Capítulo Doze
Se a situação fosse outra, eu realmente poderia apreciar as densas gotas de chuva que caem sobre mim. Eu iria levantar meu rosto ao encontro das lágrimas das nuvens e sentiria aquele prazer singular que apenas se obtém quando o cheiro de terra molhada invade suas narinas. Eu poderia apreciar a quietude da floresta, uma falsa impressão de estar sozinho, quando na verdade nunca antes estive ao redor de tantas formas de vida. Eu usaria minha angústia como incentivo para continuar tentando.
Mas, agora, tudo que posso fazer é rir. Rio com tanta amargura que minha próprias lágrimas — de dor ou escárnio — juntam-se às que desabam do céu, correndo sobre minha face, juntando-se aos pelos da minha barba e caindo em meu colo. Quando a mancha de água em minha calça aumenta mais que a palma da mão que descansa sobre ela, levanto.
Contrariando cada nervo em meu âmago que implora por desistência, busco o pedaço de plástico dentro da mochila. Uso minha faca de corte para abrir duas tiras em cada ponta e procuro uma árvore que ofereça dois galhos próximos mas distante o bastante para me oferecer cobertura. Diante do banquete de pinheiros, abetos, carvalhos e outras espécies que não reconheço, encontro uma me dará o que preciso. Amarro as pontas em cada extremidade dos dois galhos paralelos e, dessa forma, me protejo da chuva e uma posterior hipotermia. Com meus pensamentos viajando entre as diversas razões que tenho para continuar, adormeço sob os ruídos das vidas ao meu redor.
O som abafado de uma pegada na lama densa chega ao meu cérebro antes mesmo que meus olhos se abram. Só percebo a pistola engatilhada em minha mão quando aponto-a para a escuridão. Involuntariamente, vou andando para trás, me afastando do que quer que esteja próximo de mim. Não consigo ver muito, mesmo com a neblina oferecendo um show de sombras distintas, e apesar da diversidade de espécies, tenho certeza que árvores não saem do lugar.
A silhueta de um metro e meio caminha calmamente sobre as duas patas, sua superfície lisa brilhando em meio ao breu. Calculo a possibilidade de escalar uma árvore próxima, mas antes que eu tome uma decisão, a criatura me vê. Prendo a respiração automaticamente, como se isso me oferecesse invisibilidade diante dos olhos daquele animal, um transmute — animais modificados geneticamente. Feito sob medida para ser mortal.
O susto que eu tomo é involuntário diante do urro agudo da besta. É um anúncio de ataque.
Antes que possa pensar, dou dois passos para escalar a árvore em minha frente, porém, a única coisa que sinto é o aperto de algo em meu tornozelo, puxando toda a minha perna esquerda para cima, me colocando de cabeça para baixo. Quando coloco a mão em minha coxa para buscar minha faca de corte, o aperto de folhas toma meu pulso, enroscando-se gradativamente pelos meus membros inferiores, apertando-me em um casulo humano. Árvore-sucuri.
Grito em dor quando meu osso do pulso é deslocado, recebendo em resposta outro grito do bípede abaixo de mim, nervoso por ter sua presa levada para fora de seu alcance. A formação do casulo em torno de mim continua por meu quadril, abraçando-me em sua compressão mortal.
Respiro fundo duas vezes e então começo a girar o meu corpo com a força do braço livre. Faço impulso para baixo, enquanto meus músculos imobilizados esticam-se mais do que possível. Finalmente, sinto o peso da espada se locomover, saindo da bainha em minhas costas. Mais um impulso para baixo e a lâmina escorrega, voando em direção à besta. Antes que o atinja, porém, capturo-a pela ponta, ignorando o corte que faz em minha palma.
Giro a espada no ar, e segurando-a corretamente, corto a base das ramificações que apertam meu braço, assim como os dedos de madeira que sustentam minhas pernas. Caio no chão em cima do pulso deslocado, espirrando lama para todos os lados e oferecendo vantagem para o bicho que agora grita em minha direção. Meus dedos roçam brevemente o metal da pistola antes que as garras finas e negras do transmute cravem a pele do meu ombro, rasgando o caminho até meu peito. Giro o corpo para o lado em reflexo, bem embaixo de seu corpo nojento, e antes que ele possa me atacar novamente, descarrego o pente da pistola em sua cabeça.
Antes que o peso do corpo morto desmorone em cima de mim, empurro-o para longe, porém não consigo impedir que a secreção dos buracos em seu crânio pingue em meu rosto e peito.
Ofegante, sento sobre os calcanhares; bebo água, coloco a espada de volta na bainha, recarrego a pistola e analiso meus ferimentos. Para o pulso deslocado, uso a faca de corte e tiro um pedaço de pano comprido da minha calça e enrolo-o para imobilizar. Para o corte em minha palma apenas lavo o ferimento, concluindo que não há necessidade de estancar o sangramento leve. Tiro cuidadosamente a camisa para analisar melhor os quatro rasgos profundos em meu ombro e peito, e para minha surpresa, não há um pingo de sangue esvaindo deles. Minha pele está aberta para fora, mostrando a fina camada de gordura e o vermelho do músculo por baixo.
Jogo um pouco de água na carne aberta, para a minha miséria, porque tudo começa a arder, como se labaredas de fogo queimassem de dentro para fora em toda a extensão do meu lado direito. Tombo de costas, bravejando em agonia, tremendo violentamente contra a cama de folhas murchas. Um pingo de água cai de algum lugar dentro do meu olho, e é isso a última coisa que percebo antes de perder os sentidos.
***
Sonho com o mar, os monstros, as ondas, meu pai. Sinto medo, dor, fome, luto. Vejo a vastidão de águas negras na noite estrelada por trás de minhas pálpebras. A mão calejada que arranha meu ombro enquanto estremece o corpo febril no chão coberto em podridão. As lágrimas que marcam o rosto acinzentado de minha mãe e molham a bochecha dele. Os rostos virados e olhos desviados daqueles que não podem presenciar mais uma morte sem o desejo de arrefecer-se também. Vejo tudo. Sinto tudo. Sinto demais.
***
É Gwen quem me salva. Sei disso porque ouço sua voz, sinto seu cheiro, sinto o toque de seus dedos tocando meu rosto e reconheço o fio de esperança que percorre por mim quando meu corpo pesado começa a ser movido. Mas, apesar de sentir e saber, não consigo abrir os olhos. Não sei se meu coração está batendo.
***
Quero gritar. O comichão em minha garganta começa a ficar insuportável e tudo que consigo pensar é em como preciso abrir a boca e gritar o mais alto possível. Agulhas perfuram minha pele. Choques atravessam meus músculos. Minha carne é dilacerada e costurada. Fluidos correm por minhas veias. Frio e calor se alteram. Vozes se alvoroçam e se abafam. Luzes se acendem e apagam. O tempo simplesmente passa e eu continuo imóvel. Constato que tenho uma decisão a tomar; ir ou ficar?
***
Um leve formigamento começa nos dedos dos meus pés. A sensação cresce por meus tornozelos e panturrilhas. Aos poucos, vagarosamente, meu corpo vai acordando.
A euforia de controlar meus movimentos novamente me preenche. Contraio os dedos contra a palma da minha mão, e quero rir de alegria, porém meu rosto ainda está dormente. Respiro fundo, concentrando todos os pensamentos no movimento de abrir os olhos. Abro-os lentamente, tomado pela imensidão branca do teto. Testo minha fala, separando os lábios secos; sinto gosto de sangue ao molhá-los com a língua, mas o que sai de minha garganta nada mais é que um grunhido baixo. Atraídos pelo som, rostos ocupam meu campo de visão imediatamente, nas mais variadas expressões.
Estou vivo.
— Eu sabia! — a voz emocionada de Gwen diz. Quero levantar os dedos para enxugar suas lágrimas, ou fazer um comentário sarcástico para que ela ria, mas ainda não tenho total controle de minha mobilidade, então apenas a encaro. — Já chamou um médico? — ela pergunta para a mulher que analisa meu painel de batimentos cardíacos.
— Dra. Anjos está a caminho.
Gwen parece hesitar, incerta do seu próximo movimento, mas o faz mesmo assim: joga o tronco esguio no meu peito, apertando meus braços com força. Retiro os fios de seu cabelo do meu rosto em um movimento robótico.
— Da próxima vez não vai nem precisar de floresta nenhuma, eu mesma te mato — ela murmura contra o pano fino da minha roupa de hospital. Ela se compõe, limpando as lágrimas do rosto vermelho. — Achei que nunca mais veria seus olhos novamente.
Faço menção de responder, mas passos pesados ecoam pelo Centro, distraindo-me. Ikari.
Minha mãe, menos delicada e mais aliviada, puxa-me para um abraço forte e demorado. Sem choro, apenas uma expiração pesada, como se todo o tempo em que eu estive em coma, ela estivesse sem respirar. Não duvido disso nem um pouco.
— Bom garoto — balbucia ela. — Você voltou para casa, como eu havia dito. Muito bem, meu filho.
Esbanjando um sorriso orgulhoso nos lábios e o queixo empinado, ela se volta para Gwen, travessa.
— A primeira pessoa que sai da Floresta vivo tinha que ser meu filho, não acha?
Gwen ri, concordando. Há uma comoção distinta no ar, compartilhada entre as mulheres que torciam pela minha recuperação.
— Acredito que seja o motivo perfeito para uma comemoração! — ela se empertiga, animada com a ideia. — Esta estalagem está mesmo precisando de um pouco de música e álcool.
Ikari, menos conveniente com a ideia, cerra os olhos, pensativa. Olhando para mim mais uma vez, se deixa levar pela felicidade de me ver acordado é tomada pela ideia.
— Tudo bem — ela espalma as mãos, como se estivesse se rendendo. — Mas apenas se Kwame disser que concorda. Não queremos que ultrapasse seus limites, querido. Se quiser apenas descansar por enquanto, está tudo bem.
— Desde quando Kwame Nkosi dispensa uma oportunidade de beber até cair? É claro que ele concorda — Gwen discute, olhando-me com ansiedade. Diz sim diz sim diz sim, ela murmura sem som para mim.
Apenas balanço a cabeça uma vez, concordando. Gwen faz uma dancinha de comemoração, soltando um beijo agradecido para mim.
Minha mãe esfrega minhas mãos nas suas, e só agora me dou conta de que ela as entrelaçou em seu colo. Ainda sorrindo, deposita um beijo nos nós dos meus dedos.
— Vou checar o motivo da Dra. estar demorando tanto — ela diz, levantando da cama e saindo em passos tão rápidos quanto os de sua chegada.
Gwen, ainda alegre, põe o dedo na boca, mordendo a unha. Ela faz isso quando está muito feliz; não rói, apenas raspa os dentes na unha. Acho que estou sorrindo, mas não tenho certeza, porque Gwen fica séria de repente, franzindo a testa. Sinto seu olhar buscando em mim alguma coisa. Ela está procurando por uma familiaridade em meu rosto, algo que não consigo dar ainda.
— Deixarei que você se gabe por alguns dias... O retorno de Kwame Nkosi, sobrevivente da Floresta — ela cutuca meu ombro. — Mas a história de como nós o resgatamos é boa demais para ficar debaixo dos panos.
— Nós? — pergunto, a voz rouca demais para ser reconhecida como minha. Não sei do que ela está falando.
— Aurora e eu — ela diz pausadamente, como se estivesse comunicando algo importante para uma criança. — Acho que você precisa descansar mais um pouco. Vou contar a novidade para algumas pessoas — ela informa, cruzando os braços. Está nervosa. — Você vai ficar bem sozinho por alguns minutos?
A expressão de busca volta a tomar seu rosto. Conheço Gwen, sei que ela precisa ouvir minha voz, ver um sorriso nos meus lábios e um brilho único no meu olhar que só existe ao vê-la. Sei o que ela busca. Mas, ao invés de cessar suas dúvidas ao puxar um pouco o lábio em sorriso, apenas assinto.
— Eu senti sua falta — admite, apesar de que o tom que usa parece estranho.
Abro a boca para responder, dizer que também senti falta dela. Desejo conversar, contar como a lembrança de sua presença me manteve aquecido durante aqueles dias. Desejo dizer que seu sorriso me incentivou a não desistir e que o toque de seus dedos em meu rosto me trouxe de volta quando mais precisei. Não consigo fazer nada do que quero, apenas assinto brevemente.
Sem mais uma palavra, ela se vira e sai.
Sozinho, ouço minha consciência gritar em minha cabeça o tempo todo. Eu estou aqui eu estou aqui eu estou aqui. Me salve.
Procuro ao redor alguma superfície para ver meu reflexo, a fim de ter certeza do que já desconfio. Quero ter a convicção de que visto minha pele, de que estou dentro do meu corpo, porque certamente não sinto como se estivesse.
Retiro as agulhas do meu braço, os tubos de buracos em minha barriga e coloco os pés no chão frio, minha temperatura se igualando ao piso cimentado. Testo meu equilíbrio ao ficar de pé, um dos joelhos fraquejando brevemente, porém me seguro na borda da mesa ao lado da cama. Caminho como um idoso, dolorido e devagar, um passo de cada vez. Com dificuldade, alcanço o banheiro mais próximo, levantando o espelho baixo para a altura do meu rosto.
Não me reconheço. Não sou eu.
Estou magro, a linhas fortes do meu rosto estão ainda mais fundas, sombreando meu rosto como uma caveira. Meus lábios estão cinzas, desidratados. Meu nariz parece ainda maior devido a falta de carne em minhas bochechas.
Ainda é minha pele. Ainda é meu exterior, apesar de feio. Mas não é Kwame Nkosi. Estou com a mesma expressão de Gwen segundos antes; à procura de mim mesmo. Não me encontro.
Mesmo saindo da Floresta, continuo preso, dessa vez dentro de mim. E agora, não há possibilidade de saída.
Notas: O aclamado, querido, lindo, sonho da minha vida voltou AAAAA - ou nem tanto assim, rs. Kwame Nkosi já está entre nós, querides, mesmo que não da forma que muitos queriam. Dias de luta, dias de glória e aqui a gente tem mais dias de luta que outra coisa. Enfim, espero que as saudades tenham sido saciadas <333 ps: os parágrafos separados por asteriscos (***) são relapsos de consciência enquanto Kwame estava desacordado. Até o próximo capítulo, beijos e se cuidem!
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro