04. Cicatrizes
#CodinomeFlamingo
Com a testa encostada no vidro da janela do carro, Taehyung observava as ruas passarem em um borrão, mas não precisava de nitidez para saber que todas elas tinham uma lembrança com Yukhei: O meio fio perfeitamente pintado de branco e as marcas dos solados dos tênis de ambos, tentando se equilibrarem no pouco espaço entre risadas e pequenos empurrões. Foi na esquina da rua Seongsan a primeira vez que deram as mãos, os corações pararam por um milésimo de segundo, voltando a bater tão rápido que doeram, mas de uma forma boa. E na entrada de sua casa, ao fechar a porta, observou por um momento a passarela que levava até a rua bem asfaltada e pôde ver a imagem de Yukhei parado, como na última briga que tiveram, com o semblante sério, quase que decepcionado, só não sabia se era consigo mesmo.
Mas não havia ninguém ali. Só se escutava os passos leves de Jimin subindo as escadas e o aperto no seu peito que parecia lhe sufocar. Nem a água quente do chuveiro conseguia desatar o nó em sua garganta. Não conseguia chorar, mas não era como se estivesse se recusando, pois a epifania de saber que o fim havia chegado era dolorosa, mas ao mesmo tempo aliviante.
O cabelo estava encharcado pingando sobre a toalha seca nos ombros. Estava sem forças para se mover, o peito pesado e as cordas vocais presas, os olhos formigando incessantemente e os ouvidos atentos ao som metálico do registro do chuveiro ser desligado. Observou o vapor adentrar o quarto e agradeceu por Jimin estar consigo naquela noite, não achava que seria capaz de esperar o sol raiar sozinho. O cômodo estava iluminado, as paredes brancas repletas de pôsteres de filmes antigos; a escrivaninha com livros preguiçosos abertos e vidrinhos de tinta ao lado de folhas e mais folhas de papéis prontos para receber a aquarela. As cortinas imóveis devido a janela fechada, nem a lua seria capaz de apaziguar tudo o que se passava dentro de sua cabeça, talvez só o tempo levasse tudo para longe.
— Agora você vai me dizer o que aconteceu? — Jimin perguntou cheirando a sabonete de lavanda e os cabelos negros molhados e grudados na testa, espetado para todos os lados.
— O Yukhei estava na saída do banheiro e eu tive uma recaída. — Começou a dizer como se fosse a coisa mais simples do mundo, mas com a voz grossa quebradiça. — Ele é viciante, mas não é como uma droga. Você não inala tudo o que quer e convulsiona depois. As pessoas dizem não, elas se recusam e foi isso o que ele disse. — Talvez falar fosse a única coisa que faria o nó desatar.
Jimin estava calado, com os olhos grandes encarando as lágrimas de Taehyung inundando o rosto. Não sabia o que dizer em casos de corações partido.
— Ele nem disse nada, na verdade. — Continuou a falar a medida que passava as mãos no rosto. — Só ficou me olhando com aqueles olhos cheios de pura pena... Eu me sinto tão idiota.
— Você não é idiota. — Jimin conseguiu dizer. — Agora você tem a resposta final e só precisa aceitá-la, seguir em frente sem olhar para trás.
— Mas não é fácil.
— Pode não ser, mas cadê aquele Taehyung de hoje mais cedo? Tão positivo e esperançoso... Você só precisa pensar assim mais vezes.
Se deitou na cama larga e abraçou a toalha, sem se importar em molhar a fronha do travesseiro. Jimin o acompanhou, mas olhou para o teto, suspirando e pensando em formas de arrancar a dor que o amigo sentia de uma só vez, mesmo sabendo que nada disso era possível. Não entendia o que era tudo aquilo que habitava o peito de Taehyung, nunca precisou lidar com a vontade de querer estar com alguém e não poder porque o outro não queria. Já foi rejeitado, é claro, mas sem sentimento algum envolvido fica mais fácil seguir em frente. O que não era o caso de Taehyung.
— Eu vou tentar. Já tô nessa há muito tempo, preciso seguir em frente de uma vez. — Passou o dorso da mão sobre o rosto molhado e se virou para Jimin, pronto para o encher de perguntas e assim, se distrair. — Por que o seu pau tava duro?
— Tae! — Jimin exclamou, gargalhando em surpresa pela mudança de assunto.
— Tá, eu sei porque o seu pau tava duro, mas com quem você tava se pegando?
— Eu não vou dizer. — Se virou de bruços e colocou o travesseiro sobre a cabeça, recebendo logo em seguida tapas na bunda.
— Você tem que me dizer!
— Por que? — Sua voz estava abafada devido ao aperto do travesseiro.
— Porque eu estou triste. E como melhor amigo, você precisa me distrair. — Viu o rosto de Jimin emergir de todos os lençóis, revirando os olhos, mas cedendo aos lamentos do amigo.
— Você sabe muito bem com quem foi. — Respondeu apoiando o corpo no cotovelo e estalando a língua no céu da boca.
Taehyung pensou por um breve momento antes de arregalar os olhos e a boca: — Então o Flamingo quis no fim das contas. — Disse sorridente.
— Quis e muito.
— E foi bom?
— Foi muito bom, fazia tempo que eu não dava aquele beijo. — Jimin respondeu dando ênfase nas palavras.
— Você tá com cara de quem vai repetir a dose até enjoar e eu não sei se isso vai ser boa coisa. — Taehyung semicerrava os olhos.
— Você sabe que eu sou muito sincero quanto às minhas intenções, eu não vou iludir o Flamingo. — Jimin falava e ria ao mesmo tempo, pois tal ideia era absurda, afinal, era o Flamingo.
— Sei..., mas você tava chapado, certo? Talvez tenha sido o efeito da erva, ela potencializa tudo. — Taehyung avisou.
— Então só tem um jeito de saber se o beijo é bom mesmo ou se foi coisa da minha cabeça brizada. — Jimin dizia com um sorriso maligno.
— Qual será o nome dele de verdade? — O mais alto perguntou coçando o queixo.
— E isso importa? — Jimin deu de ombros, se levantando para apagar a luz, dando fim a conversa, prontos para dormirem.
Ele realmente não se importava com nomes.
(...)
O ventilador que um dia já foi branco rodava lentamente de um lado para o outro, mas nada que impedia o suor de se acumular em pequenas gotículas na testa de Jeongguk e as folhas de seus desenhos voarem minimamente pelo chão. Seu sono estava longe de ser profundo, os olhos estavam fechados, mas a sua mente estava em alerta, como se não estivesse de fato dormindo. E por isso, quando acordou em um lapso, completamente assustado, se viu inteiramente exausto. Nunca dormia bem quando sabia que logo pela manhã precisaria encontrar Byun Baekhyun.
Um aperto no peito se fez presente assim que se sentou na cama, suas costas doíam, um sinal de que seu colchão precisava ser trocado, mas dormir bem era algo considerado supérfluo. Pior ainda era saber que não havia vendido tanto quanto deveria na última festa e isso se devia pelo fato de ter escolhido se agarrar com um estudante qualquer.
Park Jimin, a causa de uma possível bronca e quem sabe até um tapa na cara. Mas nesse assunto, Jeongguk faria questão de não tocar, inventar qualquer desculpa que fosse para omitir o garoto, talvez isso o ajudasse a se enganar e fingir que não estava pensando em seu beijo e na forma como quase foderam encostados em uma parede de tijolos, mesmo estando vestidos. Os toques firmes em sua pele deveriam ser esquecidos, tal atração não deveria ganhar importância, ele nem ao menos deveria ser um de seus primeiros pensamentos ao acordar, mas lá estava ele rondando a sua mente, andando em passos largos, como quem está se encaminhando para matar alguém, jogando os fios negros para trás e mordendo os lábios, tudo ao mesmo tempo.
"Foi só uma noite e ele estava chapado, não vai mais se repetir", Jeongguk pensava enquanto se vestia para encontrar Baekhyun: Um conjunto de moletom que lhe cobria inteiramente a pele, um rasgo no fim da manga comprida servia para enfiar o polegar e assim, esconder a rosa tatuada no dorso de sua mão. Tatuagens são as marcas que evidenciam as pessoas perigosas, ele não era de fato temido por alguém, mas a polícia não quer saber quem de fato você é antes de lhe apalpar as bolas a procura de algo escondido.
Mas Jeongguk tinha o que temer, seja a polícia – por vender um produto ilegal, sustentando toda a uma população de viciados que se drogavam à margem da lei –, seja Byun Baekhyun, por contar as notas de dinheiro e notar que havia menos ali do que de fato deveria.
— Andou se distraindo com alguma putinha? — Perguntou com a cabeça ainda baixa, mas os olhos mirando Jeongguk, notando uma possível hesitação.
— Não tinha putinha nenhuma. — A voz quase soava trêmula, mas tentava se controlar para não ser óbvio demais. — Nem toda festa é agitada.
— Se quiser quitar a sua dívida algum dia, você mesmo precisa agitar a festa. — O tom de voz do mais velho o fez se encolher na cadeira acolchoada, sabia o que aquela frase significava, mas não era de seu feitio convencer os outros a usarem drogas. Vender para quem as queria já o remexia inteiro por dentro, não queria dar a luz a mais um viciado. Olhou para o chão de mármore polido e logo em seguida para as orbes escuras, quase opacas de Byun, enquanto o mesmo passava os dedos ágeis pelas notas gastas de wons. — Não vai me dizer que ficou regulando as doses dos outros de novo? — Seu olhar possuía uma fúria contida, só de pensar na resposta do mais novo, seu maxilar quase estalava de tão rígido.
— É perigoso. — Jeongguk disse em um sussurro, sem conseguir olhar nos olhos que ele sabia que quase emanavam fogo toda vez que tocavam em tal assunto.
— Perigoso? — Baekhyun gargalhou em escárnio, soltando as poucas notas que segurava sobre a mesa. — E por que você se importa tanto com a vida dos outros? — Ao ver que Jeongguk permaneceu calado, revirou os olhos e continuou seu discurso: — Você precisa ser mais egoísta porque o seu trabalho é assim. Você só para quando a droga acaba, se não viu ninguém saindo arrastado de alguma festa diretamente para o hospital, isso significa que você fez um péssimo trabalho.
Jeongguk odiava ser o Flamingo, odiava ter que escutar esse tipo de coisa e permanecer quieto. Revidar nunca era a solução, Baekhyun não era o tipo de cara que se vencia no diálogo e o garoto se via em um completo desespero toda vez que o mais velho avançava para cima de si. Preferia ficar calado por mais que a sua voz implorasse para ecoar dentro daquela pequena sala, o que só fazia o seu peito martelar em um ritmo frenético devido ao silêncio desconfortável.
De um lado, um garoto de moletom com o coração prestes a sair pela boca, do outro, um homem de camisa social branca com as mangas perfeitamente dobradas, o cabelo um pouco oleoso, jogado de qualquer forma para trás e a pele alva como porcelana. Se passava por um exímio empresário e tal fato não deixava de ser verdade, afinal, o ramo do tráfico de drogas era altamente lucrativo e no fim, o que importava era isso: O dinheiro.
Notas e mais notas eram postas em pilhas organizadas, Byun era o seu próprio contador, ninguém mais tocava em seu dinheiro e era por isso que possuía olheiras bem escuras abaixo dos olhos. Nenhum erro poderia ser cometido, pelo menos não mais. Estar em contato constante com a sua primeira falha era algo que o martirizava, como uma lembrança das palavras de seu pai o dizendo que nunca seria como ele, por mais que o ensinasse tudo o que sabia, o fazendo se sentir incapaz de aprender qualquer coisa, até mesmo a amar, algo que ele não fez muita questão de ser didático.
Herdeiro da chefia do tráfico da capital, mas por escolha. Se quisesse, poderia esquecer o passado de seu pai e seguir a vida fazendo qualquer outra coisa com o dinheiro que lhe foi deixado, mas não. Na busca de uma aprovação, por mais que fosse de um fantasma, Baekhyun se colocou no lugar do pai e jurou a si mesmo que não teria o mesmo destino: Nunca seria pego por um policial, jamais deixaria que uma bala de alguma arma registrada pelo governo o atingisse e lhe tirasse a vida, muito menos se deixaria ser trancafiado atrás de grades imundas e se isso custasse a morte de uma outra pessoa... Bem, tanto faz, "antes ele do que eu", era como dizia.
Ah, e o seu primeiro erro? Ele se chamava Jeon Jeongguk. Um moleque recém chegado à Seul, com o coração em frangalhos, em completo desespero, se agarrando a primeira oportunidade de sobreviver ao mundo hostil recém descoberto. Seria uma pena se dois garotos se juntassem por via dos intempéries da vida, começassem a viver por si mesmos e logo, começassem a errar também. Baekhyun colocou Jeongguk para guardar uma carga importante e cara de metanfetamina, que logo foi roubada, pois o mais novo não conseguiu se defender, ganhando um corte raso na bochecha que lhe marcou eternamente, e o novo chefe do tráfico não tinha a exata noção da importância de tal mercadoria e das pessoas que poderiam oferecer perigo a si mesmo e a todos que o cercavam.
E assim, um ficou preso ao outro por algumas centenas de simples notas de wons, que eram passadas uma a uma, contadas em silêncio por lábios que quase não se moviam, sob o olhar atento do tatuado, que tentava vagar pelo pequeno escritório de paredes brancas, quase cegantes, localizado no subsolo de um estacionamento em Gangnam. As notas coloridas representavam tudo o que Jeongguk deixou de ter desde que, sem querer, se prendeu a Baekhyun. Sabia como havia chegado onde estava, mas aquela maldita sala parecia estar presente em tudo o que poderia chamar de futuro. Saber que tal rotina se repetiria inúmeras e inúmeras vezes, fazia se formar um nó em sua garganta, o mesmo que não se deixava derramar pelos olhos, tudo era descontado em socos em um saco de pancada velho pendurado no pequeno cômodo onde morava. Estava cansado de se sentir fraco, chorar era uma prova concreta disso e ele não se permitia.
Baekhyun contava uma pequena quantia e a deslizava sobre a mesa, em direção a Jeongguk, que pegava sem nada a dizer, já sabia do que se tratava, mas o mais velho sempre fazia questão de falar: — Vê se compra algo além de lámen para comer e manda um abraço para a sua mãe.
— Pode deixar. — Toda vez que colocava o pequeno bolo de dinheiro no bolso de seu moletom, a marca em sua bochecha formigava, uma lembrança que emergia uma dor invisível no peito e uma física no rosto e nos ossos dos dedos, estes que contorciam em formato de punho, deixando um ranger sonoro da pele seca das mãos escapar.
Deixou a sala com os pensamentos na última frase que escutou: "Manda um abraço para a sua mãe", repetiu mentalmente e bufou, sabendo que o chefe apenas falava esse tipo de coisa para o irritar, já que sabia muito bem que a sua relação com a mãe não era lá muito boa. Colocou o capuz sobre a cabeça, enfiando as mãos no bolso enquanto andava em direção a sua Dodge Ram D350, diretamente dos anos 1985, já com a lataria sem brilho e a tinta verde e branca descascando. Foram raras as vezes em que conseguiu falar com a própria mãe desde que deixou Busan, Eunbi se recusou a atender o telefone inúmeras vezes e Jeongguk sabia disso, mas preferia pensar que os seus horários mudaram e ela não fez questão de lhe contar. De qualquer forma, não deixava de receber a pequena ajuda que o filho a enviava, ele que fazia questão de dar um pouco do que recebia porque sabia que ela já estava muito velha para trabalhar tanto.
Uma pena que a idade não a fez acumular compaixão e empatia. O expulsou de casa e evitava falar com ele o máximo que podia, fazendo Jeongguk se sentir mal por não conseguir lutar contra quem ele era de verdade. Seus sentimentos eram dúbios em relação a sua sexualidade: de um lado, estava feliz por ser tão bem resolvido consigo mesmo, mas do outro, sabia que tudo poderia ter sido diferente se a mãe tivesse lhe pegado no flagra com uma garota.
O sol morno da manhã tornava inconveniente o tecido grosso das roupas que usava. Quando chegou ao seu pequeno apartamento, retirou a parte de cima, se contentando em vestir apenas a calça, deixando exposta a tatuagem de uma máscara de Hannya que ocupava todas as suas costas em contraste com as pequenas flores de cerejeira em sua cor natural, perto dos ombros, simbolizando a esperança, amor e renovação, em oposição a máscara que significava "o monstro que habita dentro de todos nós"
Se sentou na cama e começou a remoer todo o passado, sabendo que o futuro não lhe traria grandes mudanças e logo se pôs a descontar o presente em socos no saco de pancadas que já estava quase se rasgando. Os nós dos dedos latejavam em dor, a sua respiração saía audível das narinas, mas não queria parar para pensar no que teria que fazer a noite. Só o que queria era passar o tempo no estúdio de Namjoon, mas não gostava de ver os semblantes dos amigos preocupados quando a noite chegava e ele precisava partir. Sempre dava de ombros e cruzava as portas de vidro escuro, com o coração apertado por não querer ir. Aquele maldito nó que nunca desatava parecia lhe sufocar a medida que as horas passavam, mordia os lábios com toda a força só de pensar que mais tarde teria que invadir festas em Hongdae, as quais ninguém ali o impedia de entrar, pois sabiam que junto ao cabelo rosa flamingo e a camiseta de botões estampada, a diversão e a fuga da realidade também estariam presentes.
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