22. Aquarelas escuras
A medida que o sol se erguia no céu da Ásia, o único cômodo assumia tons amarelados devido ao papel pardo na janela. Mesmo que lá fora a temperatura fosse mais amena, ali dentro sempre era quente. Os corpos deitados no chão eram refrescados pelo ventilador velho que girava, quando os primeiros raios solares clarearam a escuridão, Jimin se virou para o outro lado e pela primeira vez não pensou duas vezes antes de se aninhar ao peito de quem estava ali. Sabia muito quem ele era, seu nome e sobrenome, sonhos e vontades, sabor de pizza preferido.
Achou estar sonhando quando o alarme do celular tocou e por isso deixou que ele se desligasse sozinho, voltando ao mundo dos sonhos com o cheiro de Jeongguk o fazendo companhia. Se quisesse, era só abrir os olhos para viver seu sonho no mundo real, mas Jimin estava com muita preguiça naquele momento.
Jeongguk acabou acordando, tanto pelo barulho, quanto pelo abraço apertado que recebeu de repente. Abriu as pálpebras lentamente, como se checasse a veracidade dos acontecimentos da noite anterior, o coração até batendo mais acelerado ao sentir o cheiro do cabelo de Jimin ali, tão perto. Esticou a mão em frente ao rosto para olhar mais uma vez para aquele anel, tão dele e agora todo seu, se permitindo sorrir ao sentir a respiração calma bater em sua pele. Passou a mão decorada pelas costas do mais velho, sentindo a palma ondular pelas curvas do corpo até encontrar o lençol e constatar que ainda estavam nus.
O celular tocou novamente, interrompendo seus devaneios matutinos, mas ganhando um abraço mais apertado e ouvindo murmúrios incompreensíveis. Jeongguk desligou o alarme, beijou a testa e roçou o nariz carinhosamente ali, sentindo o cheirinho gostoso que só Jimin tinha.
— Neném, tem algo de importante na faculdade hoje? — A voz era grossa e um tanto arrastada. Torcia para que não, queria ficar mais tempo com ele ali daquele jeitinho.
— Só uma prova. — Respondeu preguiçoso e logo sentindo a falta do calor de Jeongguk, que se levantou em um único movimento, assustado.
— Em qual horário?
— O primeiro. — Se virou de costas e tentou se espreguiçar, mas logo sentiu as consequências da noite agitada e acabou choramingando sem qualquer arrependimento ao se lembrar de como Jeongguk realmente o fez gemer sem piedade.
Logo as lembranças o levaram em direção à forma como acordaram no meio da madrugada apenas para fazerem amor de novo, sem qualquer palavra dita, pois sabiam que o desejo dominava suas ações. Jeongguk gemendo baixinho em seu ouvido enquanto fodiam de lado era música para os seus ouvidos. Estavam tão cansados que pegaram no sono naquela mesma posição e foi tão bom que Jimin começava a duvidar se seria capaz de conseguir dormir sem o tatuado tão colado a si.
— Então levanta, vai tomar um banho, a gente tem que passar em algum lugar pra você comer ainda. — Jeongguk perambulava agitado pelo apartamento à procura de suas roupas, mas Jimin só rolava pelo chão sem qualquer vontade de viver longe dali.
Mas quando a hora começou a passar rápido demais, ele se levantou para finalmente ir ao banheiro. E aquela sensação de que não queria ir embora aquecia o seu peito, tanto que apreciava cada pequena ação sua naquele apartamento, querendo gravar até mesmo como a água do chuveiro caía em sua pele, o cheiro das toalhas e o seu reflexo no espelho acompanhado de Jeongguk ao escovarem os dentes. Cada cantinho ali tinha um pedaço do tatuado e ele queria guardar cada um deles.
Saiu do banheiro com a toalha enrolada na cintura, viu suas roupas dobradas na cama e arqueou as sobrancelhas para o mais novo, já pronto para sair e colocando comida para Nanquim: — Se acalma, homem.
— Eu não quero ser uma má influência. — Deu de ombros exibindo uma falsa postura relaxada, o que fez Jimin gargalhar com tal ideia, mesmo que ele falasse muito sério.
— Me empresta uma camisa? Seria pedir demais por uma cueca? — Fez um biquinho pensativo enquanto fitava as próprias roupas, mas como não obteve resposta, olhou para Jeongguk e o viu de braços cruzados e olhos semicerrados. — O que foi?
— Jimin, você precisa devolver as minhas roupas.
O mais velho riu novamente e se aproximou, abraçando-o e enchendo o pescoço do tatuado de beijinhos. Seu corpo foi abraçado, as mãos quentes na pele ainda fria e o murmúrio manhoso no pé do seu ouvido o arrepiaram.
— É que eu gosto tanto do seu cheiro. — Seus beijos seguiram rumo a boca que pintava um sorriso pequeno e sem que precisassem pensar, suas línguas se encontravam sem cerimônias, misturando o sabor de menta do creme dental e o desejo de que não houvesse nenhuma prova para ser feita. O beijo era lento como se daquela forma pudessem prolongar aqueles poucos minutos da manhã, sentindo na palma da mão o corpo de Jimin se esticar para alcançar seus ombros. Mas sabiam que não podiam demorar muito.
— Mas agora você me tem o tempo todo, é só chamar que eu apareço pra ganhar um cheiro no cangote. — Jeongguk segurou as bochechas de Jimin e apertou os lábios, dando um último selo antes de se afastar – com muito esforço – e mandá-lo se vestir de uma vez, com direito a um tapinha na bunda.
Tentou achar alguma camisa menor, já que a maioria era grande até mesmo para si e acabou achando aquela com que foi para o show do Bring Me the Horizon. Emprestou também um moletom, pois achava estar mais frio naquele dia e não queria que Jimin ficasse ao léu na rua com os dentes se batendo.
— Você é muito dramático. — Jimin disse retirando o capuz que foi colocado em sua cabeça e o esperou fechar a porta para descerem de mãos dadas.
Quando saíram do pequeno prédio, Jeongguk parou de repente e acenou para Hyunah que fumava na calçada oposta, trajando um sobretudo escuro e a maquiagem um pouco derretida. Ela acenou de volta e olhou para as mãos entrelaçadas dos dois e sorriu genuinamente ao pensar que talvez aquele fosse Jimin, que devolveu o sorriso mesmo que estivesse um pouco confuso.
— Essa é a Hyunah, a amiga que te falei. — Só retomou o caminho para a caminhonete quando a viu entrar no prédio em que morava. — Mas não é um bom momento para apresentações. — Jimin assentiu e entendeu que ela havia acabado de chegar e que não queria se apresentar daquela forma. Não era ela de verdade ali.
E o caminho em direção a uma cafeteria foi feito da mesma forma, com música tocando e carinhos na coxa, mas os dois não eram os mesmos, nem como casal e muito menos como seres individuais. Havia uma aura diferente dentro da caminhonete, a sensação de certeza e de paixão recíproca pairava no ar e, pela primeira vez desde muito tempo, Jeongguk não estava com medo de se sentir feliz, aproveitava cada segundo como se fosse o último, mas sem qualquer receio de que realmente fosse.
E quando pararam no estacionamento próximo ao prédio onde Jimin estudava, suspiraram pesadamente com seus cafés em mãos e aquele silêncio confortável de quem não queriam se separar pairava no ar. Jeongguk se aproximou e limpou a bagunça que existia na boca carnuda repleta de farelos do açúcar do pão que compraram, tentando espanar um pouco com os dedos e o restante com beijos molhados, que arrancavam sorrisos de Jimin e não resistindo, aprofundava-o e sentia o gostinho de capuccino dos lábios do tatuado.
Findaram o beijo e Jeongguk se recostou de lado no assento, seus olhos apaixonados se encontravam com os de Jimin que só conseguia pensar em como as coisas mudaram naquela parte tão específica em sua vida. Agora ele tinha um namorado e mal podia esperar para contar tudo a Taehyung, que com toda a certeza do mundo o chamaria de brega e jogaria certas verdades antigas na sua cara.
— Você precisa ir. — Jeongguk avisou. — Tô preocupado com essa prova, você nem dormiu direito, neném.
Jimin deu um gole bem grande no café e apontou para o copo que segurava enquanto engolia. — Vai dar tudo certo, eu manjo muito de teoria literária, não precisa se preocupar. — Se aproximou para dar um beijo estalado de até logo e perguntou: — Te vejo mais tarde?
— Posso te levar em casa, mas antes queria passar no estúdio dos meus amigos, combinar um dia de você aparecer por lá. — Sorriu nervoso ao ver Jimin engolir em seco e arregalar os olhos.
Então aquilo era namorar? Suas vidas se enroscarem ao nível de seus amigos se conhecerem? Jimin ficou nervoso de repente porque Jeongguk era importante demais para si e conhecer aqueles que o tinham da mesma forma era apavorante. Nutriam carinho pela mesma pessoa e tentavam fazê-lo bem na mesma medida, não tinha como dar errado, ou será que tinha? E se eles não o perdoassem pelo o que havia feito? Céus, ele estava surtando e nem havia nada marcado ainda.
— Não precisa ficar assim, eles são legais. — Jeongguk percebeu o semblante pensativo e tentou acalmá-lo, acariciando-lhe a bochecha. — Leva o seu amigo grandão se quiser, bom que todo mundo se conhece.
E não havia como Jimin ficar tenso com Jeongguk falando daquele jeito, a voz animada e Taehyung sendo chamado de grandão: — Tá bom, meu bem. Vou falar com o Kim Taehyung. — Repetiu o nome pausadamente para dar ênfase e o tatuado sorriu, prometendo não se esquecer, apesar de achar que o apelido se encaixava muito bem.
Se despediram com mais beijos, Jimin se arrastando para a porta e Jeongguk acompanhando-o, as línguas desengonçadas entre os sorrisos que não queriam ter fim. Quando finalmente conseguiu sair da caminhonete, ao invés de seguir de uma vez para o prédio, voltou para o lado do motorista apenas para mais um beijo, último e definitivo, pelo menos daquela manhã. As mãos enfeitadas por anéis eram delicadas no pescoço alheio, fazendo caminho até os fios descoloridos tão lentamente, tirando bucket hat do lugar. Jeon se arrepiava e deixava o beijo se prolongar, chupando o lábio inferior, mordendo-o e deixando a pele escorregar pelos dentes lentamente, e para sarar os lábios maltratados, dava inúmeros selinhos e sentia um sorriso se formar, acabando por sorrir também.
Antes que Jimin pudesse dar início a mais um beijo, Jeongguk o segurou pelas bochechas com apenas uma mão, dando um último selo no bico proeminente e dizendo entredentes, mesmo que não houvesse irritação alguma: — Vai logo, neném!
E choramingando, Jimin se foi. Segurava a alça da bolsa carteiro sobre o ombro e o café na outra mão, andando daquele jeito que Jeongguk tanto gostava. Ele só não esperava que o moreno fosse olhar para trás com aquele sorriso que o desestruturava por completo, piscando um dos olhos enquanto os fios negros como nanquim caíam sobre a testa feito as pinceladas que havia dado dias atrás em seu caderno. Precisava terminar aquele desenho.
Seu coração bombeou forte com tal simples ação, como se tivesse sido a primeira vez que o vira e se apaixonado no mesmo instante. E talvez todas aquelas sensações fossem verdadeiras, como se a cada olhar e a cada pensamento levado em direção a ele, fizessem Jeongguk se apaixonar ainda mais. Tanto que acabou se distraindo com os devaneios e só percebeu que o copo de café se derramava quando sentiu o líquido morno molhar a sua mão. Antes que pudesse fazer mais sujeira, a balançou fora da caminhonete e percebeu que teria que lavá-la antes de ir embora.
E para isso preferiu ir ao Centro de Belas Artes, no prédio de Artes Plásticas. Apesar de tudo o que havia acontecido no jardim, ainda era o lugar que mais se sentia bem e até tinha boas lembranças dali. Entrou no edifício colorido e logo se encaminhou ao banheiro masculino, colocando o copo em cima da pia de granito acinzentado. Após ter se secado com as folhas de papel, se olhou no espelho e desejou que aquele reflexo fosse real, pois a camisa branca de mangas longas, a calça cargo preta e os tênis igualmente escuros o faziam se parecer muito bem com qualquer aluno dali, assim como a sua vontade de ser um.
Aquele era Jeon Jeongguk, um homem que teve suas oportunidades retiradas e precisava perambular pelo lugar que habitava em seus sonhos. Suspirou tentando retirar aquela mágoa latente do peito, não valia a pena pensar naquilo, naquele momento.
Pegou seu café e voltou ao corredor, mas antes de sair precisava passar pelas salas de aulas novamente, porém dessa vez não conseguiu ignorar o que se passava dentro delas, como se bisbilhotasse pelas janelas quadradas de vidro nas portas de madeira. Em algumas, o professor estava à frente, sentado na mesa e sorrindo enquanto falava. Em outras, os alunos estavam de cabeça baixa, escrevendo em folhas de papel e a professora passava entre as fileiras. Mas uma em específica chamou a sua atenção, pois os alunos estavam com blocos grandes de papel sobre as mesas e pastilhas de aquarela e pincéis ao lado.
Se postou no canto da porta e ficou na ponta dos pés para observar melhor, mas os alunos nada pintavam, estavam apenas com os olhos fixos na figura do professor, o qual tinha uma voz potente que conseguia ser ouvida de onde estava. Assim, decidiu se sentar encolhido no chão e escutar a aula, que ainda se seguia sobre a qualidade das tintas. Bebia seu café já morno aos poucos, degustando do sabor doce e das palavras do professor falando sobre os diferentes papéis que podiam ser usados.
— Folhas feitas com a prensagem quente e satinadas são mais lisas e assim, a tinta seca mais rápido. — As sobrancelhas de Jeongguk se arquearam devido aos olhos arregalados, enrugando a testa. Balançou a cabeça positivamente enquanto prestava atenção na voz do outro lado da porta. — O ideal são aquelas feitas com a prensagem fria e aí sim a tinta demora para secar, pois possuem textura, evitando manchas na sua pintura.
Mais explicações se seguiram, até que um certo burburinho tomar a sala, mesmo que ainda fosse de vozes baixas. Jeongguk não conseguia mais escutar nada e pensou em se levantar para ir embora, mas a porta se abriu de repente e o professor de cabelos brancos parou ali, ainda segurando a maçaneta enquanto encarava o jovem de olhos grandes escondidos por debaixo do chapéu, encolhido no chão e um café em mãos.
— Ah... — Senhor Choi murmurou ainda se questionando o que estava acontecendo. — Você estava escutando atrás da porta?
— Desculpe por isso, eu só fiquei interessado, mas já vou embora. — Suas palavras eram atropeladas e se arrependeu por ter confessado que realmente estava sendo um ouvinte de uma aula, mesmo que não estivesse presente na sala. Se levantou um pouco cambaleante pelo nervosismo e tentou não derramar o café de novo.
— Você não é aluno daqui?
— Não... — Jeongguk engoliu em seco e mordeu os lábios, olhando para os lados, não queria dizer o motivo de frequentar o campus.
— Gosta de arte? — Seu tom de voz era um tanto acolhedor, assim como seus olhos e por isso, o tatuado acabou confessando.
— Eu desenho um pouco, tô tentando aprender a pintar com grafite, mas não sei nada sobre aquarela. — Coçou a nuca completamente desconcertado.
— Quer entrar? — Voltou a mão na maçaneta e a outra apontava para a sala, convidando-o e não se importando com o que iria fazer antes de encontrá-lo ali. — Você já acompanhou a aula mesmo, agora precisa pôr em prática.
— Eu posso? — Perguntou dando um passo inseguro para frente, mas logo voltando atrás. — Melhor não, eu nem tenho materiais nem nada, eu...
— Pode usar os meus. — Senhor Choi sorriu carinhoso, interrompendo-o. — Acho que posso ficar sem praticar dessa vez, eu já sei de tudo mesmo, afinal, sou o professor.
Jeongguk respirou fundo, morrendo de vontade de entrar, mas fazia tanto tempo que não pisava numa sala de aula, estava inseguro. E por que aquele professor estava sendo tão legal consigo? Ele não era um daqueles que comprava maconha escondido, nunca o viu na vida, mas sentia algo bom vindo dele. Às vezes a bondade dos outros assusta a quem está acostumado com certa grosseria. E além de tudo, ainda havia aquela vontade insaciável de aprender.
Deu o último gole no café e acenou que sim com a cabeça, puxando o chapéu para baixo tentando se esconder. A porta da sala foi aberta e o cheiro de tinta invadiu suas narinas, o burburinho era mais baixo, os alunos estavam concentrados na atividade e mal notaram a sua presença.
O professor puxou uma cadeira para perto de sua mesa e estendeu a mão, indicando que ele poderia se sentar ali. Colocou uma folha grande de papel com as características ditas anteriormente e logo Jeongguk passou a ponta dos dedos sobre ela, sentindo a textura que apenas havia imaginado a alguns minutos atrás. Um godê com algumas manchas de tinta foi colocado logo ao lado junto a uma gota da aquarela azul em bisnaga.
— Você já consegue fazer o efeito tridimensional com luz e sombra usando o grafite? — Senhor Choi perguntou enquanto procurava por um pincel em seu estojo.
— Estou começando a conseguir esse efeito, antes eu só usava marcadores mesmo. — Jeongguk semicerrou os lábios ainda um pouco relutante em toda aquela ideia de estar dentro de uma sala de aula, um professor ao seu lado lhe ensinando algo e os outros alunos atrás, mas no fim, acabou confessando seu real motivo para se dedicar tanto àquele assunto. — Na verdade, eu costumo desenhar já pensando na arte se transformando em uma tatuagem.
— Ah é? Que interessante. — Afundou o pincél no copo plástico cheio d'água. — Qual o seu estilo nas tatuagens?
— Botânica, mas sempre preto e cinza. — Visto que o professor não fez cara feia quando o assunto tatuagem surgiu, ficou ainda mais empolgado e sem que pensasse muito sobre o assunto, arregaçou a manga longa que vestia. — Essa daqui foi eu que desenhei. — Apontou para a rosa no dorso da sua mão, sorrindo ao ver a cara de surpresa do mais velho.
— Nossa, mas isso é uma obra de arte. — Semicerrou os olhos e esticou o pescoço, se aproximando para checar os detalhes. Até pediu permissão para explorar os ramos que se perdiam atrás do pulso e o nó gentilmente dado entre os espinhos. — É como se ela estivesse amarrada na sua mão.
— Essa era a ideia. — Sorriu de nariz franzido, se lembrando que aquela fala já havia sido de Jimin, fazendo o nó imaginário com os próprios dedos.
— Eu até ia te aconselhar a usar o papel liso, sem textura, porque é mais usado em desenhos botânicos por causa dos detalhes, mas acho que para tatuagem é mais simples, certo?
— Na verdade, se o tatuador for muito bom, ele consegue deixar bem igual à pintura.
— Dessa eu não sabia. — Apontou com o indicador para Jeongguk, feliz por ter aprendido uma coisa nova. — E você é bom?
— Pretendo ser.
O professor sorriu e arregaçou as mangas antes de dar leves batidinhas na cabeça de Jeongguk, que se encolheu tímido enquanto também sorria: — Então vamos lá futuro tatuador, primeira lição na aquarela. — Ele mergulhou o pincel na tinta pousada no godê e traçou um quadrado escuro, molhando as cerdas na água e aos poucos a figura se transformava em um longo retângulo, adquirindo tons mais claros do mesmo azul até ficar tão límpido quanto o mar do Caribe. Suas ações eram seguidas de explicações dadas pela voz calma e dos olhos atentos do tatuado, que seguia cada pequeno gesto da mão. — Consegue fazer?
Jeongguk deu de ombros e pegou o pincel, tentando fazer o mesmo que o professor havia feito, mas sem a sua supervisão, já que alguns alunos estavam pedindo ajuda. Senhor Choi também deu liberdade para trocar os tons da tinta, o que ele acatou, mesmo que usasse tão pouco do conteúdo das bisnagas.
E ali, completamente concentrado na atividade como um aluno aplicado, sem se importar se havia algum conhecido na sala, Jeongguk começou a achar que um ponto colorido começou a surgir em sua vida, mesmo que ainda preferisse fazer aquarelas escuras.
(...)
Uma das últimas visões de Yoon Yang-mi foram as luzes fortes e coloridas de uma casa noturna em Yongsan, as quais deram lugar a branquidão de uma sala de necropsia. O corpo que jazia na mesa não estava mais ali, mas sim em uma gaveta no necrotério, pois ainda era necessário fazer uma investigação mais detalhada para descartar um crime, apesar de todas as provas presentes no corpo decretarem o que Kim Junmyeon já suspeitava: Overdose de cocaína.
O médico legista fazia anotações do último corpo analisado e ao ouvir passos no corredor vazio e macabro, deixou a caneta de lado e elevou o olhar no exato segundo em que o delegado Kim adentrou a sala, ofegante e mais pálido do que o normal. Ficou parado na entrada como uma estátua, somente os olhos eram vistos por detrás da máscara e a touca descartável que trajava, esperando que Junmyeon dissesse alguma coisa, quase como se estivesse com medo de ser o primeiro a perguntar, como se não quisesse saber o que de fato havia acontecido.
— Pode tirar a máscara, não tem nenhum corpo aqui. — Junmyeon avisou, coçando os olhos devido ao cansaço. — Seu maior pesadelo se tornou realidade, delegado.
Seokjin bufou exasperado, se sentando na cadeira próxima ao médico e expondo seus lábios maltratados pelo nervosismo. Suas mãos suavam, pois as horas gastas na sala de seu terapeuta ainda não conseguiram o fazer reagir bem àquele tipo de notícia tão presente em seu passado. Não gostava daquela palavra, parecia um fantasma rondando os seus pensamentos: Overdose.
Engoliu em seco tentando se acalmar, olhando ao redor a procura de água. Era uma pena que o outro Kim não sabia lidar muito bem com gente viva e nem se atentou aos seus sinais de nervosismo, acabando por disparar novas informações:
— Pelo histórico médico fornecido pela família, ela já tinha o coração comprometido, o que eu pude conferir de perto na autópsia. Miocárdio hipertrófico, ela tinha o coração grande. — Pegou a caneta novamente apenas para rodá-la entre os dedos, se recostando na cadeira acolchoada. — Já que a cocaína causa arritmia, ela vivia tipo numa roleta russa, brincando com a própria morte, sem saber em qual fungada morreria. O septo nasal dela estava perfurado e também havia resíduos do pó na mucosa nasal, mas só saberemos a exata quantidade letal quando o laudo com os resultados do exame toxicológico saírem.
O médico não sabia sobre o passado tempestuoso da família de Seokjin, não eram lá muito próximos, apenas pensava que toda aquela situação não era nada boa para o responsável sobre as investigações acerca do crime de tráfico de drogas na região. Uma morte por overdose indicava que a polícia não estava conseguindo coibir o consumo e as substâncias se alastravam pela capital como uma praga.
— E pela aparência do rosto, posso dizer que ela já era viciada há algum tempo. — Junmyeon arqueou uma das sobrancelhas, se parecendo ainda mais com aqueles médicos estereotipados de programas de televisão. — Ela tinha apenas 23 anos de idade, mas os policiais que fecharam a cena do suposto crime relataram que ela parecia ter em torno de 35 anos.
"Como o meu pai", Seokjin pensou e logo o rosto acabado de seu progenitor veio em sua mente e um nó latente na garganta foi engolido. Seu terapeuta teria o que escutar na próxima semana.
— Como se quisesse encontrar a morte de uma vez. — Sussurrou para si mesmo e apertou as pálpebras, mas Junmyeon acabou por escutá-lo e ofereceu-lhe uma outra opção:
— Nem todo viciado quer morrer, só não conseguem viver com as circunstâncias do mundo real. O mundo que as drogas oferecem acaba por ser muito mais bonito. — Suspirou e franziu os lábios. — Enfim, não dá pra saber os motivos que levam alguém adquirir o vício, mas eu gosto de supor os motivos só por diversão. Por exemplo, talvez o coração dela fosse grande em outros aspectos, não coube dentro de si mesma.
Seokjin sorriu melancólico e acenou negativamente com a cabeça, o rosto sobre a palma, olhando para o nada a sua frente. Não queria pensar naquilo, pois sabia como o vício funcionava e aprendeu a não se martirizar com o acontecido, mas que realidade poderia ser mais bonita que a sua família feliz? O sorriso apaixonado de sua mãe? O filho formado num curso de prestígio?
Às vezes se perguntava se teria entrado para a polícia se tudo tivesse acontecido anteriormente, pois agora sabia que, em parte, a segurança pública não era a maior responsável pelo consumo de drogas na Coréia e nem em lugar nenhum. Mas a desigualdade social proeminente não deixava muita escolha para jovens que tinham seus direitos básicos à vida digna negados. A pressão nas escolas e no mercado de trabalho era um sério agravante, pois enquanto um indivíduo com todos os recursos necessários conseguia subir de vida, o outro escalava lentamente e o topo parecia nunca chegar.
E o que as autoridades competentes fazem a respeito disso tudo? Demonizam as drogas e não se atentam a tais circunstâncias, negando tratamento para quem acabou sucumbindo, ressocialização para aqueles que não tiveram escolhas e políticas públicas para que a desigualdade começasse a caminhar rumo ao seu fim. Era muito mais que uma questão de segurança pública e Seokjin sabia disso, pena que nem todos os policiais pensavam assim.
Se sentia impotente, incapaz de fazer qualquer ação significativa com policiais corruptos dentro da sua corporação. O que apenas demonstrava que mesmo se a segurança pública fosse a única saída, ainda sim, toda e qualquer ação seria completamente falha.
Se recostou na cadeira e olhou para o teto, não sabia o motivo de ainda estar ali. Mas Junmyeon não se incomodava, estava acostumado a falar sozinho e não obter respostas.
— Tanta coisa aconteceu nesse último final de semana: Confraternização de uma parte da corporação, morte de uma jovem por overdose e prisão de um traficante em flagrante. — Seokjin quebrou o silêncio mudando de assunto, estava cansado de pensar em coisas que não dependiam muito de si.
— Prisão de traficante enquanto uma parte da corporação bebia? — Junmyeon sorriu de canto. — Bom que você sabe qual parte trabalha de verdade.
Os olhos de Seokjin se arregalaram no mesmo instante, elevando o tronco relaxado lentamente. O médico legista o olhava com as sobrancelhas arqueadas em interrogações e tudo só piorou quando o delegado se levantou de repente e se apoiou na mesa para lhe dar um beijo na testa enquanto segurava suas bochechas: — Junmyeon-hyung, você é um gênio! — Andou apressado em direção a porta, gritando pelo corredor: — Voltarei mais vezes, adorei as reflexões na sua sala.
Suas pernas davam passos mais longos do que o normal e seus dedos discavam um número já conhecido, recente no registro de chamadas: — Wheein, eu fiquei tão desatento com essa morte que nem me atentei para o óbvio.
— Do que está falando?
— Houve uma prisão enquanto Hyun não estava trabalhando. Isso quer dizer que não havia ninguém para atrapalhar nem mesmo uma vistoria de rotina. — Sussurrava temendo os ouvidos que poderiam existir nas paredes.
— Ah... Sobre isso. — Wheein falava despreocupada, do outro lado da linha dava para se escutar o chiado das suas unhas sendo lixadas. — Eu já havia percebido, mas queria te contar quando o visse pessoalmente.
— O que eu seria sem você? — Andava mais calmo, sem pressa de sair do longo corredor e um sorriso pequeno começava a pintar seus lábios.
— Provavelmente a mesma coisa, mas estou aqui por você, amor. — E um silêncio descomunal pairou dos dois lados da linha. Wheein apenas queria demonstrar apoio, pois sabia que toda aquela situação afetava Seokjin de uma forma diferente, mas o jeito carinhoso de chamá-lo – nunca antes mencionado – a pegou de surpresa devido a toda espontaneidade presente no momento.
Seokjin pigarreou e parou de andar lentamente, seus passos perdendo o rumo devido ao nervosismo, mas era ele quem precisava responder, visto que Wheein não era capaz de pronunciar qualquer palavra que seja tamanha a vergonha que sentia: — Tudo bem então, te vejo lá em casa hoje à noite. Tchau, amor. — E desligou a ligação, apoiando o celular no queixo, demorando alguns segundos para começar a andar novamente.
E pelas evidências apresentadas, o delegado começava a descobrir muito mais que suspeitas de crimes, pois não sentiu incômodo algum ao ser chamado daquela forma e nem de devolver na mesma moeda.
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