucos pincéis que possuía. Se assim seria por um momento ainda imensurável, deveria fazer o melhor que pudesse para eternizar a face de quem o mostrou o quão bom foi amar, antes que o tempo corroesse as suas memórias e a sua sanidade.
Colocou a folha da pintura iniciada debaixo de todas as outras e começou uma nova, somente com o que habitava os seus pensamentos, sem referências. As memórias de uma tarde ensolarada e chuvosa, como se ele e Jimin nunca tivessem sido apenas verão, sempre havia uma nuvem cinzenta e teimosa para os fazerem lembrar de toda a parte escura que os assombrava. Agora que o tempo havia fechado de vez, Jeongguk tentava recuperar a sensação de um período do qual não havia premonições desastrosas, de quando o seu amor por Jimin só crescia e não sufocava com a ausência.
Com o esboço pronto, começou a misturar as tintas por instinto. O verde escuro das árvores ao redor da caminhonete; os pingos imperfeitos de chuva no para-brisa e o alaranjado do fim de tarde que o lembrava do amor terno que sentiam um pelo outro. Não fazia mal a ninguém.
E então, começou a dar profundidade e luminosidade ao rosto, com cada camada trazendo para as palmas de suas mãos a sensação dos arrepios que causava, a carne entre os seus dedos. Era como se estivesse ali, sentindo o cheiro dele tão forte devido a proximidade dos corpos, e não apenas pequenos fragmentos dele espalhados pelo cômodo.
Os detalhes da sua mão que envolvia o rosto de Jimin foram finalizados e era inevitável não pensar se algum dia faria parte de uma cena tão bonita quanto aquela sem achar que era errado se apaixonar. Só queria a simplicidade de noites regadas de olhares doces, sem a sensação de que aquele seria o último beijo e que declarações não fossem feitas pelo medo de perdê-lo, de dizer antes que fosse tarde demais.
Mordia a ponta do pincel e a pintura ainda o incomodava, quase como aquela descartada o fizera sentir, pois parecia que era Jimin ali, mas ainda não era. Ou pior, era ele na fluidez da aquarela, com seus traços frágeis ameaçando desmanchar-se com qualquer nova gota d'água, como se Jimin sempre estivesse escapando entre os seus dedos.
Antes de descartar mais um dos papéis, viu de relance Nanquim espreguiçando-se por debaixo dos lençóis e então se lembrou da tinta que sempre fez parte dos seus desenhos. Procurou pelo pequeno frasco sem muito ânimo, pois para si, tudo estava perdido e não valia o esforço.
Checou se a folha estava suficientemente seca e mergulhou as cerdas do pincel mais fino que possuía na tinta, começando a traçar os cílios curvados para baixo, o contorno dos olhos de quem o olhava tão apaixonado. As íris ganharam vida e, de repente, Jeongguk precisou se afastar antes que manchasse a pintura com o choro saindo em soluços sacudindo o seu peito.
E era quando a falta dele batia forte daquele jeito que Jeongguk mergulhava em toda a sua insanidade e criava mundos paralelos onde Jimin não existia, onde o seu corpo não doía de saudades e todos os dias eram iguais. Mas Jimin era real, muito mais do que a pintura conseguia mostrar. Estava lá, do outro lado da cidade pensando em si, querendo-o tão perto quanto Jeongguk o queria e, no fim, insano era querer que ele fosse imaginário.
Fungou e passou as mãos pelos olhos, notando a irritação das pálpebras avermelhadas devido a todo o atrito constante. Levantou-se sem saber se era por obrigação ou motivação, as roupas foram jogadas no corpo sem se atentar ao que vestia, as chaves no bolso como em todo o repetitivo e maçante filme da sua vida, mas, no fundo, Jeongguk tinha esperança de que ir até a Persona buscar um pouco mais de droga, fosse trazer Jimin de volta.
Uma ironia, já que foi aquilo que o levou embora, mas se tivesse algo que pudesse consertar as coisas, seria quitar a maldita dívida que tinha com Baekhyun e, quem sabe, se ver livre dele.
Dirigiu até o local sem muitas expectativas, sabia o que deveria fazer ao chegar e ao sair, até conseguia prever o que Jooheon falaria quando chegasse ao caixa com a sua tinta de cabelo. Mas antes de pisar no primeiro degrau da entrada, o seu celular vibrou, retirou-o do bolso traseiro e viu que era uma ligação de Hyunah.
— Fala, pequena — Jeongguk atendeu, sorrindo pela primeira vez em muitos dias. Adentrou a loja e sentiu o ambiente quente devido ao aquecedor.
— Estava aqui pensando em fazer a raíz do meu cabelo... — choramingou, do outro lado da linha, e Jeongguk podia imaginá-la enrolando uma mecha entre os dedos, analisando o tom e a maciez dos fios.
— Hm... — resmungou, brincalhão, em resposta e uma sensação boa preencheu o seu peito de repente. Hyunah tinha aquele efeito sobre si. Com ela, não parecia que o mundo estava desmoronando.
— Só que eu não tenho os produtos, daí queria saber se você está na rua e se pode trazê-los para mim.
— Para a sua sorte, eu estou na Persona agora mesmo. — Caminhava livremente pela loja e acabou pegando uma cestinha, a alça de plástico pendurada em seu antebraço. — O que você quer? O mesmo de sempre, ou algo mais refinado?
— Se for de graça, algo que as loiras da tevê usam, se eu tiver que pagar depois, então é o mesmo de sempre.
Jeongguk gargalhou enquanto analisava os diferentes tipos de pó descolorante, pegando o mais caro que havia.
— Pode deixar que hoje você terá cabelo de k-idol — prometeu, enquanto andava pela loja, sua risada morrendo aos poucos quando pegou um dos frascos de tinta fantasia, o mesmo que sempre tingia o seu cabelo de rosa flamingo, e se encaminhou para o caixa com o restante dos itens.
— Isso é uma promessa do meu digníssimo cabelereiro? — Hyunah disse, entrando na brincadeira, mas não obteve resposta, apenas ouvia o apito do leitor de código de barras ao fundo e a música pop emitida pelos altos falantes. Franziu as sobrancelhas e decidiu desligar, Jeongguk não estava em uma loja qualquer e algo podia ter acontecido. Ansiosa, repousou o celular sobre o peito e fez a única coisa que podia naquele momento: esperar.
Do outro lado da linha, Jeongguk encontrava-se parado a uma certa distância do caixa, encarando a ausência de Jooheon finalmente percebida. Seu coração errou uma batida e foi como se tudo ao redor estivesse em câmera lenta.
Os olhos grandes vagaram pela loja, tentando encontrá-lo em algum canto e se convencer de que o que latejava na mente não era real, mas nada encontrou. Com os lábios entre os dentes, caminhou até o caixa e não precisou dizer uma só palavra, o vendedor que ali estava despejou sem maiores apresentações:
— A sua merda não tá aqui.
— Onde está Jooheon? — Encarou os olhos do desconhecido, as pálpebras profundas graças à sombra marrom que usava. A boca em um vermelho falso não condizia com as palavras ríspidas que dali saíam.
— Onde você deveria estar — disse, entredentes, tentando conter o tom de voz. O incômodo da presença do traficante estampado nas veias da sua garganta. — Atrás das grades.
— Só coloca isso aqui em uma sacola, por favor — respondeu, sem querer prolongar aquilo, não obteria respostas significativas. Empurrou a cesta na direção dele e o assistiu passar o leitor de código de barras nos produtos e os jogar de qualquer jeito dentro da embalagem.
— ₩5500. — Colocou a sacola sobre o balcão e olhou com desprezo no fundo dos olhos de Jeongguk, esperando pelo pagamento.
— Vai se foder — disse, espontaneamente, agarrando a alça da sacola e dando as costas, pronto para sair dali.
— Eu vou chamar a polícia! — o vendedor disse, mais alto, chamando a atenção dos demais.
Jeongguk parou de repente e voltou para o caixa, sussurrando com os seus olhos ardendo em ódio.
— Chama. — Lambeu os lábios, chegando cada vez mais perto do atendente e ele, por sua vez, recuou, o corpo protegido pelo balcão entre os dois. — Pode chamar, pois se sabe de tudo e não diz nada, você é um maldito cúmplice.
Assistiu de perto a feição do homem mudar, os olhos estáticos com a percepção de que fazia parte de um crime caindo como a delicadeza do tom de voz de Jeongguk, saindo da loja sem acreditar que o seu dia tinha, sim, como piorar. Entrou na caminhonete e deixou as janelas fechadas, o coração palpitava forte no peito, odiava conflitos.
Sem pensar direito, pegou o celular e só então se lembrou de que conversava com Hyunah, mas a ligação já havia sido finalizada. Dispensou as notificações das mensagens de Namjoon e procurou às pressas o número de Baekhyun, sentindo o seu batimento cardíaco nas têmporas e a respiração forte em seus ouvidos junto ao interminável som do telefone chamando.
— Ah, finalmente foi até a Persona. — Ouviu a voz do outro lado da linha e fechou os olhos com força, tentando ter um pouco de paciência.
— Por que não me avisou que ele não estaria aqui? Por que não me disse que ele foi preso?
— Acabei esquecendo, seu deslocamento não é a minha principal preocupação no momento — Baekhyun respondeu em tom despreocupado, fazendo a ligação chiar com o seu suspiro profundo. Jeongguk fechou a mão livre em punho, mal acreditando no que ouvia. — Você sabe, o que eu posso fazer pra te proteger, eu já faço
— Eu também não me importo se saí de casa à toa, eu só quero saber o que você não fez por Jooheon! — Sem tentar controlar o que saía da boca, Jeongguk rebateu.
— A culpa não é minha se a polícia decidiu ser honesta agora — Baekhyun disse, deixando escapar um riso debochado, que logo foi substituído pela sua típica voz densa. — Ele foi buscar pela droga, como você fez uma certa vez... Só que agora não deu pra salvar um grama sequer.
— E nem Jooheon... — concluiu, quase sem acreditar. Agarrou a raíz dos cabelos e bufou, quase sentindo o cheiro de peixe impregnado nas mangas do seu moletom daquela ocasião.
— Apreenderam a minha droga! Eu pago uma fortuna para aqueles malditos policiais me deixarem trabalhar em paz e nem para isso eles estão servindo — Baekhyun interrompeu os seus pensamentos com um surto histérico. — Eu ainda não sei como vou conseguir burlar essa fiscalização, então, por enquanto, não temos muita coisa. Fique atento, qualquer hora eu te chamo e você vem aqui buscar.
Ouviu a chamada muda e deixou que sua mão repousasse sobre o colo sem muita reação, segundos se passaram em inércia até a tela do celular apagar-se, escorregando para o lado. Era incrível como o mínimo contato com Baekhyun o deixava enojado, sabia que a sua vida não era importante, mas ouvir com tanta clareza as contradições da fala dele, causava-lhe revolta.
E esse era um sentimento do qual Jeongguk não sabia como externar porque não tinha o que fazer. Afinal, o tráfico o fazia ter um destino: ou era a prisão – como no caso de Jooheon, Bogum, Loco e tantos outros –, ou a morte.
Ouviu os ruídos da própria respiração pesada e não conseguiu evitar de socar o volante da caminhonete, furiosa e desesperadamente. Sua rotina havia mudado, Jooheon não estaria mais na Persona e nada daquilo parecia ser importante para alguém. Baekhyun não se importava com a sua vida, apenas com os entorpecentes que escaparam das suas mãos, e a sua ausência era apenas um incômodo facilmente solucionado. Havia outros para substituí-lo.
Eles eram descartáveis e aquilo doía em seus ossos, ninguém deveria achar isso de si mesmo. E era ali que ele se martirizava com mais uma crise de choro, seu corpo explosivo e repelindo qualquer tipo de controle, pois para onde olhava, Jeongguk apenas via fogo. Nada brilhava, só queimava.
Queria que Jimin estivesse ali. Com ele, tudo parecia menos pior, mas agora, ele era apenas uma adição às suas dores.
Ouviu o zunido do celular vibrando no banco e viu o nome de Namjoon pulando na tela. Colocou as mãos no volante e fitou a rua movimentada, concentrando-se no som perturbador para se acalmar, capturando qualquer movimento da vida alheia, qualquer coisa que não fosse aquilo que pulsava sem pausa na alma.
Foi só depois de respirar profundamente que Jeongguk girou a chave na ignição e seguiu em direção ao apartamento de Hyunah. Namjoon já havia desistido de falar consigo.
Bateu na porta dela e logo viu a cabeleira loira à sua frente, os olhos apreensivos para saber o motivo da ligação ter ficado muda tão de repente.
— Aconteceu alguma coisa? — Deu passagem para Jeongguk, que lhe ofereceu a alça da sacola rosada com letras em alto relevo, e logo se jogou no sofá, afundando-se entre as almofadas de variadas cores.
— Aconteceu.... — Suspirou, ao que abraçava uma almofada com estampa de bolinhas e olhava para o teto. Até parecia um pouco despreocupado, mas no fundo, o que Jeongguk queria mesmo era esquecer tudo o que estava prestes a contar. — Aconteceram muitas coisas nesses últimos dias.
— Você quer falar sobre isso? — Hyunah deixou a sacola de lado e sentou-se em uma poltrona antiga que havia reformado, sem conseguir relaxar a postura.
— Acho que você é a única pessoa com quem eu quero falar.
Sentou-se e a encarou no fundo dos olhos, algumas lágrimas escapando dos seus enquanto lhe contava todos os passos que o levaram a estar ali: de coração destroçado, com a estranha sensação de que o seu amor fora levado para longe de si, mesmo que tudo tivesse sido parte de um acordo mútuo, sabendo que sofreriam pela ausência do outro e que seria melhor assim.
E contou sobre o atendente da loja, e sobre Baekhyun e Jooheon. Da raiva que substituiu a apatia e de como o Jeongguk que mandou o estranho se foder se parecia muito com o Jeongguk que ele queria ser. Destemido, com coragem de jogar algumas verdades na cara de quem merecia e questionar o que nunca lhe foi permitido.
— É estranho saber que ele está atrás das grades agora. — Enxugou as lágrimas com a manga do moletom e cobriu a rosa que decorava o dorso da sua mão, como fez naquela noite em que os dois quase tiveram o mesmo destino. — No fundo, eu queria que ele soubesse que eu me importo.
— Talvez ele saiba.
Jeongguk observava o apartamento modesto de Hyunah, quase igual ao seu se não fosse a decoração de quem se incomodava demais em parecer ter um lar. As janelas com cortinas de renda, a cama bem arrumada podia ser vista ao fundo, revistas de decoração enfeitavam a mesa de centro e ele conseguia ver as pequenas referências em alguns cantos do cômodo. A poltrona bem envernizada que ela se sentava, o tapete macio que esquentava os seus pés e as paredes com formas geométricas pintadas em tons pasteis.
Tudo aquilo era uma parte expressiva de Hyunah e Jeongguk se sentia grato por estar ali, com ela, mergulhado em toda a sua essência, expondo os seus sentimentos para quem os entendia. Jeongguk era grato por ter a quem mostrar toda a sua vulnerabilidade.
— E talvez isso seja bom pra ele — ela concluiu. — Saber que existe uma pessoa que nem era tão próxima assim, mas que a ausência dele significou algo na rotina alheia.
— É por isso que não se deve fazer amigos criminosos. — Jeongguk arqueou uma das sobrancelhas e até tentou rir zombeteiro, mas não conseguiu. Não olhando para as íris tristes de Hyunah ao completar: — Um dia eles se vão.
— Promete pra mim que vai se cuidar? — pediu, logo em seguida, ainda sem conseguir se mover na poltrona, apesar de pedir do fundo do coração, como se cada ação que levasse aquele pedido a não ser realizado doesse em cada célula do seu corpo. — Você é a única pessoa que eu tenho. Você é o único com quem me importo.
Jeongguk abaixou o olhar e entrelaçou os dedos, incapaz de fazer uma nova promessa, pois aquilo não dependia apenas de si. Parecia estar em um jogo de tabuleiro qualquer, dependendo apenas dos números de um dado viciado, o qual nunca apontava para algo positivo. Podia virar a esquina e algo terrível acontecer e, infelizmente, Jeongguk não ficaria surpreso com o roteiro previsível de sua história.
— Se algum dia tudo isso se resolver, você sai comigo daqui? — Jeonguk perguntou, voltando a buscar por seu olhar.
— E pra onde a gente vai?
— Sei lá... Pintar o cabelo de preto? Fazer a tatuagem que você tanto queria, alugar um apartamento no subúrbio e sair pra trabalhar? Amar alguém sem peso na consciência... — Suas palavras se engasgaram na garganta e ele viu o mesmo brilho melancólico nos olhos de Hyunah. A imaginação não era boa para aqueles que não podiam sonhar.
— Eu queria... — A loira mordeu os lábios e recostou-se na poltrona, abraçando a almofada que estava em seu colo, finalmente relaxando e deixando que algumas lágrimas pintassem a sua pele pálida. — Eu queria uma casa com paredes, fechar a porta do meu quarto e não sentir o cheiro de fritura nos meus lençóis.
Jeongguk sorriu terno ao ouvir os desejos de sua amiga, o simples tornando-se extraordinário.
— Uma vez eu disse ao Jimin o motivo de desenhar tantas flores — disse, parecendo aleatório.
— Dessa nem eu sei — Hyunah comentou, enrolando a franja da almofada entre os dedos.
— É porque eu já espero tanta coisa da vida e não quero ter de esperar pela primavera — respondeu à pergunta não feita, lembrando-se de como foi boa a sensação de ter alguém notando cada mínimo detalhe da sua existência, decorando cada nuance daquilo que o formava. — Então eu acho que é isso. Eu só queria não ter de esperar tanto.
— O tal do "vai passar" não te consola mais, certo? — Suspirou profundamente e pelo horário, o sol deveria estar batendo alaranjado na sua janela com cortinas bonitas, mas se contentou com aquela luz nublada que trazia sombras escuras para a sua sala de estar.
Jeongguk riu soprado antes de responder o óbvio: — Não. Não sei se tem como superar isso algum dia. Foi só... — Precisou parar e conter o nó que nunca abandonava a garganta. Deixou de observar as formas que havia no tapete e, olhando no fundo dos olhos de Hyunah, confessou como se ela não soubesse. — Foi a coisa mais linda que já me aconteceu.
Hyunah se tornou uma mistura de sorrisos e choro ao encarar a doçura do seu amigo e a dor que ele sentia, expressa em cada palavra dita
— Gostaria de tê-lo conhecido — comentou, baixinho, e, de repente, o silêncio foi rei, pois Hyunah não tinha palavras para consolá-lo e Jeongguk não sabia se conseguia acreditar em um futuro onde o encontro aconteceria.
Fechou os olhos por um instante e conseguiu sentir o aroma de jasmim no ar, quando os abriu, percebeu que havia um sachê de chá dentro da caneca esquecida na mesa de centro. Apoiou os cotovelos nos joelhos e colocou o papel que estava na ponta do barbante entre os dedos, analisou o logo da marca enquanto o aroma fazia-se mais presente em suas narinas e as suas memórias com Jimin pareciam cada vez mais vívidas, mesmo que não fosse a tal da calmomila ali.
— Quer um pouco de chá? — Hyunah perguntou, enxugando as lágrimas do rosto, levantando-se pronta para colocar a água para ferver, pegando a caneca e levando o aroma para longe.
— Na verdade, queria algo mais forte — confessou, pois se afundasse o nariz no vapor com cheiro de jasmim e provasse do sabor doce, clamaria pelo nome de Jimin e não tinha mais forças para escapar dos pedidos do seu corpo.
— Algo mais forte? — Inspecionava os seus armários, já sabendo pelo o que procurava, logo tendo em mãos uma garrafa de vodca com o rótulo escrito em caracteres russos.
— Onde você arranjou isso? — aproximou-se, a mão grande contornando a garrafa para analisar melhor a embalagem.
— Peguei emprestado de um cliente — disse, despreocupada, colocando dois copos de shot sobre o balcão da cozinha. — E eu não pretendo devolver — confessou, arqueando as sobrancelhas, e as mãos em concha no queixo, esperando que Jeongguk a servisse.
— Quer beber agora mesmo ou quer pintar o cabelo primeiro? — perguntou, desenroscando o lacre, o cheiro de destilado do bom substituindo o doce de jasmim e, por algumas horas, era daquele lado que Jeongguk queria ficar.
— Deixa pra depois, hoje eu quero beber sendo a Hyunah acompanhada do meu amigo Jeongguk. Amanhã, quem sabe. — Deu de ombros, indo ligar as lâmpadas do apartamento que ficava escuro.
— Eu peguei a minha tinta, mas não sei se vou pintar o cabelo — disse, enchendo os copos e fechando a garrafa.
— E por que não? — Tirou as banquetas de baixo do balcão e sentou-se, Jeongguk logo fez o mesmo.
— Parece estranho, mas eu me vejo melhor no espelho quando o rosa desbota e a raíz aparece, pois é a única mudança que eu vejo com o passar do tempo. — Fitou o próprio reflexo no vidro da janela e percebeu que o dia estava chegando ao fim. — Se pinto o cabelo, é como se eu regredisse.
— É por isso que você não reforma o seu apartamento? — Deitou o tronco sobre o balcão e, com a cabeça apoiada em uma das mãos, olhou para a janela e se viu ao lado de Jeongguk, desejando que as suas palavras não fizessem tanto sentido, que aquilo não se aplicasse na forma como também vivia.
— Sim. — Virou-se para ela e lhe empurrou um dos shots. — Lar é para onde corremos no fim do dia e não é em um apartamento mofado onde eu quero estar. Se eu reformá-lo, vou deixar de achar que o que eu faço é apenas temporário.
— Você parece ser mais esperançoso do que eu.
Ouviu o copo se arrastar pela imitação de mármore, mas apenas olhou ao redor do seu apartamento. As paredes foram recentemente pintadas, os tapetes lavados, a cama sempre arrumada e o espelho do banheiro foi trocado. Decorava com o que podia e por mais que fosse simples, era apenas uma tentativa de se sentir em casa, no entanto, nada ali era aconchegante para si. Parecia estar vivendo em um lugar que não era seu, as estrelas não pareciam tão bonitas vistas dali.
— Eu vivo tentando me conformar com o que mais me incomoda e esse apartamento é a prova viva disso.
— Acho interessante que lidamos com as coisas de formas diferentes. — Jeongguk sorriu e pegou o seu shot, erguendo-o no ar, esperando que Hyunah se juntasse a si.
— Infelizmente, os seus motivos e questionamentos me perturbam. — Ergueu o próprio copo e completou, quase implorando em brincadeira. — Por favor, me deixe viver no meu mundo imaginário, pare de escancarar a realidade na minha cara.
Jeongguk gargalhou e pediu desculpas, fazendo os copos tilintarem em um brinde: — Ao nosso mundo imaginário.
Sentiram a garganta arder e o peito aquecer, mas, estranhamente, a língua não amarrou e aquela era uma nova sensação, tão acostumados a beberem do pior tipo de destilado. E então, essa foi a conversa que se seguiu, de como a vodca era boa e as reações que tiveram ao beber das mais baratas. As gargalhadas preenchiam o ambiente, assim como a música animada que foi colocada apenas para dissipar o eco de suas vozes.
Até parecia que suas vidas eram perfeitas daquela perspectiva. Amigos que bebiam sem tocar no nome de seus amores, sorriam como se seus corações não estivessem partidos e cantavam como se não fossem desafinados.
Olhando dali, Jeongguk jamais diria que Hyunah fazia o que fazia, era quase como se conhecesse a sua versão de antes. Antes de Seul, dos casacos pesados que escondiam o seu corpo no início da noite e da sua pele imaculada ganhando marcas que não queria ter ganhado.
Engolia a vodca em goles grandes e em vez da visão ficar embaçada, Jeongguk apenas conseguia perceber que ela havia se tornado o seu refúgio, sem saber exatamente como e quando. Tanto que parecia que ela nunca deixara de estar ali, com seus coturnos gastos, batom vermelho, cigarro na boca, cabelo em cachos largos e histórias que pareciam muito com as suas.
No entanto, a Hyunah que sempre via na rua não era nada parecida com aquela que estava à sua frente. Seu cabelo estava liso e a raiz escura, aparentemente oleosa. Cada pé estava calçado com uma meia diferente, mas as cores pasteis prevaleciam, nada combinando com o cigarro em sua boca, o cinzeiro sobre a sua coxa coberta pelo moletom largo enquanto mais um shot de vodca era colocado para dentro.
Depois de um balde de frango apimentado ter sido devorado por Jeongguk, que de antemão disse não ter fome, a música animada deu vez para os indies melancólicos que ele tanto tentava fugir e vai lá saber o que Hyunah pensava enquanto ouvia Norman Fucking Rockwell ao tragar profundamente o seu cigarro enquanto olhava para o nada.
Decidiram acomodarem-se na sala e as cinzas escapavam do cinzeiro e caíam em sua calça, mas o cilindro se mantinha entre os seus dedos, pois a boca estava ocupada em cantar cada frase de hope is a dangerous thing for a woman like me to have. Jeongguk observava calado, sem qualquer dúvida de que Hyunah sabia exatamente o que cada uma daquelas palavras significava, como se a música tivesse sido escrita para ela.
Com a boca seca, ela se serviu de mais vodca e com a voz grogue, brindou dizendo: — Bebo por ti.
O copo de vidro estalou na madeira da mesa de centro e ela voltou a se recostar no sofá, os olhos fechados e os lábios úmidos, o silêncio se fazendo presente após o álbum ter chegado ao seu fim. E então, Jeongguk, que estava mais sonolento do que bêbado, sentiu que a própria tristeza não havia sido afetada apesar de tantos shots de vodca, pois mais parecia que ela havia chegado ao seu limite, ou, quem sabe, eram os assuntos aleatórios que conversavam que faziam aquele aperto dissipar. Mas aquela maldita frase dita de modo tão repentino logo fez pulsar um nome em sua cabeça e ele só não queria se afundar novamente.
— Por mim? Não precisa... Acho que você já tá bem bêbada, na verdade. — disse, apenas para tentar mudar de assunto, mas Hyunah respondeu exatamente o que ele havia pensado.
— Não, por alguém... Sempre é por alguém.
— E esse alguém tem nome?
— Não sei pronunciar, ele é alemão, era... Não sei se tá vivo — Hyunah soluçou, amassando a ponta do cigarro no cinzeiro. — Uma vez, na cama, ele quis brindar comigo com o champagne mais caro que eu já tomei e disse algo no idioma dele que eu não entendi. Quando perguntei o que era, ele olhou bem no fundo dos meus olhos e respondeu: "bebo por ti". — Estalou a língua no céu da boca e negou com a cabeça. — Eu sei que não era por mim, mas eu quis fingir que sim.
Jeongguk, jogado no chão com as costas apoiadas no sofá, entendia todas as nuances que a fala de Hyunah possuía e desejou, silenciosamente, que ela deixasse de ser a única que bebia por alguém, pois essa não era uma dor fácil de ser carregada, mesmo que ela parecesse estar mais do que acostumada. Quase convencida de que o seu copo estaria sempre cheio e o do outro, tão vazio.
Abriu a garrafa de vodca novamente e serviu-se com mais uma dose. De fato, não queria mais beber, mas a sua cabeça bêbada entendia que precisava fazer aquilo por Hyunah e assim, disse logo antes de virar o shot: — Bebo por ti.
— Bela tentativa. — Hyunah riu soprado olhando para baixo, mal conseguindo disfarçar a sua tristeza — Você não bebeu por mim... Só fez igual o alemão.
E levantou-se, deixou o cinzeiro no sofá, caminhou até a cama, cobriu-se com o edredom e adormeceu em questão de minutos. Não se lembraria do que disse depois que o frango acabou.
Já Jeongguk, ficou ali em pausa, absorvendo a ideia de que nada poderia fazer para amenizar a dor alheia, tal como Hyunah nunca tentou fazer com as suas. Ela apenas o perguntava se podia fazer alguma coisa para ajudar e quando a resposta era não, ficava por perto para se certificar de que não tinha como piorar, exatamente como naquela noite.
Apertou as pálpebras, cansado de fazer tudo errado. Levantou-se para arrumar a pequena bagunça que haviam feito na sala, lavando os corpos e deixando a garrafa no balcão da cozinha, o cheiro do tempero do frango finalmente saindo dos seus dedos.
Sentou-se no sofá e agora que não tinha mais distrações, a falta que Jimin fazia voltava a ser tão lancinante que se fazia presente até em um lugar onde nunca esteve. No entanto, Jeongguk não conseguia voltar para o próprio apartamento, era melhor ficar ali do que encarar a bagunça de uma ausência sem prazo para acabar.
Talvez nunca tivesse bebido por Hyunah mesmo.
O seu suspiro profundo e audível abafou o primeiro vibrar do celular, mas o segundo fez os seus olhos revirarem ao pensar que era Namjoon, mais uma vez, tentando falar consigo. Mas nada o preparou para aquele olhar despreocupado para a tela e ver o nome de sua mãe vibrar não somente o aparelho, mas também o seu corpo em um frenesi incalculável.
Pegou o celular e não estava acreditando que ele continuava a tocar em uma insistência que claramente não era fruto de um engano. Eunbi queria mesmo falar consigo.
— Alô? — atendeu, com a voz trêmula, o álcool em sua corrente sanguínea havia evaporado, tão forte o seu coração batia.
— É... Oi. — Ouviu a voz de sua mãe do outro lado da linha e não conseguiu segurar as lágrimas que escaparam dos seus olhos. Talvez fosse melhor assim, o nó na garganta deixaria explícito que estava chorando de saudades daquele jeito pausado que ela falava. Ele se lembrava de cada mísero detalhe dela. — Jeongguk?
— Sou eu, mãe — respondeu, em confusão, sem saber o que dizer logo a seguir tamanha a desconfiança. Pois mesmo com a saudade, não conseguia ficar feliz, por que só agora retornou as suas ligações? Por que estava ligando aquela hora da madrugada?
— Ah... — Ouviu um suspiro que parecia ser de alívio e, ao fundo, o chiar forte do vento característico do mar. Até poderia pensar que ela estava na praia, mas o tilintar do sino de vento fez ele perceber que não. Parecia que nada havia mudado por lá, além da sua ausência. — Bom saber que você está bem.
— É, eu estou bem, mas... — Não conseguia concluir. Não sabia nem qual foi a sua última tentativa de falar com ela, parecia que anos tinham se passado e o contato repentino era um tanto quanto estranho.
— Mas... — O riso nervoso dela foi o último som escutado antes de ouvir a porta ser fechada e a voz ser a única presente na ligação. — Mas por que eu estou ligando agora, não é?
— É, por quê? Por que agora e não meses atrás?
— Bem... Você parou de depositar o dinheiro e eu–
Eunbi tentou explicar, mas Jeongguk a interrompeu, o coração partindo-se em vários outros caquinhos ao perguntar de volta:
— A senhora tá me ligando pra pedir dinheiro?!
— Não! Não é isso. — Eunbi parecia desesperada só com a ideia de ser mal interpretada. Jeongguk não podia pensar isso de si, já estava imensamente arrependida de tudo o que fizera. Causar mais dor em seu filho seria ter de lidar com o féu presente em sua boca todos os dias, ela só queria tentar fazer a coisa certa dessa vez. — É que com o dinheiro eu tinha um sinal de vida seu, sabia que estava bem, trabalhando... Enfim, só agora tive coragem de ligar, não sabia se iria me atender.
— Eu sempre vou te atender, mãe. Eu só não sei o que dizer a partir daqui — respondeu, as sobrancelhas franzidas sem saber se acreditava em tal justificativa, mas, no fundo, achava que merecia se agarrar a algo bom, já que tudo ao redor era retirado dos seus braços. Se aquela ligação seria como areia, só o tempo responderia.
— Quem precisa dizer alguma coisa agora sou eu, mas eu não queria ter essa conversa por telefone. Queria que você enxergasse nos meus olhos o quanto eu me arrependo de ter te colocado para fora... Que mesmo de longe, você nunca deixou de ser a única pessoa que eu tenho.
Jeongguk ouviu o que foi dito, mas não sabia como absorver. Esperou tanto por qualquer contato da parte dela que agora não sabia o que fazer. E por acreditar em seu arrependimento e imaginar o que a sua ausência causava naquela que o tinha como família, disse em seu típico tom manso:
— A senhora não merece ser tão sozinha.
Aquilo foi capaz de arrancar lágrimas de Eunbi, ouvidas através do telefone. Jeongguk não era como ela e nem se sentia no direito de achar que fazia parte de quem ele havia se tornado, pois o abandonou justamente quando as suas ideias sobre o mundo estavam se formando. E inocentemente, pensou que o mundo havia sido bom com ele, sem saber que o abandono foi o início da sua maior desgraça.
— Acho que eu só colhi o que plantei — respondeu, conformada, consciente de suas escolhas e erros. — Enfim... Acho que agora sou eu que não sei o que dizer.
— Obrigado por ter ligado, achei que isso nunca fosse acontecer. Foi bom saber que ainda se lembra de mim. — Respirou profundamente, não se importando com o peso das suas palavras, pois foi com elas que o seu peito começou a ficar mais leve. Não achava que ela era merecedora da amargura de saber o que causou em sua vida, mas se algum dia ela quisesse se fazer presente, aquilo viria à tona de qualquer forma.
— Desculpa por tudo. Sei que não é o suficiente, mas é o que tenho por agora.
Jeongguk ficou em silêncio sem saber o que dizer, pois, depois de tantas noites pedindo pelo colo dela, não sabia se conseguiria olhá-la nos olhos naturalmente. Tinha muito o que assimilar, a distância e a indiferença tiveram os seus efeitos e não havia porquê se culpar.
— Já é muito, acredite.
— Fica bem, Ggukie.
E assim, a ligação foi encerrada sem uma devida despedida, ou um "te ligo depois", tão mal acostumados a terem o outro em suas vidas. Os sinais de que existiam deixaram de ser apenas mensagens de caixa postal de ligações não atendidas, ou depósitos bancários que aconteciam uma vez ou outra. Foi um telefonema de verdade, com coisas entaladas ditas apesar da distância.
E agora, Jeongguk não sabia o que fazer. Ainda sentado no sofá, encarava a tela como se duvidasse do que havia acabado de acontecer. Sabia que tinham muito o que conversar, mas, por enquanto, aquilo bastava. Precisava encontrar um ponto de paz em tamanha tempestade, pois até o pior dos comandantes encontrava noites mais amenas.
Não se assustou quando uma imensa vontade de contar tudo para aquele que nunca abandonava os seus pensamentos surgiu, pois Jimin era muito mais do que o seu namorado, era o seu amigo também.
Navegou até o seu contato e leu as últimas mensagens enviadas, observou a foto do perfil e buscou por qualquer vestígio de que ele estava do outro lado da tela, mas não havia nada, já era tarde da noite. A vontade de digitar qualquer coisa o corroía por dentro, mas mostrar o quão mal estava por estar longe dele não parecia ser o certo a se fazer.
Jogou o celular para longe e andou em direção à cama, aninhando-se nos cobertores cheirosos de Hyunah e enfiando a cabeça por baixo dos travesseiros, consciente de que o sono demoraria a chegar e preferindo ficar do lado são da sua mente. Aquela que não piorava o que começou, que extinguia o seu egoísmo e escolhia somente o que fizesse bem a Jimin.
E era assim que Jeongguk cuidava do seu amor, mesmo de longe, esperando que o tempo trouxesse muito mais do que o seu passado de volta, mas, também, aquele que nunca deveria ter saído de seus braços.
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