Capítulo Dois
NOTAS: * d.j. significa "depois da Junção" e é o mesmo de "depois de Cristo".
* O livro é narrado por dois personagens principais, Aurora Park e Kwame Nkosi.
* Isso "〆〆〆" significa que mudou a narração para outro personagem. Eu troco de narração apenas uma vez por capítulo e sempre de Aurora para Kwame.
* Aurora tem ascendência coreana, e Kwame é Sudanês, nascido em Sudão, África. Por favorzinho, não façam whitewashing com meus bebês. Esse capítulo é tranquilo, é o que eu chamo de "capítulo de transição", boa leitura!
Respiro fundo para controlar a sensação de náusea que arrepia toda a minha pele. Não é suficiente, ao invés disso minha cabeça roda com o movimento. Pego o balde ao lado da cama e coloco tudo que — não — há no meu estômago.
Não sei há quanto tempo estou acordada, mas parece que faz muitas horas que estou doente e já vomitei três vezes. Tenho certeza que me injetaram algo para me enfraquecer. E está funcionando. Deito meu corpo febril de volta na cama já molhada com meu suor e tento focar em um ponto imaginário no teto para diminuir a vertigem.
Estou em um quarto pequeno mas bem equipado. As paredes são cobertas com um papel de parede infantil, que parece ter sido colocado de última hora. A porta é cinza e pesada, feita de algum material de metal reforçado. A iluminação é boa, a cama tem um colchão aceitável e há um painel móvel grande separando uma parte que deve ser o banheiro. Uma cela feita para não parecer uma. Uau, se eu me esforçar um pouquinho posso até esquecer que fui sequestrada.
Repasso os acontecimentos da noite anterior, no meu sequestrador e na facada que eu lhe dei. Por um momento havia ficado preocupada de que ele morresse. Mas, pensando bem agora, pelo menos ele não vai sair dessa ileso. Se eu tenho que sofrer, ele merece o dobro.
Levanto a cabeça procurando por câmeras. Se eles tiveram todo aquele trabalho para me sequestrar, não deixariam a cela sem supervisão, porém não há nada visível nas paredes além de golfinhos e peixes. É provável que estejam camufladas no meio dos detalhes do papel.
Tento mover as pernas e colocar os pés no chão. Só então percebo que estou descalça e meu vestido abriu ainda mais na parte da fenda, expondo parte da minha roupa íntima. A frieza do chão de mármore é boa em contraste com o calor intenso da minha pele. Levo meu corpo inteiro vagarosamente para o chão, encostando a bochecha no frio. A sensação é muito boa e tento fechar os olhos. Se eu dormir, tudo será mais rápido.
Após o que parecem ser alguns minutos, a porta range ruidosamente ao ser aberta. Minha visão está embaçada, só consigo ver uma pessoa vestida de branco entrar com uma maleta em mãos. Percebo uma cabeleira loura flutuante seguir a pessoa e se posicionar em frente a porta com os braços cruzados. Meu coração bate forte demais e a náusea aumenta. Não vou conseguir me defender.
A pessoa de branco agacha em minha frente, e para a minha surpresa puxa meus braços com delicadeza, sustentando minha cabeça em suas mãos.
— Aurora? — chama, abrindo meus olhos com os dedos e uma claridade repentina cega meu olho direito. — Sou o dr. Mendoza. Vou te examinar bem rápido, ok? — a única resposta que consigo dar é um grunhido.
Dr. Mendoza faz seus procedimentos: abre minha boca com uma espátula, checa minha pressão e temperatura, fura meu dedo com uma agulha e recolhe um gotinha de sangue. Está fazendo anotações em seu crops quando caio em mim que, se ele é um médico, deve carregar alguma coisa na sua maleta que possa servir de arma. Eu só preciso distraí-lo por tempo suficiente e pegar alguma coisa que machuque bastante.
— Não pense nisso — uma voz feminina me corta na hora em que arrasto meus dedos para a maleta aberta.
Fecho e abro os olhos com força para focar na mulher parada em frente a porta. Minha respiração fica urgente quando a reconheço. Gwen... Se esse for mesmo o seu nome.
— Você. — Minha voz está muito rouca pela irritação. Apenas posso esperar que meus olhos estejam passando o ódio que me invade.
— Aurora... — ela sussurra, saboreando a palavra. Me fita maliciosamente com seus olhos azuis. — Se divertiu bastante?
Sinto vontade de socá-la. De enfiar seu nariz dentro da sua cara e picotar aquele maldito cabelo louro até restar apenas couro cabeludo em sua cabeça.
— O que você colocou em mim? Quando pegou em minha mão? — pergunto, tocando o local do formigamento anterior. Ela apenas dá de ombros e mantém a expressão de astúcia.
— Eu, nada. Já Kwame... — ela ri e faz um bico, assobiando. — Ele que te deixou assim, então guarde sua raiva para ele.
Decido ignorá-la e volto meus olhos para o médico, que agora olha para Gwen com os olhos brilhando. Finjo uma tosse para que volte seus olhos para mim. Ele pigarreia e apanha de dentro da maleta duas pílulas vermelhas.
— Tome esses agora. Vai baixar sua febre e acabar com a náusea. Talvez te deixe bastante sonolenta, também. Vou mandar trazerem água e alguma coisa leve para comer. Ainda vai se sentir estranha por algumas horas, mas a pior parte foi quando você estava desacordada — ele me dá o remédio e espera até que eu os coloque na boca. Engulo em seco, mantendo as pílulas debaixo de minha língua.
— Pior parte? — pergunto, sem entender o que ele quis dizer.
— Você teve alguns pesadelos e estava muito mais febril. Quebrou o nariz de um guarda enquanto vinha para cá — é Gwen quem me responde, rindo novamente. Não me contento com isso. Gostaria de quebrar vários narizes enquanto acordada.
— O que vocês querem comigo? — pergunto, e não espero ser respondida, mas Gwen muda sua expressão de divertida para empática.
— Tudo vai ser esclarecido daqui há uns dias, não se preocupe. Vamos esperá-la se recuperar totalmente porque o que temos para você é... — hesita, torcendo a boca. — Difícil. Se você não tentar nada arriscado, estará livre antes que perceba — ela sorri sincera e eu aceno com a cabeça.
Mendoza e Gwen saem, fechando a porta barulhenta. Ouço vários fechos que creio que há mais coisas que uma simples chave na maçaneta.
Coloco a mão na boca, como se evitasse um vômito e retiro as pílulas rapidamente. Deito no colchão de bruços e olho para outro lugar, mas minhas mãos trabalham procurando alguma forma de abrir a costura. Faço uma pequena abertura na parte inferior e coloco as pílulas ali, por trás do enchimento. Talvez elas sejam úteis mais tarde.
Finjo um vômito para justificar minhas mudanças de posição, e fico de pé, testando meu equilíbrio. Estou bem o suficiente para me limpar. Vou até o painel e o abro, revelando uma latrina, chuveiro e prateleira: nela há produtos de higiene, uma escova de cabelo e uma toalha, além de um cesto com roupas limpas.
Removo minha roupa rasgada, escovo os dentes e penso se a vontade deles em fazer eu me sentir menos sequestrada se estende à temperatura da água do chuveiro. Ligo a água gelada, rindo sarcasticamente. Imaginei que não. Deixo que ela lave os resquícios da pior noite de minha vida. Não havia percebido até então que há sangue debaixo das minhas unhas.
Sangue dele... Kwame, segundo Gwen. Espero que o maldito esteja acamado.
Fecho os olhos e penso em minhas chances de sair daqui viva. Tento me convencer de que se fosse para me matar, eles fariam isso lá no salão mesmo. Por que se dar ao trabalho de me trazer até aqui se o objetivo é tirar minha vida? Talvez eu não seja o objetivo, no entanto. Posso ser apenas o meio justificando o fim.
Não há como saber e eu não pretendo continuar aqui para descobrir.
Ficar e esperar pelo destino agir em meu favor está fora de questão. Não tenho controle sobre nada nesse lugar. Isso me apavora intensamente. Não posso imaginar o que Eunjin está passando e a única coisa que desejo no momento é voltar para casa, para os braços do meu marido... meu amigo.
Apesar da minha certeza de que todo o Continente está à minha procura e de que eu farei qualquer coisa para sair daqui, sua frase me consome em curiosidade. O que significa ter algo para mim? E essa informação ser difícil?
Não consigo pensar em nenhuma possibilidade.
〆〆〆
Acordo com a dor pulsante em minha perna. A primeira coisa que vejo é a branquitude imaculada do centro médico que machuca meus olhos. As janelas estão abertas e a luz do sol as atravessa sem licença.
Ikari está sentada em uma cadeira ao meu lado e parece estar com muito sono.
— Olá, mamãe — chamo, sabendo que ela vai me olhar feio ao ouvir a palavra. Ela odeia isso.
— Como está? — pergunta, se levantando e cruzando os braços.
Penso em minhas alternativas de resposta. Se eu disser que estou bem, ela vai me dar um sermão gigantesco. Se eu falar o contrário, vai chamar um médico e não existe outra coisa que odeie mais que doutores e suas inúmeras perguntas. Escolho a primeira opção.
— Kwame... — começa, respirando fundo. — Da próxima vez que desobedecer uma ordem direta minha, vou ser obrigada a te suspender por tempo indeterminado, justificando indiligência.
Espero por mais, porém ela somente descruza os braços e aperta meu ombro, soltando um suspiro.
— É só isso? — pergunto, desconfiado. Ela transforma o aperto em um tapa.
— Cale a boca. Levante e veja se consegue andar.
Levanto meu tronco, colocando primeiro a perna esquerda no chão e me equilibrando com ela. A perna direita responde assim que a mexo, enviando a sensação de pequenas agulhadas por toda a minha coxa. Xingo Aurora na minha mente. Mulher louca.
— Posso usar uma muleta? — peço. Ikari a tira de uma porta e me entrega.
Ajusto a muleta para minha altura e funciona bem quando ando alguns passos com ela.
— Pronto. O que eu devo fazer agora? — pergunto e ela me olha como se eu fosse uma criança boba.
— Vá para seu alojamento e... — ela para de falar quando Gwen entra na sala, um sorriso infantil nos lábios.
— Bom dia, Nkosi's — cumprimenta com uma continência. — Kwame, vejo que está perfeitamente bem, então vou me poupar o trabalho. Quer comer alguma coisa? — pergunta, abrindo os olhos em um claro: você que se atreva a negar.
— Claro — confirmo, seguindo-a para fora daquele ambiente sufocante. Ikari apenas adverte para não forçar a perna demais.
Caminhamos pelo longo corredor cheio de portas do Centro, Gwen tagarelando algo sobre bacon, pão e morangos e controlando os passos para me acompanhar.
Não pergunta nada sobre minha perna, e não espero que faça. A vida que levamos é perigosa e nos expomos a milhares de riscos diariamente. Algumas coisas simplesmente já são comuns, de rotina. Agradeço a Gwen por ser um pouco da limitada normalidade que tenho por aqui.
A Estalagem 2 é o local onde moro desde os dezesseis anos. Ikari e eu viemos à Amásia para fugir da violência crescente no Sudão naquela época. É irônico pensar nisso hoje. Fugimos de um lugar de miséria e sangue para entrar em um mundo quase igual, porém com motivações diferentes.
Quando você experimenta o que é estar definhando de fome, sem lugar para morar e até dormir, qualquer coisa que te ofereça comida e um teto, é o paraíso. Nunca questionei a decisão de Ikari de vir para cá. Não posso imaginar como é para uma mãe não ter um pedaço de pão para alimentar o filho.
Lembro-me de muito pouco dessa época. Acredito que minha mente decidiu sufocar essas memórias para sua proteção. Só sei que um dia eu estava faminto, hipotérmico e sem esperanças. No outro, tinha comida quente e uma cama para dormir. Qualquer que fosse a consequência depois, eu não me importava.
Hoje, sabendo o que esse lugar significa, o que eu sou, gostaria de poder ter a oportunidade de escolha. Mas já está feito. Eu sou um rebelde, e a única coisa que mudará isso é a morte.
Não pretendo morrer tão cedo.
A cafeteria é ao ar livre, as mesas dispostas formando pequenos círculos no ambiente. As bandejas de comida ficam protegidas por uma cobertura de plástico. É meu lugar favorito. O cheiro é de canela e fritura e minha barriga ronca em súplica. Gwen faz um prato abundante de de ovos, pão doce e café para mim.
Nos sentamos no fundo, apesar de o ambiente estar quase vazio. Vejo o horizonte verde, o céu está aberto e em diversos tons de azul, o sol aquece levemente minha pele e fico satisfeito. É tudo que eu preciso para agora.
— Não gosto de comparar mulheres a animais, mas touro selvagem é a única definição que tenho para àquela — diz Gwen, rindo enquanto mastiga um pedaço de bacon.
— Quem? — pergunto, entregando minha distração da conversa e ela revira os olhos.
— Aurora Park — explica, balançando o garfo em minha direção. — Estava dizendo como o efeito da agulha do sono deixou ela selvagem.
— Foi mesmo? — forço um desinteresse e cubro meus olhos enquanto bebo o café. Gwen me encara franzindo as sobrancelhas.
— Você não está curioso a respeito dela?
— A mulher enfiou uma faca na minha perna! — justifico, fazendo uma careta ao lembrar.
— Não seja infantil, você a estava sequestrando! Queria que ela fizesse o quê? Se jogasse em seus braços e te chamasse de cavalheiro? — Gwen zomba, um sorriso malicioso em seus lábios.
Não, eu não gostaria disso. Na verdade, tinha ficado bastante impressionado com a coragem e habilidade dela.
Acredito que eu pensava que as mulheres da Elite eram diferentes, frágeis e indefesas, não como Gwen, Ikari e todas as mulheres rebeldes da Estalagem. Subestimei Aurora por ser mulher e tive o que merecia. Farei questão de não cometer o mesmo erro novamente. Nem com ela nem com outras mulheres.
— E você fica ótimo com cicatrizes — Gwen pisca e eu pisco de volta, sorrindo. É confortável estar com ela. Temos personalidades bastante parecidas e praticamente crescemos juntos, sempre zombando e flertando um com o outro e com quase qualquer pessoa. Isso ocasionou em vários problemas.
— Como ela está? — pergunto e mastigo um pedaço do pão para não entregar minha expressão.
— Já deve estar bem. Fui vê-la mais cedo com Mendoza e ela parecia muito doente, mas tomou remédios. Você acredita que ela quebrou o nariz do Palore enquanto estava desacordada? — Gwen gargalha, parecendo estar admirada.
— Palore sempre foi um idiota — dou de ombros e faço uma nota mental para ver o tamanho do estrago mais tarde.
— Ela perguntou sobre o que eu injetei nela quando nos vimos na festa — conta, balançando a cabeça. — Mas mudei o assunto para você.
— Você o quê? — a olho com cara de de descrédito. Gwen apenas dá um sorrisinho de lado e inclina sobre a mesa.
— Falei para ela direcionar o ódio à pessoa certa. Não fui eu que a deixei doente.
— Gwen... — rosno. Ela gargalha e eu levanto da cadeira, pegando a muleta.
— Aonde você vai? — ainda está rindo quando pergunta.
— Vou vê-la e acabar logo com isso.
NOTAS FINAIS: Obrigada por estar aqui em mais um capítulo, espero que você tenha gostado. Não esqueça de deixar seu voto e comentário, é um impulso muito bom para qualquer autor.
Qualquer coisa, podem me mandar mensagem privada.
Ah, me sigam no twitter: @addixtez. Vou postar alguns conteúdos sobre Ascensão por lá em breve. Beijos.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro