13. Fica por aqui
#CodinomeFlamingo
De frente para o espelho, Seokjin combinava a sua camisa social preta com a escuridão de seus olhos e fios de cabelo. Fechava os botões tapando o torso nu e com ele, o dragão vermelho que serpenteava a pele pálida: A cabeça do animal mitológico, localizado perto da costela, possuía uma feição neutra e uma penugem no rosto que o fazia se parecer com um ancião, tão sábio e paciente. O restante do corpo escamoso e a longa cauda descia até abaixo da cintura e se perdia na linha do cós da calça.
Escorada no batente da porta, Wheein observou até o último botão ser fechado com a respiração presa dentro dos pulmões, ainda trajando uma das camisas de Seokjin, que ficava grande demais em si, mas que ela nunca o deixava pegar de volta.
— Quer uma carona? — Ele a perguntou enquanto esfregava os pulsos regados de perfume e, obviamente, sem deixar de notar que estava sendo observado por todo o momento.
— Você já sabe a resposta, mas insiste em perguntar. — Wheein revirou os olhos e cruzou os braços, vendo o outro abandonar o espelho e a fitar com aquele sorrisinho confidente.
— Eu sou um cara gentil, vai que um dia você aceita. — Deu de ombros e tratou de arrumar a bolsa em cima da cama, vendo o colchão afundar minimamente quando a loira se enfiou por debaixo dos cobertores, fazendo Seokjin esconder um riso bobo que insistia em lhe denunciar.
— Quando isso acontecer, pode ter certeza que logo depois terei que entregar o meu distintivo. — O delegado só conseguiu responder o comentário com um suspiro pesado e quase silencioso, fechando o zíper da bolsa carteiro de couro escuro e a colocando sobre um dos ombros. Eram somente colegas de trabalho em um relacionamento casual, mas ele sabia muito bem que qualquer comentário maldoso sobre os dois não seria direcionado a si. — Tão monocromático. — Wheein voltou a falar, só a com a cabeça à mostra, sentada no meio da cama.
— Não dá pra negar que eu ficaria lindo até vestido de palhaço, mas assim... — Apontou para o próprio corpo com a mão, descendo a palma pelo tronco com um ar de convencido enquanto estreitava os olhos. Wheein protestou contra a vaidade de seu superior puxando os olhos para baixo enquanto balbuciava com a língua de fora, mas a mesma foi capturada por Seokjin, a sugando e mordendo o lábio inferior, passando os dentes pela pele macia tão lentamente. Se afastou e logo em seguida perguntou, olhando diretamente em seus olhos surpresos: — Te vejo no almoço?
— Ok... — Respondeu em um fio de voz, ainda de lábios entreabertos e coração acelerado, o pescoço erguido esperando para sentir mais do sabor fresco de menta. Odiava ficar exposta e entregue, mas Seokjin sempre conseguia a deixar dessa forma, mesmo que ela ainda fizesse questão de esconder a forma como se sentia.
Mas só o que restou foi a visão das costas largas deixando o recinto e o cheiro característico dele em toda parte. Escondeu o rosto e se afundou ainda mais entre os cobertores, procurando forças para sair da cama e seguir para o trabalho.
Em seu carro, Seokjin repassava todo o caso em sua cabeça, de forma a assimilar as perguntas que faria ao preso, torcendo para que o maldito traficante abrisse a boca dessa vez. Olhava para as ruas ainda pouco movimentadas e se incomodava por saber que por entre os diversos becos e vielas presentes em seu território de competência, drogas estavam sendo comercializadas. Desejava fazer uma ação significativa na cidade, de forma a impedir que mais famílias chorassem pela morte de um ente querido, assim como a sua fizera há anos atrás.
E em todo interrogatório, seu coração pulsava na mesma velocidade que os dedos nervosos tamboliravam sobre a mesa, só sendo interrompidos pelo clique da maçaneta e logo em seguida, a porta escancarada sem o mínimo ruído. A única pessoa que poderia lhe dar respostas entrava de cabeça baixa, acompanhado de um agente penitenciário. Deu sinal para que as algemas fossem retiradas e enfim, ambos ficaram a sós, pelo menos dentro daquela pequena e iluminada sala.
— Park Bogum, 26 anos. Preso por transportar 3 kg de metanfetamina de Busan para Seul. Sem antecedentes criminais. — Seokjin fechou a pasta e deu três toques na mesa, como se batesse em uma porta, chamando a atenção do rapaz que olhava para o tampo acinzentado como se não estivesse de fato ali. — Tem o direito de permanecer em silêncio. — Pausou a fala ao que Bogum se remexeu na cadeira, ajeitando os cotovelos sobre a mesa. — Mas se eu fosse você, tentaria me dizer algo, pelo menos dessa vez.
Park costumava ter os fios descoloridos em um tom bonito de platina. Mas agora seu cabelo assumia um tom amarelado e a raíz escura evidenciava as olheiras de quem não conseguia dormir em um colchão velho e apertado. Sim, era por causa do colchão e não devido a segurança de sua filha, porque ele sabia muito bem que enquanto permanecesse calado, ela estaria a salvo.
— Por que entrou no tráfico de drogas? — Seokjin decidiu começar do início e não ser tão afobado a procura de respostas. Ainda era jovem e estava aprendendo.
— Dinheiro fácil. Minha namorada engravidou e eu precisei dar um jeito. — Bogum pigarreou para fazer da voz mais forte, fazia muito tempo desde que trocou palavras com um outro ser humano. Os presidiários não eram lá muito amigáveis.
— Você tinha quantos anos na época? — Cruzou os braços e assumiu uma postura mais relaxada na cadeira pouco confortável.
— Dezoito.
— Entendo. — E ele realmente entendia o porquê de tantos jovens entrarem para a vida no tráfico, nem todos possuíam as mesmas oportunidades. — Foi a porta mais fácil que se abriu. — Bogum concordou com a cabeça, com um tom de arrependimento no olhar. Seokjin pigarreou e mudou o rumo da pergunta seguinte. — E quem foi o seu primeiro chefe?
O de braços tatuados soltou uma leve gargalhada, mas que foi morrendo aos poucos e um silêncio perturbador tomou a pequena sala. Seokjin precisava de respostas e não sabia como obtê-las. Bogum precisava proteger sua filha e se caso fosse necessário ficar preso por ela, ele ficaria.
— Certo. — Apertou ainda mais os braços cruzados, precisando descontar a frustração em algo. — Vou encarar isso como um "prefiro ficar em silêncio".
Seu primeiro chefe não foi Baekhyun e sim o seu pai. A maldade parecia ter evoluído de uma geração para a outra, não conhecia muito a fundo a relação de pai e filho, mas conseguia perceber uma nuance de rancor por parte de Sungjae em relação ao Byun mais novo, mesmo sem entender exatamente o porquê.
— O carro que você dirigia era alugado. — Seokjin continuou. — Vimos que o seu nome aparece na lista de clientes de várias empresas que prestam esse serviço. O modo de operação da gangue envolve o aluguel de automóveis?
— Gangue? — Bogum ergueu uma das sobrancelhas e se fez de desentendido. — Não sei do que está falando.
O delegado percebeu o sarcasmo exagerado no tom de voz do preso, tão de repente. Curioso. Parecia estar evitando o assunto a qualquer custo, assim, tentou engolir a raiva que subia em seu âmago e, manter a pose e a paciência.
— Sim, gangue. — Umedeceu os lábios e continuou com o tom de voz firme. — É o que essa tatuagem em seu pulso me diz. — Seokjin observou como todos os planetas e extraterrestres, tão coloridos, não se conectavam com o beta, tão pequeno, traçado em apenas uma linha firme e preta. Parecia aleatório e de forma não proposital.
— Você parece entender bem de tatuagens. Tem alguma? — Sorriu torto. Até seria bonito se não fosse a tristeza presente em seus olhos, agora tão profundos e com as íris opacas.
— Não é você quem faz as perguntas aqui. — Disse em tom óbvio, jogando o pescoço para o lado, quase rindo do desespero do outro.
— Eu não posso dizer nada. — Sussurrou ao se aproximar ainda mais da mesa e fitar o delegado profundamente nos olhos. — Ele está em todos os lugares.
Seokjin arqueou as sobrancelhas em completa confusão, pego de surpresa pela mudança de comportamento. Bogum parecia tão confuso em tentar fugir das perguntas, mas seus olhos permaneciam da mesma forma, incapazes de atuar.
— Até aqui? Na polícia? — Sussurrou de volta e o detento ficou imóvel, engolindo em seco antes de dizer algo.
Mas a resposta nunca veio.
Jung Sunho adentrou a sala e os corpos que antes quase se debruçavam sobre a mesa, se distanciaram de imediato. Seokjin não deixou de perceber que Bogum parecia mais confortável consigo do que com o próprio advogado. Curioso.
— Mas você nunca desiste, delegado? — Sunho disse, já se sentando.
— Esse é o meu trabalho. — Deu de ombros. — Mas já terminei por hoje. Fiquem à vontade.
Se levantou olhando diretamente nos olhos assustados de Bogum por quase confessar algo, mas interrompido por quem sempre aparecia apenas para cobrar o seu silêncio.
Seokjin saiu da sala passando a mão pelo cabelo, bagunçando os fios levemente, tamanha a frustração por não ter respostas e por não saber quando as teria.
(...)
A voz do professor era apenas uma música de fundo para os pensamentos de Jimin, mais confusos do que os próprios estudantes que tentavam entender o conteúdo da aula. Havia um aroma conhecido na sala, uma nota amadeirada sendo soprada discretamente em suas narinas, como um afago que fazia um aperto estranho no peito aparecer e a garganta querer se fechar. Ainda não sabia, mas aquela sensação com toda a certeza se chamava "sentir falta de alguém".
Já havia se passado alguns dias desde que ele e Jeongguk se viram e desde então, as últimas palavras trocadas eram como um sussurro em seus ouvidos. Nem mesmo o tom de voz macio e tranquilo, cravado em sua memória, era capaz de amenizar a preocupação que rondava os seus pensamentos: "O que de tão ruim aconteceu para que ele sumisse desse jeito?"
Jimin se sentia em um carro em alta velocidade, seus fones de ouvido tocavam uma música tranquila, mas não alta o suficiente para abafar os sons de sirenes e buzinas que vinham das avenidas. Não sabia para qual lado deveria ir. Não conseguia escutar a música, mas também não entendia porque tudo soava tão frenético do lado de fora e talvez, não quisesse entender, porque apesar de tudo, ainda havia aquele cheiro...
Passou a mão aberta nos fios recém cortados da nuca, gostava da sensação que o cabelo curto e grosso provocava em sua palma. Mas isso era apenas uma tentativa de achar algum conforto em meio a sala de aula lotada e silenciosa, mesmo que a sua mente fosse o mais puro sinônimo de inquietação, pois não sabia se Jeongguk queria espaço, se queria ficar sozinho, ou se só... Não quisesse vê-lo. Se sentia um covarde por ficar apenas esperando por alguma resposta e não ir a procura, talvez fosse apenas medo de se sentir menos inteiro.
Estava tão aéreo que nem percebeu quando a aula acabou e só o que se ouvia era o som de cadernos e zíperes de mochilas sendo fechados. A porta da sala era aberta e fechava, repetidas vezes, como o alarme irritante da manhã, o despertando e, só assim, procurou guardar suas folhas avulsas que nem ao menos foram riscadas com a data do dia.
Andava ao lado de Taehyung pelos corredores da universidade, achando estar o acompanhando, mas na verdade seus passos seguiam caminho próprio rumo ao tão conhecido jardim do centro de belas artes. O coração ansioso por querer ver um rosto em específico, mas nada encontrando além de pessoas das quais não conhecia nem mesmo o nome.
Taehyung até sabia um pouco do que havia acontecido em sua casa naquela noite e pela manhã, mas nada sabia sobre o que se passava em sua cabeça até então. Em um minuto estava triste por ver a tão conhecida caminhonete se perder no horizonte e no outro, sua mente entrava em parafuso tentando digerir tudo o que havia acontecido: O despiu das vestes do Flamingo e soube o seu nome em meio a um chá doce de camomila; dormiram aninhados e fez questão de o proteger das grosserias de seu tão amado pai.
Nada mais foi o mesmo. Jimin sabia, só não era capaz de admitir. Pelo menos não ainda. Preferia ficar perdido e se afogar dentro de si mesmo do que buscar refúgio em sua tão confidente âncora, Taehyung.
— E aí o piano dele é roubado e ele precisa invadir uma casa pra continuar praticando e... — Taehyung se interrompeu ao seguir com o corpo os mesmos movimentos de Jimin, que se sentava no pequeno degrau da passarela, bem perto da entrada de um dos prédios. Os olhos do moreno em nenhum momento foram direcionados a si, tão perdidos entre mesas e bancos de cimento, ignorando completamente o que dizia tão animado. — Ele não está aqui, Jimin.
— Ele quem? — Finalmente recebeu atenção pela primeira vez no dia, mas não o respondeu, apenas o encarou numa forma de fazê-lo entender que já sabia a resposta. Jimin apoiou a testa nas mãos e completamente frustrado, acabou soltando: — É que já se passaram cinco dias. — Sussurrou para si mesmo, mas alto o suficiente para que o outro escutasse.
— Jimin... — Coçou a nuca em busca das melhores palavras. — O que tá rolando? — O amigo o olhou perdido, desejando ter uma resposta para a pergunta, ou ao menos, ter coragem para dizer. — O Flamingo dormiu na sua casa, sei lá... Eu entendo que ele precisava de ajuda àquela noite, mas não acha que talvez você esteja comprando um problema?
— Problema? — Jimin o fitou com uma mágoa latente, Jeongguk não merecia ser visto como tal. Sabia muito bem que se confessasse tudo o que habitava em seu peito, Taehyung entenderia, afinal, um coração grande e generoso só consegue se identificar com um igual ao seu. Mas no fim, só o que conseguiu fazer foi balançar a cabeça em negativo, frustrando tanto a si quanto o seu melhor amigo, que não obtinha respostas e tirava conclusões com as informações rasas que possuía.
Jimin amava livros, mas ele era um exemplar que possuía um enorme cadeado, que para ser destrancado precisava ler a si mesmo e entender todo o seu próprio conjunto de palavras.
Mas antes de qualquer outro questionamento, a aparição de Chanyeol do outro lado da passarela, saindo do prédio com um violão nas costas, fez com que Taehyung pensasse em um outro acontecimento daquela mesma noite.
— Ele não veio falar com você? — Apontou com o queixo para o estudante de música ao que Jimin o olhou sem entender sobre quem falava.
— Não e acho que nem vai. Deve estar pensando que sou eu quem deve desculpas. — Deu de ombros ao se lembrar do seu punho fechado acertando em cheio o rosto alheio. — Mas eu também não me importo.
— Talvez você devesse tentar. — Seu tom de voz era ameno, sabendo que o amigo estava escondendo algo de si apenas por julgar a forma como o mesmo evitava qualquer tipo de contato visual mais prolongado.
— Eu nem estou pensando nisso, Tae. — Jogou os fios negros para trás, apenas por ser uma de suas manias.
— E no que você está pensando?
— Na aula que vai começar agora. — Em um pulo, já estava de pé e seguiu em direção ao prédio da sua próxima aula, deixando Taehyung sozinho, bufando em puro tédio e cansado de respeitar o espaço de Jimin. Se pudesse, entraria em sua mente e arrancaria todas as respostas que há tanto tempo não lhe eram dadas, mas ainda estavam no mundo real e tais ações não eram possíveis. Não iria mais insistir em obter respostas, que ficassem ocultas se caso fosse o que queria.
E acompanhado de si mesmo e dos pensamentos que foram instigados, piorando todo o seu estado mental de anteriormente, Jimin se viu pegando o celular e indo direto no contato de Jeongguk, fitando a conversa ainda vazia. Se permitiu ampliar mais uma vez a foto do perfil, um ato que se repetiu por incontáveis vezes em todos esses dias. A fotografia não mostrava diretamente o rosto, pois o mesmo estava escondido entre os braços tatuados, as mãos pendiam na mesa clara e o desenho da rosa negra era o que mais chamava a atenção de Jimin, além da pequena fresta dos braços em que era permitido vislumbrar os olhos de universo fechados. As paredes atrás dele eram de tijolinhos cor de terra e alguns quadros com desenhos muito parecidos com os que viu em seu caderno, compunham o ambiente. Aquele era Jeon Jeongguk. E quanto mais Jimin sabia sobre ele, mais ele se afundava a procura de mais, sem se importar com a falta de oxigênio.
Respirou fundo e digitou uma mensagem rápida, encarando com o polegar trêmulo o pequeno ícone de envio, engolindo em seco antes de clicá-lo. Guardou o aparelho no bolso de sua calça e andou apressado, assustado com a velocidade das batidas de seu coração, porque no fim, não era só uma mensagem e sim um apelo para que Jeongguk aparecesse.
(...)
As noites naquela época do ano estavam mais quentes do que de costume e por isso, Jeongguk mantinha as janelas de seu apartamento abertas. Por sorte, os raios solares não incidiam diretamente em sua cama pela manhã, mas nem por isso tratou de abrir os olhos de imediato, pois um peso estranho se encontrava em seu peito e pela primeira vez, não se tratava de uma angústia ou qualquer nó do tipo.
Tentava respirar o mais lento possível para que o peito não subisse tão afoito. As pálpebras cerradas procuravam por qualquer fresta antes de ter coragem de saber de uma vez do que se tratava. A pouca luz que invadia a sua retina o fez perceber uma sombra negra em cima de si e assim que arregalou os olhos, compreendeu todo o amontoado de pelos escuros que ressonava tranquilo em meio a ronronados: Um gato preto.
— O que... — Sua mente ainda sonolenta tentava procurar alguma justificativa para explicar tal situação, demorando alguns segundos para se atentar as janelas abertas. Voltando a respirar normalmente, se arriscou a acariciar o pelo macio do animal, passando o dedo indicador entre os olhos, como para se certificar de que o bichano era real. O que obteve como resposta foi um ronrono mais alto e a face peludinha indo de encontro ao seus longos dedos, a procura de mais contato.
Os lábios de Jeongguk até indicaram que formariam um sorriso, mas foi pego de surpresa pela espreguiçada do gato, que se elevou de repente, as patas vibrando em um longo e cansado bocejo que o fez ter a visão de todos os seus dentes. Desceu da cama e se deitou no chão, se contorcendo para lamber a pata dianteira.
— Você tá com fome? — Perguntou ao que se sentou e colocou os pés no piso agradavelmente frio. — Com calor, talvez? — Observou por um tempo, ainda confuso com o acontecido e sem saber o que fazer com o seu tão ilustre visitante. — Hmmm... Eu vi uma vez que gatos comem milho, você quer um pouco? — Visto que não obteria resposta, se levantou e abriu a lata, despejando os grãos amarelos em uma vasilha plástica e logo em seguida, oferecendo ao bichano.
O focinho escuro farejou o conteúdo antes de dar a primeira abocanhada e mastigar com calma todos os grãos. Jeongguk se agachou e acariciou mais uma vez a cabeça do gato, tão dócil e amável. Não conseguiu deixar de pensar que muitos o julgavam somente pela pelagem negra e brilhante, fazendo questão de afastar o animal, já que popularmente é conhecido por atrair má sorte e por ser o diabo encarnado. Sorriu com a ironia do destino, pois não conseguia deixar de se identificar com o gato preto, já que era mal encarado pelas tatuagens e por isso, julgado por tudo e todos. Estranho seria se ele não se sentisse mais sortudo do que nunca naquela manhã.
E curiosamente, sentia como se aquele apartamento mofado sempre tivesse sido o lar daquele pequeno gato, talvez até mais dele do que seu e por isso, mostrava-o que poderia ficar, oferecendo comida e um chão gelado para se deitar em dias quentes.
Passou tanto tempo observando o gato se movimentar pelo único cômodo, explorando o novo ambiente, que nem viu o tempo passar e apenas uma batida na porta foi capaz de o distrair de tal encantamento. Talvez gatos pretos tenham algum tipo de magia, afinal.
— Você marca as coisas e me deixa com todo o trabalho. — Hyunah tagarelou reclamona ao que a porta foi aberta, com as mãos cheias de sacolas plásticas, depositando-as em cima do pequeno balcão da cozinha. — Trouxe frango frito para o almoço. Já comeu? — Jeongguk fechava a porta e apenas acenou que não com a cabeça, fazendo-a revirar os olhos, impaciente com o descuido do mais novo com a própria alimentação. — Então vai comendo enquanto eu preparo o descolorante.
— Viu que temos companhia? — Disse enquanto revirava as sacolas a procura de comida. O gato estava em cima da cama e como o apartamento inteiro se dividia entre um cômodo grande e o banheiro, Hyunah logo se juntou ao bichano e exclamou animada.
— Que coisinha mais linda! — Afagou o pescoço peludinho, fazendo-o elevar a cabeça para melhor apreciar o carinho. — Já deu um nome pra ele? Que tal Salém? Muito clichê, né?
— Eu nem sei se ele vai querer ficar. — Deu de ombros enquanto mastigava e lambia os dedos levemente vermelhos devido ao molho apimentado.
— Gato é que nem a gente. — E com "a gente", ela apenas se referia aos dois. Hyunah e Jeongguk. — Tem que mostrar que o quer por perto pra ele querer ficar.
Concordou com a cabeça e passou a comer em silêncio. O único som que era ouvido era o lacre da da lata de refrigerante sendo aberta, assim como as embalagens do descolorante. Hyunah era bastante falante, mas sabia muito bem quando parar e ouvir, ou apenas ficar calada enquanto o amigo se perdia no som dos próprios pensamentos.
Jeongguk sabia que havia pessoas que prezavam por sua companhia, que o puxavam de volta quando se afastava e tentavam entender o motivo de seus pesadelos. Talvez fosse hora de tentar lidar melhor com as suas dores. Não poderia esquecê-las, mas quem sabe aprender a conviver com elas. Como fazer isso ele ainda não sabia, mas achou que seria um bom caminho dar novos significados às coisas que o faziam se lembrar de suas mágoas.
— Que tal Nanquim? — A tinta chinesa, tão antiga e nobre, não merecia ser relacionada a todo o vazio de um céu sem estrelas. Hyunah o olhou pelo reflexo do espelho, já dividindo as mechas de cabelo e, entendeu o porquê daquele nome, mas ouvi-lo explicar o motivo era ainda melhor. — Nanquim é uma coisa boa, faz parte dos meus desenhos. Não quero olhar pras minhas canetas e me lembrar daquele pesadelo e dela... Quero me lembrar do gatinho folgado que dormia em cima do meu peito quando tudo parecia perdido dentro de mim.
— Nanquim... — Repetiu fitando a raíz do cabelo, tão escura quanto o pelo do gato logo ao lado, fazendo-a se recordar da época em que cultivava longas madeixas escuras e lisas. Mal conseguia se lembrar de quem era no passado, pois seu cabelo descolorido, quase amarelado, parecia uma capa protetora em volta da verdadeira Hyunah. E ao que Jeongguk se aproximava de si, colocando as luvas cirúrgicas nas mãos, ela não conseguiu deixar de questionar: — Você já pensou em desistir do rosa? O rosa do cabelo.
— Não enquanto eu fizer o que faço pra ganhar a vida. Ou pra sobreviver, sei lá... — Trazia uma das cadeiras baratas para frente do espelho e Hyunah logo se sentou, segurando o pote com a mistura e pincel. O silêncio que pairou entre os dois não era mudo, pois ela pensava em tudo o que aquilo significava e ele, em tudo o que ainda precisava por para fora. E com o couro cabeludo já ardendo levemente, ouviu a voz de Jeongguk soar em uma frase que a deixou temerosa: — Eu preciso te contar uma coisa.
— O que?
— No último sábado eu fui levado até Busan, pra pegar uma carga. — Os olhos da loira se arregalaram e o tatuado apenas assentiu levemente com a cabeça e os lábios cerrados. — E fomos parados pela polícia, mas quem nos abordou foi um policial corrupto que recebe dinheiro do meu chefe.
— Então ficou tudo bem, certo? — Deu de ombros sem saber exatamente o que dizer. — Digo... Pelo menos você não foi preso.
— Aí é que tá, noona. — Respirou fundo antes de continuar. — Bem pra quem? Bem pra mim, que vende drogas por aí, com o privilégio de ser escoltado pela polícia? Bem pras pessoas que vão continuar se drogando, já que a droga tem acesso quase livre ao país? — Bufou exasperado enquanto pincelava os fios escuros, vendo-os clarearem de pouco a pouco ao que falava. — Eu fiquei uma bagunça esses últimos dias, só pensando nisso... Porque por mais que eu estivesse petrificado de medo por ver aquelas luzes da polícia no meio da pista, eu também me senti estranhamente aliviado só de pensar que esse pesadelo iria acabar.
— É como se tudo estivesse contribuindo pra que você permanecesse exatamente onde está. — A feição de Hyunah era distante enquanto encarava o seu reflexo, sendo pintada de uma versão de si mesma a qual ela não queria mais ser. Por que o espelho de Jeongguk parecia mostrar tudo o que ela queria esquecer?
Os olhos de ambos se encontraram na imagem refletida. A dor que um carregava era entendida pelo outro e era exatamente por isso que eram tão próximos. Não precisavam de encontros semanais para colocar o papo em dia, bastava se olharem pela janela de seus apartamentos e verem que ainda estavam ali, resistindo e existindo.
Mas não queriam mais falar sobre suas versões e codinomes, afinal, não havia consolo para aquilo e assim, decidiram ocupar o silêncio existente com algumas músicas animadas do celular de Hyunah, cantando-as enquanto deixava o descolorante agir no couro cabeludo e fazia sua parte no cabelo do amigo. O frango já morno, fora devorado aos poucos, assim como todo o refrigerante restante na lata de coca-cola. Nanquim decidiu passear pelas ruas do bairro, mas logo voltou, subindo pela escada de incêndio e se refrescando com a água da torneira da pia do banheiro, que fora aberta após um pedido mudo do mesmo.
— Acho que ele vai ficar. — Hyunah observou o bichano perambular pelo pouco espaço, muito pomposo e à vontade. Retirou as luvas brancas, manchadas de rosa flamingo e as jogou no lixo, parando para observar a raiz de seu próprio cabelo, agora da mesma cor do restante do comprimento, em um tom bonito de loiro claro.
Jeongguk se levantou da cadeira, sorriu ao que se espreguiçou e olhou para Nanquim se lambendo, em um de seus muitos banhos do dia. E só então foi em busca do seu celular para cronometrar o tempo que deixaria a tinta fantasia agir, mas se sentou em câmera lenta quando viu a mensagem que ainda não havia lido.
Jimin-hyung:
Você sumiu.
[09:57 a.m]
— Que sorriso bobo é esse aí? — Hyunah sorriu assim que as bochechas do amigo assumiram um tom parecido com o da tinta que agia em seu cabelo. Se aproximou e ele virou a tela do celular para que ela visse com os próprios olhos.
— Acho que tem mais alguém que me quer por perto.
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